Capítulo 9: Ruína da Flor
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE E PÂNICO.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Ode to Vivian - Patrick Watson e Black Friday - Tom Odell
Logo que o ponteiro indicou ser meia-noite, a família de Gaya se despediu abaixo de uma repentina e banal chuva da madrugada. Comemoraram a conquista da jovem até se esgotarem.
As Demdike regressariam de manhã cedo para Rye e assim, Gaya e Dane começariam as arrumações na intenção de fugir da residência o mais rápido possível e com vida.
Mas antes das bruxas partirem no táxi, ao ajudar a avó a se acomodar no banco traseiro com as mães a resmungar pela barriga cheia de comidas, a neta beijou a testa enrugada da avó e prestes a fechar a porta, Anika agarrou seu pulso com uma determinada força.
Assustando Gaya e as mães, num olhar inerte, num transe profundo e estarrecedor. Nunca a enxergaram daquele jeito escabroso:
— Mãe? — Anya se atentou, desentendeu tal ação e visou soltar a mão da matriarca presa ao pulso da filha.
— Amor, o que está acontecendo? — Delphine arqueou as sobrancelhas e se esticou ao questioná-la, preocupada.
Ansiou a entender a mera confusão.
— Vovó, a senhora está bem? — por mais que insistisse, não conseguia se libertar. Anika aparentou deter uma força descomunal. — Está machucando um pouco — concedeu um sorriso desajeitado que entregou medo.
Mas o que saiu da boca de Anika, repercutiu mais bizarro que a rigidez nas mãos. À medida que tudo ocorria, o taxista, em completo pavor, somente assistia por intermédio do retrovisor. Se falasse algo, pioraria a situação.
— Filha, a era do grande juízo se aproxima. Mantenha-se em alerta, pois aquela que habita na escuridão, a atormentar sua paz, não descansará — sabia de quem ela se referiu. — Contudo, em breve, escutará o chamado da Mãe e a justiça sucederá.
O tom imponente determinava que Anika não se manifestava entre os lábios firmes a entregar revelações.
Perplexa, mediante os pelos erguidos, escleras secas e nuca a pinicar num arrepio, Gaya a ouviu atenta e temerosa. Engoliu o súbito conselho. Em agonia, suas mães correram para se despedir da filha no limite da circunstância e Anika saiu da hipnose profunda.
As Demdike reagiram estranho, feito um ocorrido incomum. Poucas bruxas serviam de incorporação. As que conheciam, viveram em séculos passados. E assim tornava Anika numa curandeira de tremendo respeito.
E Dane, por fora de qualquer entendimento como o taxista, não detinha outra reação, a não ser permanecer estático com o que testemunhou. No entanto, demonstrou reverência pelo incidente.
— Anya, por que ainda estamos aqui? Minhas pernas doem, estão inchadas, preciso da minha pomada de ervas — reagiu habitualmente. — Ah, até breve, querida Sol! Parabéns pela formatura e depois volte à Rye só para jogarmos sinuca.
— Ela não se recorda — Anya negou com a cabeça e Gaya tomou a leitura labial da mãe.
— É... — soou tão insólito. — Tudo bem, vovó. Boa noite de sono para vocês e quando chegarem, me avisem se chegaram em segurança.
Ao seguirem no táxi e perceberem virar a esquina, confusa, Gaya encarou Dane, porém, a bruxa compreendia do que se tratava aquele aviso. Não com tanta clareza, entretanto, sua intuição disparava como nunca, conforme períodos atrás, ao passo que se conectava com a Mãe Terra.
— O que aconteceu? — ao apoiar as mãos por trás da jovem, nas costas, a guiou de modo a adentrarem a casa. — Claro, se não for invasivo.
— Nem eu sei. Era comum minha avó conversar com a nossa divindade, mas jamais a vi incorporar. É algo inédito após tanto tempo conosco, as bruxas. Creio haver alguma coisa relacionada ao que sucedeu no porão e naquela noite. Não sei bem.
