Capítulo 6: A Negação do Devoto
*ALERTA DE GATILHOS: ANSIEDADE, LUTO, AFEFOBIA, INSINUAÇÃO SEXUAL MODERADA, LESÕES FÍSICAS, PENITÊNCIA CORPORAL E ASCETISMO CATÓLICO.
*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: Clair De Lune - V, Claude Debussy, Down To Earth - Colouring e Flowers - Adrián Berenguer
O Gregori mudou o trajeto até a Cidade Velha de Edimburgo.
O caminho pego antes de partir à Escócia, soava bem familiar ao cruzar a mesma estrada da primeira juventude, a traçar campos, jardins, a vista a atingir o litoral... desejava se despedir de mais algumas pessoas importantes na sua vida.
As bruxas Demdike significavam como as primeiras a acolherem o rapaz que era somente um mero garoto solitário, ausente da família sanguínea. Fora o suporte enquanto Moniese Gregori existia.
E dali seguiria em frente, sem preocupações. A consciência se tranquilizaria.
A Rua Mermaid se evidenciava mais florida que períodos atrás, novos passarinhos tomavam conta das residências nos telhados, árvores vizinhas e janelas.
O novo diácono transitório saiu contemplativo do fusca estacionado de encontro à sua casa trancada — no futuro reformaria quando conquistasse um tempo —, e repetiu o similar percurso entre o chão de seixos. Tal qual nos velhos tempos a regressar do cemitério após a morte da avó.
Relembrava o passado árduo de um menino indefeso, baixo e magro. Franco não se enxergava mais como uma pessoa tão vulnerável. Uma casca foi moldada por fora do sacerdote.
Se tornou um belo e indomável adulto, preenchido de sérias responsabilidades.
De frente à porta de pintura branca retocada, Franco bateu três vezes usando a mesma luva que o presentearam, ajustou os óculos na face, penteou os cabelos, surrou a sola do sapato no chão e umidificou a garganta para se apresentar agradável.
Ansiava por um momento que Gaya estivesse lá. Talvez ao se informar que ele se tornaria padre, voltaria para se despedir feito antes.
Contudo, a jovem residia agora em Londres.
Ao fundo, antes que o atendessem, escutou com atenção ruídos de pratos postos na mesa, a gargalhada de Anika que aparentava estar bem mais fraca e a voz de Anya a solicitar calma para receber o visitante.
— Deve ser aqueles meninos desaforados que pregam peças — a voz abafada de Delphine o fez sorrir cabisbaixo. — Se eu fosse você, nem gastaria tempo.
— Pare com isso, Delphine — Anya se aproximava da porta e a voz também. — Sabe que...
A madeira se abriu de imediato e uma alegria repentina emergiu na Demdike que bateu palminhas saltitantes. O sorriso de Anya se expandiu numa imensidão e ela exclamou o nome do indivíduo que se apresentava diferente dos períodos passados:
— Mãe Terra! Franco! FRANCO!
Quis abraçá-lo, porém, evitou.
— Quem? — Delphine perguntou curiosa da cozinha. — Com quem fala?
— O Franco, amor! — respondeu agitada ao extremo.
— Anya, explique que não aceitamos carne de animal — Anika replicou. Não ouviu com clareza. — Que má educação com as bruxas, onde já se viu, não é Delphine?! Vendendo carne de galinha, sabendo que não comemos animais — falava mediante os cotovelos. — Delphine?
Delphine se concentrava no que fazia e mal notou a visita, além de não ter escutado bem em meio às reclamações da idosa.
Até destacar o tal visitante.
— Mãe, é o Franco Gregori! — convidou o rapaz a adentrar a residência. — Entre, Franco.
Delphine que cortava cenouras, quase feriu o indicador ao largar a faca na mesa e disparou em direção à porta.
Pareciam crianças agitadas.
Anika, sentada na confortável poltrona, gritou ao pedir a bengala e reclamou que a nora não a auxiliou a se levantar.
— Querida, avise à sua mãe que não precisa se erguer. Levarei o Franco até ela, não é Franco? — confirmou sorridente e foi mimado por Delphine com tamanha recepção. — Como você cresceu desde a última vez na feira, Franco! Quantos anos?
— Errr... — se confundiu nas palavras. Estava nervoso e os olhos curiosos buscavam por Gaya na casa ou qualquer objeto que a recordasse — ... vinte e cinco. Ainda completarei os vinte e se...
— Em março, não é? Lembramos bem da data do seu aniversário. E não me diga serem as mesmas luvas dos dezoito anos — levou as duas mãos até as próprias bochechas, a sorrir animada e encantada.