— Sou ignorante por não ser como vocês, mas quando ela falou isso — trancaram a porta —, surgiu em mim uma sensação estranha. Não significava nada bom ou ruim. Apenas senti a atmosfera esquisita. Um calor repentino, cheiro de flores... você sentiu?
— Não — pensou com preocupação. — Mas espero não ser nada que me torture a consciência. Quero me ocupar em resolver nosso problema com a igreja. Por infelicidade, tive que colocar a bruxaria de lado, me culpo, mas não tem como recuperar os bons tempos de bruxa e viver nessa angústia.
Pensava de maneira racional, contudo, Gaya tinha de se preparar para os ciclos de frio e dor. A chegada das piores sensações que temia experienciar. Não suportava seus temores de Londres, todavia, nem contava com a vinda do real pesadelo.
O princípio do apocalipse.
Os dois começaram a organizar cômodo por cômodo. A tarefa de pôr tudo em caixas, a incluir comidas, se tornava cansativo. Por culpa de crimes brutais, ambos se tornaram vítimas e testemunhas a serem perseguidas.
Com isso, corriam pela casa, nas pressas, no intuito de ainda conseguirem um quarto em qualquer hotel barato e distante do endereço.
— Creio que por aqui já terminei, e você? — Dane enxugou a testa suada e descansou folgado sobre o sofá.
— Também. Amanhã cedo entregarei a chave da residência à proprietária. Foram ótimos tempos antes de tudo piorar. Terei que deixar minhas plantas no jardim e levar o necessário.
— Portanto que, considero sairmos de Londres, irmos para outra cidade amanhã, sem ser Rye. Entretanto, seria ideal que eu devolvesse a chave e impedir te expor. Pense bem.
Receosa, sentiu que precisava confidenciar acerca de algo.
— Acho importante te dizer — se levantou afobada e posicionou o corpo diante do homem disposto no estofado. — Recebi uma carta bem cedo — ele se mostrou ansioso, animado por ela. — Do Palladium, em Soho.
— O teatro? Em Soho?! — um sorriso surgiu através dos lábios.
— Sim. Minhas notas finais se encaixaram antes da formatura e porventura eu conquiste algum papel no musical de "O Fantasma da Ópera", mesmo que pequeno e escondido — arfou aliviada em contar. — Será a última oportunidade para algo grandioso e se fugirmos, posso não conseguir mais, entende? Trabalharei em alguns lugares e insistirei em meu sonho até cansar.
— Isso... — sugou o ar mediante os dentes presos, empolgado — isso é incrível, Gaya! — se ergueu do assento com as mãos no alto e seguiu até a moça.
O rapaz a abraçou forte, de maneira a afagar a alma, carinhoso conforme um inocente e beijou sua testa com imensa admiração. Pareceu mais feliz que ela.
— Ficaremos, então. Talvez ir à Soho, à medida que novas oportunidades não surgem para você e quando surgir, podemos nos mudar de país. Evitar que tudo o que ocorre chegue em nossas famílias.
— Mas para isso, preciso sair desacompanhada — não o queria feito um guarda-costas.
E dessa forma, Dane não recebeu com facilidade o que dissera.
— Irei contigo — pressionou e ultrapassou limites. — Ficarei no auditório tal qual períodos atrás, lembra?
Riu desconcertado e sabia que ela detestava ser seguida, como se precisasse de um guia por toda hora.
— Melhor não. Nem sei se permitem acompanhantes — se chateou em meio ao tom ríspido.
— Dou o meu jeito. Por quê? Não quer que eu te proteja?
O olhar acinzentado exprimiu uma queda de qualquer reação.
— Não insista, Dane. Sabe o que penso. Entendo que deseja zelar por mim, mas quero fazer algo sozinha, para minha carreira. Já passei da idade de ter uma babá e entenda que nunca tive.
— Gaya, eles sabem onde você está — insistia.