— Sim, são elas! Até hoje sou grato pelo presente que me deram, Sra. Delphine. Ah, e me desculpe pelo último acontecimento. Eu e a Gaya éramos muito inocentes e...
Não havia motivos para recuperar as lembranças diante da mãe da amada.
— É passado — deu de ombros e abanou as mãos. — Eu sei. Minha filha também deve entender. Venha, entre.
Apontou ao hall da habitação cheio de botas, chapéus de palha pendurados e guarda-chuvas coloridos. A porta fora fechada.
— Fomos apanhadas por sua vinda e... — foi interrompida antes que falasse aos cotovelos.
— Ela não se encontra aqui? — as irises azuis sondaram os cômodos. Persistiu em caçar a jovem. — Me refiro a Gaya.
Por instantes pregou as pálpebras, comprimiu a mandíbula e inspirou um ínfimo aroma adocicado de mel na cozinha que o fez retomar sensações. Nenhuma delas percebeu e considerariam estranho assistir um futuro padre se contorcer por culpa de um mero perfume.
Todavia, entregaria a alma ao Diabo de modo a reviver o mesmo dia com a Demdike na mesma cozinha.
Entretanto, ambos caminharam em direção à sala enquanto conversavam brevemente. Delphine esperava que Franco esquecesse um pouco sua filha.
— Gaya se ocupou com os estudos, trabalhos... a rotina da cidade grande, entende? Londres é agitada demais e ela gosta dessas coisas.
Ele apenas consentiu silente, porém, ansiava tomar toda informação dela. Ver alguma foto, principiar uma breve ligação. Mas qualquer coisa relacionada à jovem, se tornava um empecilho para seu sacerdócio.
— Sabia que eu e Anya planejamos renovar nossos votos de casamento? — arrumou o sofá para que ele se sentasse. — Precisamos disso.
— Fico muito feliz em saber, Sra. Delphine. Imensamente feliz por vocês e me faz firmar a crer no amor eterno. São como as mães que nunca tive.
— Ah, Franco, agradecemos! — os olhos principiaram a encher de lágrimas. — Mas por infelicidade, não é o mesmo pensamento dessa cidade, concorda? Gostaria de celebrar ao ar livre, na árvore que nos beijamos. Porém, não nos importamos se estamos felizes e juntas há mais de vinte anos. Ela é o amor da minha vida — olhou encantada para Anya que arrumava uma almofada por trás do pescoço de Anika que adorava ser mimada.
No íntimo, o Gregori desejava enxergar Gaya da mesma maneira caso estivessem juntos naquele instante. A considerava seu único amor.
E ao se achegarem nas duas, Franco abriu um extenso sorriso meigo direcionado à idosa que aparentava ter a semelhante idade na qual a conheceu, fora os fios brancos, crespos, a preencherem sua cabeça.
Contudo, a anciã não se deparava tão saudável como antes.
Anika não se abaixava feito antigamente, vivia com os ossos mais sensíveis, o que impossibilitava de cuidar do jardim similar há tempos atrás.
Uma bengala amarela se tornou parceira na locomoção pela casa, necessitava de ajuda para subir a escada, mesmo ao recusar receber, a audição não correspondia bem, no entanto, ainda ouvia as flores cantarem a cada átomo que ela sorria.
A visão também não era a mesma de sempre e agora enxergava Franco meramente embaçado. Todavia, a matriarca entendia que se tratava do último Gregori.
O garotinho ruivo que deixou de ser uma criança.
Gradualmente, a visão de Anika sumia e ela aceitava não enxergar mais.
Franco se agachou, apoiou uma das mãos sobre o braço da poltrona, analisou cada detalhe da matriarca e sentiu paz. Cheirava a jasmim e sabonete de rosas. Sempre arrumada, até em casa.
Não saía mais para jogar sinuca, comprar limões na feira, andar na cidade como gostava de fazer. Perdia as forças. Se tratava de uma bruxa com noventa e oito anos.
Anika entendia que viveria bem mais, todavia, aquela idade era suficiente. Para a anciã, já havia vivido o bastante e transmitido o legado de sua linhagem.
E assim, a idosa sorriu ao compreendê-lo, se ajeitou um pouco na poltrona, Delphine voltou a cortar cenouras, atenta na conversa e Anya sentou-se no sofá posicionado ao lado do assento de sua mãe.
— O garoto de cabelos feito folhas de plátano no outono — ele sorriu caridoso e a assistiu abaixar a cabeça. — Sinto que se tornou um rapaz independente, Franco. A natureza me fala.
A voz serena acolhia o amaldiçoado.
— E muito, Sra. Anika — se igualou à Anika, pendeu o olhar e fitou o tecido fino de sua calça como uma criança distraída. — Senti saudades da senhora. Aliás, de todas.
— Nós também, Franco — Anya sorriu com os lábios.
— Lamento por sua independência ter chegado tão cedo, menino — Anika se tomou em sinceridade.
Aquilo cortou Anya e Delphine que se entreolharam por segundos. Não queriam recordar os péssimos momentos. Nem imaginavam o que Gaya passava na presença do espírito maligno que sobrou para perturbar.
— Não, não se lamente. Atualmente estou bem, aceitei a vida, me apeguei em Deus e... — foi interrompido.
— Está mesmo, ou se esconde na religião para sanar as angústias que se evidenciam com a solidão?
Nem conseguiu responder. Seu silêncio declarou tudo. Franco não sustentava disfarces.
— Pense bem, menino — ainda o via conforme períodos atrás. Falava como se o educasse. — As dores podem se fortalecer. Cuide de si, das suas cicatrizes. Não tem que aceitar a atual circunstância.
— Mamãe...
Anya interveio, pôs a mão esquerda sobre a direita da mãe, num semblante ríspido e ansiava fiscalizar falas que instigariam algum gatilho ao Gregori.
— Consegue ver, Franco? Logo que tiver seus filhos e envelhecer, irão controlar tudo o que disser — resmungou e retirou a mão da filha por cima da sua.
— Errr... Sra. Anika — não sabia o que dizer ou contornar o constrangimento —, não terei filhos.
Sorriu envergonhado e coçou o queixo. A idosa não fazia tanta ideia dos caminhos que ele seguiu.
"Por minha culpa e infelicidade", ele pensou.
Anika olhou embaçado para Anya, que sorriu e encarou tudo com certa graça.
— Tudo bem, você pode adotar, se for esse o seu caso — piorou a situação.
— Mamãe! — Anya protestou, envergonhada — Conte a ela, Franco — sussurrou. — É melhor.
Consentiu sem receios.
— Sra. Anika, concluí meu seminário — libertou o ar dos pulmões. — Me tornarei um padre. Por isso, ter filhos não faz parte do plano.
"Porém, imagino como seriam. Desejaria que fossem como Gaya".
— Entendi, entendi... — ela se aproximou da filha, cochichou e supôs que Franco não a escutaria. — Não me disse que ele seria padre, Anya. E eu achei que Franco já havia se casado com a Gaya.
— Mãe, é uma longa história — revirou as escleras.
Delphine que focava em preparar a comida, logo ofereceu biscoitos guardados de aveia com suco de laranja ao ruivo, que aceitou, já acomodado ao lado de Anya, que abismou a evolução do rapaz.
— Franco, os tempos no seminário fizeram bem para você ou estou enganada? — afofou o espaço que se sentou.
— Muito bem, Sra. Anya. Por lá estudei teologia, filosofia, latim, assuntos que envolvem a religião católica, apesar de discordar em muitos quesitos. Também treinei jardinagem na instituição, pratiquei algumas atividades físicas para manter a saúde em dia, limpeza da biblioteca, essas coisas, entende? — bebeu um gole do suco, ao mesmo instante que Anika pediu que Anya trouxesse mais uma almofada de modo a apoiar os pés sobre a mesinha.
— Não sabia que no seminário fazia tudo isso — se mostrou curiosa.
— Os anos mudam tudo, Sra. Anika — sorriu anasalado. — Aliás, nem todos são assim, mas esse me surpreendeu — mordeu um pedaço de biscoito.
— E agora, és um padre? Nunca sei dessas coisas. Me compreende... não é nada do nosso interesse — Delphine questionou à medida que ligava o fogão.
— Não, ainda não. Seguirei em instantes à Cidade Velha de Edimburgo. Cumprirei dois meses como diácono transitório ao lado de um sacerdote designado a me instruir, até ser ordenado padre pelo bispo. Mas retornarei em breve, pois tenho uma casa, não é? Caso me transfiram para cá.
Anya subiu na intenção de apanhar almofada como fora solicitada.
— Que incrível, Franco! Respeito muito suas escolhas. Se sente bem assim, é o mais importante! Mas para ser sincera, imaginava que você e minha filha ficariam juntos...