— Se ocorrer alguma coisa enquanto eu estiver na audição, me defenderei antes que chegue. Não sou indefesa. Jamais fui. Porém, se algo de errado acontecer comigo, saiba que tentei.
Por considerar ser viável à jovem, ambos garantiram um aposento num hotel de Soho após Dane seguir de moto com algumas coisas na garupa e Gaya complementou com caixotes no táxi.
Os dois só pensaram em se jogar no colchão e dormir tranquilos. Mas assim que acordou entre o cobertor e montanhas de travesseiro, a mão do rapaz notou a cama novamente vazia.
Os olhos aflitos, em sincero desespero, correram no relógio de parede do quarto que marcava doze para as onze horas.
Ele acordou tarde e saiu pelo extenso dormitório à procura de Gaya, que não se encontrava mais por lá. Não havia sequer um bilhete avisando seu destino, mas lembrava bem onde a jovem estaria.
London Palladium era imenso por fora e por dentro. Uma estrutura magnifica, porém, inexistia o mesmo número de pessoas que frequentavam à noite.
Intruso e comedido, o rapaz passou pela entrada por um descuido de funcionários do teatro, embora houvesse plaquinhas a indicar um provável teste de elenco para "O Fantasma da Ópera".
Sabia que ela se fazia presente por lá quando adentrou silente a imensa sala escura, sem ranger a porta e se encaixou nas cadeiras ao se camuflar na escuridão. De modo a recuperar boas sensações passadas.
No exato instante que acomodou os pés acima de uma das poltronas à frente, Gaya finalizava a avaliação e soava confiante diante dos avaliadores. O olhar estupefato do jovem se completou ao sustentar o queixo nas costas do indicador, caído aos pés da bruxa.
Apesar de não ser notado, em assentos inferiores, candidatos em massa ansiavam pela sequência de apresentação e a Demdike se dispôs a disputar o papel de Christine em meio ao segundo ato.
As candidatas precisavam saber cantar e a voz se alinhar em uma futura sintonia com a orquestra.
Ao notar que maioria delas se encaixavam como pessoas brancas, por um momento, Gaya se sentiu insegura por instantes, a temer perder o papel, entretanto, entendia o grau de seu talento e experiência conforme artista.
— Vamos lá, Gaya — Dane murmurou no fundo do auditório e ninguém abaixo ouviu. — Você nasceu para ser artista — torcia só por ela.
À medida que a Demdike se sobressaía, o corvo se sobressaltou com o bolso de sua calça que principiou a vibrar incessante, que o fez cansar de rejeitar. Carregava seu aparelho celular destinado a fins urgentes.
Logo que o guiou ao ouvido e as luzes se acenderam, com nitidez, a moça mirou o rapaz distante, infiltrado no recinto. Por segundos se irritou por ele negar suas ordens com frequência. Decerto, Dane detinha o objetivo de lhe proteger e assim relevou.
Sem qualquer contato visual direcionado a ela, preso à chamada, o Dawson se retirou disparado da sala, feito ventania e no ínfimo de sua alma, até a raiz dos cabelos, Gaya pressentiu que algo aconteceu.
Chovia bastante lá fora, o céu se forçou a desmoronar sobre o teatro, em Londres inteira, de tal forma que Gaya foi liberada da audição e apressou os passos pesados em fúria ao exterior do anfiteatro.
Pensou até que o Dawson teria culpa se perdesse o papel pela intromissão entre as poltronas.
E sem se importar com o que existisse em sua frente, ao descer a escadaria do local, o corpo carregado em revolta esbarrou acidentalmente no bastardo que a enxergou abatido.
A sensação incomum que notou, escapava dele feito uma aura tempestuosa, de melancolia. Tristeza eterna de arrancar entranhas.
— Falei para não vir, Dane! Quer me decepcionar ou o quê? — apontou o indicador para ele ao cruzar caminhos e se afastar. Estava impaciente para diálogos por considerar ter perdido o papel. — Vou embora e não dirija nenhuma palavra a mim por hoje!