Anya escutava toda a conversa e desceu falando enquanto trazia outra almofada para a mãe e ajeitou abaixo das pernas, a tranquilizar Anika.
— Foi apenas uma paixão de adolescência, Sra. Anya! Posso assegurar que, por sua filha, não possuo nenhum sentimento semelhante ao amor romântico. Gaya sempre será somente uma grande amiga. Ela sabe bem disso — mentiu feito um descarado.
Era típico dele fingir emoções em certas ocasiões, acobertar o que sentia. Mas não por tanto tempo. As expressões expunham o quanto era sonso.
— Que bom que superou os sentimentos, Franco. Da última vez que conversei com a Gaya, foi uma surpresa saber que conheceu alguém por lá — ele perdeu todo o equilíbrio. — E ao entender que não alimenta mais nada por ela, me conforta que serão ótimos amigos. Inclusive o conheceremos logo que a formatura de Gaya chegar.
Franco estremeceu ao ouvir de Delphine que Gaya mantinha um atual relacionamento na capital. Não deveria sentir nada, pois carregava dois motivos: se mostrava prestes a ser padre e não possuía sequer um laço amoroso com a amiga, visto que definiu o destino naquele dia.
Contudo, os lábios não se contentaram.
— Ela o quê? — riu nervoso e confuso. — Quero dizer: ela está bem? — exagerou ao simular não se importar, porém, se engasgou com o farelo do biscoito, sufocado ao descobrir.
Franco não almejava imaginá-la usar um anel de compromisso no dedo anelar esquerdo entregue por outra pessoa. Não suportava a ideia dela compartilhar todos os momentos ao lado de outro alguém e muito menos visualizá-la acima do colo de um estranho, despida, a esfregar sobre as coxas, se afundar com lentidão, a ter seus cachos perfumados puxados por outras mãos. Além de gemer entre os lábios por um nome que não era o seu.
Se recusava até a morte.
— Gaya noivou?! — vasos sanguíneos realçaram nas escleras e a voz titubeou.
Perdeu a razão por segundos.
— Não, ainda não — deu uma tapinha no ar e ele suspirou aliviado.
"Ainda não... torço que nunca".
Franco entendia que ambos seguiram seus caminhos, jurou que não se importaria dela estar em compromisso, mas imaginar Gaya Demdike apaixonada por outra pessoa, lhe consumia feito uma febre de arder os olhos. Sentiu estar transtornado ao receber a notícia. Rejeitava pensar na forma que a bruxa se encontrava atualmente. Se notou ciumento à distância. Enfurecido por não tê-la em seu campo de visão.
— Porém, quem sabe você celebre o casamento? — Delphine brincou e o deixou bem inquieto.
"Nunca em toda a minha existência. Negarei tal absurdo até o fim", reclamava calado.
— Está muito vermelho, querido. Se sente bem? Aceita mais um copo de suco? — suou frio à medida que digeria a situação.
Os pensamentos eram imaturos e destoavam da sua promessa como futuro padre. Repudiava admitir, mas Franco Gregori se enfureceu.
"Estou bem tranquilo. Porém, nem tanto porque quem quero, trata-se da sua filha, Sra. Anya. Dane-se tudo, mas eu daria a vida para escutá-la diante de mim, a me assumir isso. Ela não teria tanta coragem em me renegar".
Seu silêncio gritou ao não suportar aquela circunstância, no entanto, se recompôs mentalmente.
— Aceito outro copo de suco — sorriu sem graça.
— Às vezes não aceitamos muito as coisas, não é, Franco? — Anika puxou o constrangimento que ele evidenciou na voz.
— Mãe...
— Não há problema nisso, Sra. Anika. A Gaya é uma mulher livre para amar demais pessoas — retorceu os beiços por não querer aceitar. — E sou um diácono. Em breve padre. Há um abismo entre os dois e não planejo interferir na vida dela.
— Franco, você nunca interferiu — Delphine brincou. — Se não existisse esse "abismo", estaria com minha filha, não é?
"Péssimo mentiroso". Estamparia isso na testa.
— Não respondo como antes. Foi uma paixão da juventude.
— E por que não nega? — a bruxa compreendia ao encurralá-lo.
Descarado, o Gregori revelava as coisas sem nem perceber e todas já sabiam: Franco Gregori ainda amava Gaya Demdike.
Perto da porta, disposto a seguir até a Escócia, o rapaz fora acompanhado pelas duas bruxas mais jovens. As mães de Gaya seguiram com o homem até o fusca e queriam dizer algo.
— Franco, foi bom vê-lo de novo. Espero que retorne para cá algum dia — estavam abraçadas.
— Farei o possível para socorrer. Não as deixarei sozinhas. Ainda mais a Sra. Anika — ajustou para assegurar as malas no teto.
— A respeito disso, caso encontre Gaya em algum momento, não conte, Franco. Minha mãe se encontra debilitada por aceitar não ficar e está envelhecendo além do normal. Portanto, pode assustá-la. A avó é um dos maiores amores que ela possui.
— Sra. Anya, posso levá-la ao hospital. Estou de carro e não me importo de chegar algumas horas atrasado em Edimburgo. Já ofereci assistência e repito.
O jovem diácono se encostou no veículo.
— Querido, não entenderia. É algo acerca de nós, bruxas. Minha mãe não deseja mais permanecer aqui. É difícil, mas quando esse momento chega, o que nos resta é ceder a vontade da matriarca.
Anika dava indícios que a saúde regredia.
— De fato não entendo, Sra. Anya. Significa que... — o semblante, já abatido, despencou.
— Sim, querido — soou doloroso demais ouvir. — E logo que esse momento vir, se não for muito incômodo e caso se torne um padre, gostaria que mantivesse tudo em segredo. Queria somente apressar a notícia. Não era isso que eu desejava, mas estou antecipando a partida da minha mãe.
A angústia de se preparar para a despedida de um familiar que nem se foi, instigava dor profunda na alma.
— Me esforçarei para ajudá-las. De longe posso enviar um auxílio financeiro e...
— Não precisamos. Apenas queremos lhe adiantar sobre tudo — repetia para ele compreender. — A Gaya se ocupou com a carreira dela e nós não desejamos preocupar ninguém.
Na infância, Franco recordava da conversa com Gaya em relação às borboletas, misturado com o último Natal ao lado das Demdike. Além da canção das bruxas, tudo o que trazia bons sentimentos de um passado que não voltaria jamais.
Pensar em Anika abatida, pesava a consciência por não estar presente até o fim da idosa. Ao regressar ordenado como padre, cumpriria seu suporte, mas o processo da velhice, lhe assustava.
Já havia se acostumado com o pai a morrer cedo e seria possivelmente o próximo.
Naquele mesmo dia, o ruivo jurou nunca contar sobre Anika caso se encontrasse com Gaya Demdike. O que ele via como impossível de acontecer, visto que se afastaria para concluir sua formação.
Porém, o pedido de Anya marcou feito a sua segunda promessa antes de cumprir os votos.
Cidade Velha de Edimburgo, Fevereiro de 2018
— Franco? — Padre Lewis bateu na porta do rapaz. — Está por aí?
Em conversa com Deus, Franco Gregori ergueu os joelhos doloridos e tentou focar no terço de contas. A reprimir lágrimas por culpa das penitências. Deparava-se próximo de ser ordenado padre e se aproximava o bastante do Pai.
Plácido, atingiu a porta e abriu com calmaria e sobriedade. Aparentava estar em meditação.
— Padre Lewis, boa tarde — constavam umas duas horas da tarde, segundo o relógio de parede no quarto. — No que posso auxiliar?
Os demais diáconos descansavam do almoço nos aposentos ou na biblioteca. A Cidade Velha caía em chuva incessante.
— Carta para você.
Esticou o braço e entregou ao indivíduo que usava luvas, apanhou a carta em mãos e abriu em plena desconfiança ao enxergar seu superior.
Desconhecia o conteúdo nela, mas Lewis se mostrou animado. Talvez soubesse do que se tratava.
— Veio direto da diocese. Consta na frente. Pode comprovar — saltou os olhos nas letras traçadas.
Do envelope, Franco retirou um papel com quinze linhas. Os globos oculares correram a ler tudo com uma mera cautela e as escleras se expandiram até o fim da linha.
Por fim, o selo e assinatura da diocese e o bispo traçaram o final da mensagem.
O Gregori pôs a correspondência de volta no envelope, concedeu um olhar abismado ao Lewis e revelou o que constava escrito:
— É minha carta de transferência — lábios entreabertos denunciaram seu choque. — Enviaram.
— E o que diz? — se encostou na entrada e assistiu Franco se afastar e se sentar na ponta da cama, à medida que a chuva escorria na janela em meio ao nublado — Permanecerá aqui ou em outra localidade?
Uma trajetória inteira se passou na mente barulhenta de Franco. Ele olhou inerte para um canto do dormitório e massageou a coxa presa em algo. A carne, comprimida por um objeto pontiagudo, ardia ao recordar aonde iria.