Um faxineiro que polia os detalhes em ouro no corrimão, bisbilhotou e outros funcionários próximos também. Curiosos, na intenção de testemunhar uma discussão se aquecer.
Insistente, o Dawson apanhou a mão dela que fugia de seus dedos enquanto apressava os pés de modo a sair daquele constrangimento, mas a jovem pareceu chateada.
— Eu precisava de alguma maneira, Gaya. Me espere! Me ouça! — esticou o braço e a perseguiu pelo espaço tal qual um bobo.
— Já lhe disse que não sou indefesa — se recusava a encontrar o olhar dele. — Conversaremos no hotel. Sem mais palavras — concedeu as costas e saiu do teatro, para onde se alcançava a rua.
Sem receios, Gaya se comprometeu a se molhar na chuva fria que encharcou suas vestes e os cachos brilharam entre as gotas feito ínfimos cristais. Corajoso, sem dar créditos às grosserias da moça, Dane seguiu atrás, sem rumo, tal qual uma barata, se arriscou gripar por culpa do repentino temporal, mas o coração pesava para confessar algo.
Sentiu um peso amarrado nos pés e sido lançado no oceano escuro, indecifrável, de modo a afundar e findar seu respiro. Ele tinha que contar.
Os pés acelerados da jovem lançavam as poças sujas aos lados e molhou quem passava. Chutaria pedras que não sentiria nada devido à ira a arrebatar seu espírito.
— Me deixe em paz, Dane! Não preciso que me persiga — reclamava sem desejar olhá-lo.
— Gaya, me escute, por favor! — implorava. — Aguarde um pouco.
Sem temer qualquer resposta impensável, o corvo a puxou para perto em meio às águas do céu, na calçada exposta pelo nublado, entre carros a passar e os dois não se importaram em tomar um banho de chuva.
— O que aconteceu?! Fale! — a água engolia e os cílios formavam minúsculas partículas. — Algum motivo você tem. Pare de enrolar — sôfrega, os olhos sanguíneos se expandiram para devorá-lo em rancor.
Não era necessário tratá-lo de tal jeito, mas se cansou de vê-lo segui-la a todo instante.
— Gaya... — a voz embargou e os lábios caíram trêmulos. Se enfraqueceu naquele segundo a perder a firmeza nas pernas e despencar ombros. — Sua mãe, Delphine, me ligou para dizer que...
Um nó na garganta comprimiu a voz do rapaz que abaixou a cabeça em rendição e negou copioso por algo que ecoava. Uma notícia. Não queria comunicar, mas carecia. Ela necessitava saber e tudo mudaria planos.
As céleres escleras de Gaya quase pularam distantes das órbitas, ansiaram descobrir. Uma carga despencou em seu corpo e reparou a expressão dolorosa do homem que se preparava para acolhê-la.
— Sua avó...
A chuva caiu bem densa, cortante e machucada por dentro, Gaya compreendeu.
— Não... — desmanchou em si, mirou o chão à procura de se enterrar e os veículos, em busca de se jogar diante deles. Desejou partir. — Não, não, não... — as lágrimas se misturaram com a chuva a disfarçar sua imensa dor. — NÃO...!
Um grito sofrido removeu as forças nas pernas e Dane a segurou nos braços, resistente em apoiar. Gaya se abateu, soluçou, sufocada, prestes a desmaiar.
Sua fortaleza ruiu. O sustento de uma família.
Anika Demdike brilharia à noite no céu conforme uma estrela a ser observada por aqueles que a amaram. Porém, Gaya não se preparou melhor para testemunhá-la tocar as nuvens e a lua, a perpétua amiga de uma bruxa. Esperava que ao regressar ao seu lar, sua querida avó de cabelos brancos e risonha feito criança, lhe acolheria em seu colo.
"Na mortalidade é onde nos sentimos vivas com um prazo a cumprir. É justo, como bruxas, escolhermos descansar."
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