— Regressarei para Rye. Tomarei conta das duas igrejas porque o padre incumbido faleceu.
A pacata cidade necessitava do homem que cresceu destinado a servir o deus cristão.
— Que Deus o acolha.
— Que Deus o acolha — repetiu. — Haverá uma missa de posse para me recepcionar e me encontro entre duas sensações.
Parecia que tudo corria sob domínio do destino. Por um instante, pensou que Deus o colocou lá para viver seus últimos tempos de vida antes de ser recolhido pela morte.
— É inédito, pois será padre — se evidenciou contente por ele. — Não concorda?
— Não é por causa disso — na respiração um pesar sufocava o percorrer do ar. — Voltarei para casa e há dois sentidos para isso. Queria e não queria. Acho que preferiria ir a qualquer lugar que não fosse Rye. Se tiver como interceder por mim, Padre Lewis.
— Sabe que não escolhemos...
— Sim, eu sei, eu sei..., porém, é o que sinto, compreende?
Lewis era curioso em descobrir os motivos de Franco se distanciar naquele momento de sua terra-natal. Não havia chegado ou percorrido ventos na Cidade Velha acerca da amizade com bruxas. Por incrível que parecesse.
Somente entendiam que fora acolhido pela vizinhança em seguida das mortes.
— Entendo — abaixou a cabeça e os olhos atingiram o piso. — Lhe deixarei sozinho e qualquer coisa, estarei na sala ou aviso para a Charlotte lhe convocar ao jantar.
— Não é necessário, padre. Mande um dos diáconos. Hugo já se prontificou para me chamar.
— Há algo de errado com a Charlotte? — ondulou as sobrancelhas.
— Ela é uma mulher admirável — também a considerava bonita. — Contudo, não me noto confortável com o auxílio constante dela. Às vezes estou em prece e sou interrompido por Charlotte. Então...
Franco detinha uma razão para não receber a faxineira em seu cômodo.
— Ficará tranquilo em limpar o próprio aposento? — contratava funcionários para os diáconos prestarem dedicação ao trajeto santo.
— Não imagina o quanto, Padre Lewis. Me viro só desde cedo.
Dentre os diáconos, a jovem encarregada de prestar assistência aos membros do lar paroquial, se derramava aos pés de Franco. Desde o dia que o homem ruivo pisou no ambiente.
Todavia, ao surpreendê-la, o rapaz não lhe concedia tanta importância.
Entregava-se à igreja.
Entendia que todos eram membros católicos, em formação sacerdotal, mas com o Gregori, a moça loira e alta se mostrava mais prestativa. E Franco compreendeu suas intenções.
Até um certo ponto que precisou se impor.
Charlotte observava Franco na biblioteca a folhear livros, caminhar muito cedo pelas ruas quando ela saía para completar os recursos da casa paroquial.
Mal recusava o olhar ao testemunhar com nitidez o volume acentuado a balançar na calça moletom ao passo que ele corria e suava abaixo do céu nublado. Sonhava com o futuro padre sem toda aquela cerimônia materializada em trajes.
O Gregori se tratava da reencarnação do pior caminho a ser cobiçado. Os tempos no seminário foram gloriosos para seu aspecto físico.
Ambos conversavam enquanto a moça limpava seu aposento e o ruivo estudava a bíblia numa cadeira a encarar a janela fechada. Até o instante que um dos diáconos lhe relatou que ouvira a funcionária confessar para a cozinheira sobre a paixão oculta e proibida pelo futuro sacerdote:
— Dizem que ele deve ter se apaixonado por alguém, o coração se privou de conhecer os desejos mundanos e decidiu estudar para ser padre, Celia.
Sentada na ponta da mesa, Charlotte mordiscava uma maçã à medida que a cozinheira mexia concentrada uma grande panela fervente com sopa de aspargos.
— As outras moças da igreja comentaram isso. Você soube? — a amiga discordou calada. — Fico atenta em tudo para descobrir o que o Gregori esconde e soa instigante. Ainda mais com as luvas. Desejaria entender o motivo de usá-las.
— Acho que deveria se afastar das fiéis e do sacerdote. São diáconos, Charlie — a referiu pelo apelido. — Depois não reclame se Deus lhe castigar. Não pode cobiçar os servos do Senhor.
— Tanto faz para mim — deu de ombros.
Enquanto ambas dialogavam, o colega do ruivo escutava todo o diálogo escondido atrás de uma parede próxima da cozinha. Havia passado próximo do recinto e se atentou no que falavam.
— Não me importo com isso. Acredito em Deus, mas sabe como os humanos são falhos. O diácono Gregori se trata de um belo e interessante rapaz, a voz dele corta meu ar, Celia. De até molhar calcinhas — soprou e se arrepiou ao se inclinar para a amiga, que até concordou desconcertada. — Suponho que instigue o mesmo em muitas pessoas, além de mim. Entende que jamais me atraí por futuros padres. Esse homem é de lamber os beiços. Não imagina o que presenciei durante as caminhadas dele pela cidade. Posso suspeitar que seja o segundo a carregar a "cruz", em sequência de Cristo.
— Quanta ofensa. Alguns minutos a conversar com Deus e deixará suas intenções. Padre Lewis não gostará nada disso. É capaz de lhe pôr na rua. Necessita respeitar estes homens. Sua mãe também não gostaria de saber.
— Veremos — abandonou a fruta ao pôr e morder o polegar. — Diáconos entram e saem daqui. Sinto que encontrei o meu. Claro, se ele não tiver ninguém em segredo. Sou respeitosa e empática.
— Nunca. Ele nem estaria aqui se pensar melhor. Deixe-o quieto. Não teme a colmeia de abelhas que mexe.
— É disso que eu gosto.
Se dispôs a sanar os mistérios do amaldiçoado que detinha olhos apenas na jovem curandeira que sentia falta dele. No coração de Franco, somente ela tomava conta. Se evidenciava fiel à Demdike.
Franco situava-se no quarto por um bom tempo após a missa de um dos domingos. Se acostumava com a rotina e passava tempos ao pintar quadros no dormitório. Era um momento de mansidão.
À tarde, havia frequentado a cidade no intuito de comprar materiais de pintura. Novas telas, pincéis com cerdas pontudas. Como o pai lhe ensinara e fazia outrora, à medida que vivia por seu filho.
Em meio à tranquilidade e concentração na tela, dois toques foram concedidos na porta.
— Entre — a voz firme ecoou no recinto e nem ao menos olhou para a porta, focado em seu quadro.
Franco esperava que fosse qualquer diácono ou padre. Não sabia que se tratava de Charlotte.
— Com licença, diácono Gregori — a pose retraída diante dele, o deixava meramente incomodado. — Percebi estar um pouco distante na casa e como não solicitou que arrumasse sua acomodação por hoje, eu...
— Não, não precisa. Costumo limpar meu aposento sozinho desde pequeno. Agradeço — cortou a funcionária.
Voltou a pincelar a óleo algumas flores e experienciava períodos a estudar visualmente os jardins das redondezas. Contudo, o mais estranho para a moça, concernia nos grandes espelhos virados ou cobertos.
Franco temia reflexos gigantes em casas desde a morte do pai. Os nas janelas e do retrovisor no carro não causavam tremendo incômodo, por sentir a necessidade de usar. Entretanto, a imagem do pai no banco traseiro já perturbou seu trajeto pela localidade e necessitou estacionar em local proibido. A visão do Sr. Callahan a sumir no Rio Brede e fitar a própria expressão na água, se tornou um pesadelo real que lidava com o cotidiano.
— Então — arfou nervosa. — Vim saber também como o senhor está. As pessoas se preocupam com seu bem-estar, é tão solitário...
Parecia muito mais belo enquanto se mantinha fixado na arte e a mão esquerda guiava o pincel a traçar folhas após molhar na tinta verde-musgo.
Igualmente não era bobo e decifrou o que a moça demonstrava. Possuía interesse por ele.
— Estou bem, Srta. Goldemberg — interrompeu as pinceladas em tom áspero. — Creio não precisar se importar comigo e nem deveria. Sei bem o que expõe com suas palavras. Por que não me conta a verdade? — soou provocante.
A jovem não compreendia se o diácono se portava grosseiro ou a lhe atrair com a calmaria e sedução na voz. E novamente as irises verde-oliva da moça passearam no corpo dele, a investigar o oculto de Franco.
Além de notar, mais uma vez, uma mera elevação na coxa direita, próximo da virilha do homem. Algo pontudo, afiado a espremer a pele.
— É um cilício¹... — sibilou perplexa sem ele escutar.
A moça entendia do que se tratava. O mais esquisito, resultava em entender os motivos de utilizar com tanta frequência. Mais que os demais diáconos.
Todavia, o futuro padre detinha o objetivo de se acostumar com a perfuração do metal e o comprimir do acessório na coxa, na intenção de atingir o desconforto físico sentido por Cristo na cruz. Além de adquirir a ânsia de se santificar por completo e escapar dos impulsos mundanos que afastam da vida sagrada.
Porém, fora da esfera cristã, Charlotte conhecia que aquilo servia feito um objeto de incitação à dor e orgasmo. E assim o transformava num indivíduo interessante de se observar e desvendar.
Durante as noites, quando se apartava das roupas, despido por inteiro, selava as cortinas e trancava bem a porta, o futuro padre se acomodava no colchão para encarar o cilício preso na carne vermelha, machucada por culpa da pressão.
O cilício afastava da vontade de proporcionar prazer próprio ou repelir o vício na mulher que amava. Considerava funcionar entre sua trajetória no ambiente. No entanto, ele bem compreendia o quanto se equivocou nas ações.
A postura ereta diante da arte mostrava classe e controle no homem interrompido pela jovem.
Até que Charlie fechou a porta por trás com lentidão e o assustou de súbito. Os olhos azuis expandiram em choque, a repelir a moça. Foi um pouco intrometida, mas Franco ainda não deixou explícito os sinceros sentimentos.
— Diácono, anseio que o Senhor me perdoe, mas acho que estou me apaixonando... — a declaração dançou nos beiços.
— Pare por aí, Srta. Goldemberg. Por favor — gesticulou para se distanciar. — Não... — respirou fundo e libertou o ar — ... não tente nada.
Ela se achegava lenta e o sacerdote não estava disposto a ser frio. Nunca foi de aproximações e a jovem detinha consigo a tal informação.
— Não fui tão sincero e quero que considere: meu amor é por Deus e Cristo. Serei um padre e não permito meu coração aberto para ninguém. Não correspondo amores românticos, senhorita.
Jamais ousaria dizer o mesmo para Gaya Demdike. Tomaria a bruxa nos braços e beijos. Além de carregá-la até sua cama.
— Desculpe-me — recuou e sentiu total constrangimento. — Me sinto sem graça por tal ato indecente. Prometo que nunca me comportarei dessa forma com nenhum sacerdote.
— Não foi. Até considero educada pela compreensão. Só não entrego e me recuso a ceder o coração a ninguém. Minha vida é dedicada ao sacerdócio. Reparei que durante o nosso convívio por aqui, devo ter passado outra impressão e quem deve desculpas, sou eu. Tudo bem?
Consentiu envergonhada ao extremo.
— Há diversas pessoas por aí que talvez queiram ter seu amor, Charlotte. Mas entre essas pessoas, os demais diáconos e eu, não existimos — uma linha fina traçou um sorriso frouxo e confortante. — Espero que entenda.
Insistiu em implorar por perdão, mas antes de se retirar, ao olhar para um canto escuro do quarto, onde a luz externa não tocava, notou existir um quadro coberto por um lençol branco a ocultar meros detalhes. Entretanto, um fragmento da pintura fora evidente: o busto de uma mulher negra retinta coberta em cachos crespos feito uma vívida árvore.
Resultou num belo rosto e Charlotte absorveu como qualquer estranho. Nem imaginava que qualquer pessoa surgiria perante o diácono, e ele persistiria nas emoções secretas por Gaya.
Franco Gregori viveria uma eternidade e continuaria a adorar sua bruxa.
— Gaya, se não posso tê-la agora, a pintarei até que meus dedos sangrem. Me amaldiçoou a te amar e desejar.
Conversou com a pintura assim que Charlie se retirou do ambiente e removeu o tecido para se martirizar. Nesse instante, o cilício, já apertado na carne, se contraiu com o fluxo sanguíneo do corpo que corria até a ereção. Os lábios resmungaram até entender de onde vinha a real dor que se tornava suportável.
A ruína do Gregori também habitava e se repetia nos quadros.
— Aqui, será unicamente minha mediante as telas. E um dia, te removerei delas com minhas mãos. Revidarei toda a minha saudade em seu corpo. Sinto que acontecerá. Eu espero.
¹Cilício: É uma pequena corrente de metal leve, com pequenos dentes, lixados, ou de material rústico. Segundo os modelos usados por vários santos, se usa no corpo, mas, em geral, em torno das coxas, braço ou cintura (alguns no dorso). Os católicos apostólicos romanos usam para fazer penitência corporal. A penitência feita com o cilício, está na classe das penitências de "Super Rogação". O cilício faz a pessoa se sentir desconfortável, mas não causa sangramento ou lesão de qualquer tipo, nem dificultam as atividades normais.
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