Prólogo
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25 de Dezembro de 1886
Era uma noite especial, estava nevando como de costume e o cheiro do banquete natalino dava lugar à fumaça espessa do charuto de Charles, que aos poucos invadia o nariz alheio e causava arrepios nos fumantes passivos.
Charles não dava a mínima. Afinal, ele era o homem da casa e se alguém ousasse reclamar, ele simplesmente fecharia a cara e acabaria com o bom ânimo da família.
Foi um ano difícil, mas agora seus esforços foram recompensados. Ele via os frutos do seu trabalho árduo: duas crianças saudáveis brincando ao lado da lareira, sua mãe bordando a última touca do ano e sua esposa terminando de decorar a mesa.
— Estou dizendo, ele virá hoje! —Trevor, o filho mais novo, anunciou animado.
— Chega de bobeira, o Papai Noel não existe. —Eudora, a mais velha, respondeu.
— Eu não tô mentindo, eu conversei com ele semana passada. Ele disse que nos visitará e se você não acredita, o problema é seu.
— Crianças! —A mãe repreendeu de longe.— Eudora, deixa o Trevor se divertir.
Charles observava perplexo, sem dar um pio. A imaginação do garoto o espantava sem precedentes e talvez ele desejasse aquela inocência. Ser um adulto naquela época era perturbador e às vezes sorrir era como pedir para virar uma chacota.
— Bobo, quero ver sua cara de decepção quando acordar e ver que não teve presente do velho barrigudo.
— Eu me comportei bem o ano todo, você que foi má e não vai receber nada dele.
A cada tragada, o charuto diminuía o tamanho e aquilo desapontava Charles. Sem perceber, o tempo passou e a ceia já estava pronta. Todos se sentaram e agradeceram a Deus pelo alimento daquela noite, e depois se deliciaram.
Entre gargalhadas e bons goles de vinho, o sentimento de união crescia rapidamente e Charles contemplava a benção que era ter aquelas pessoas ao seu redor. Ele era um homem de sorte por ter uma família perfeita.
Após abrirem os presentes, estava na hora de dormir. O dia foi longo e as barrigas estavam cheias, e nada melhor do que uma cama e uma coberta fofa para esquentar o corpo da frente fria.
— Mamãe, não esquece de deixar os biscoitos e o copo de leite na mesa. —Trevor disse animado.
— Tudo bem, filho. Agora descansa, a mamãe te ama! —Marilyn deu um beijo em sua testa e fechou a porta do quarto.
Ao descer as escadas, ela foi até a cozinha e separou o lanche do bom velhinho: biscoitos vencidos e o restante do leite. Papai Noel não existe, então é melhor não desperdiçar comida boa, certo?
— Quer terminar de beber o vinho? —Charles se aproximou.
— Acho melhor a gente ir dormir também, já está tarde. —Ela sorriu.
— Você que manda, senhorita. —Ele a pegou no colo e subiu as escadas, mas um barulho o interrompeu.
— Foi só o copo de leite, amanhã eu limpo. —Marilyn respondeu.
No outro cômodo, Trevor olhava para a janela na esperança de flagrar o Papai Noel, mas em vão. Os minutos corriam e a única coisa que podia ser vista era a neve branca e macia cobrindo a rua e o telhado das casas vizinhas.
Quando a sua esperança estava prestes a morrer, ele escutou gritos vindo do corredor e se escondeu em baixo da cama. O medo tomava conta da sua mente e seus dedos tremiam em contato com a madeira velha.
Pela greta inferior da porta, uma sombra cobria o pouco de luz que tinha e aquilo assustava o pequeno garoto. Os gritos não paravam e não era só isso que deixava Trevor apavorado. O barulho de algo dilacerando sua família era agonizante.
Trevor cobriu suas orelhas, mas o som se tornava cada vez mais alto, até que tudo ficou em silêncio bruscamente. Os gritos cessaram e ele continuou escondido ali.
A porta se abriu e deslizou lentamente, dando um vislumbre do que havia acontecido do outro lado: uma carnificina total. O corpo de sua irmã estava partido ao meio e suas tripas formavam um desenho no chão.
Sua avó estava com a cabeça separada do corpo e os braços curvados para dentro. Já sua mãe teve a pele arrancada e o intestino parcialmente devorado, mas tinha algo ainda mais traumatizante nisso.
Seu pai estava estático, segurando um machado e com a roupa toda ensanguentada. Seus olhos refletiam o terror e o vazio da sua alma que outrora estava encharcada de compaixão.
Trevor observava calado enquanto segurava o choro. O medo de ser pego o dominou completamente. Ele não reconhecia o próprio pai, aquele que supostamente deveria proteger e cuidar da família.
Segundos depois, Charles sacou um revólver e atirou na própria cabeça, espalhando seu sangue e miolos pelas paredes do quarto. Os olhos saltaram para fora, através do buraco que se formou em seu rosto.
Trevor respirou fundo e saiu de baixo da cama, e tentou atravessar o quarto sem olhar para o massacre, até que algo chamou a sua atenção: a barriga de Charles se abrindo por dentro e revelando garras famintas.
Aos poucos, uma criatura horrenda e descomunal se revelou, deixando a criança paralisada de pavor. Embora enojado, ele viu que as feições do demônio eram familiares. Aquilo era o Papai Noel.
— Olá, pequenino. —Sua voz ecoou pela casa. — Você deixou os biscoitos e o copo de leite na mesa? —A criatura sorriu de forma selvagem.
— Você não é o Papai Noel. —Trevor estremeceu.
— Mas eu nunca disse que era ele, só falei que te visitaria hoje. —O demônio permaneceu com seu sorriso de canto a canto.
Trevor, sem esboçar a tristeza que sentia, deixou lágrimas salgadas escorrerem pelas bochechas manchadas de sangue. Sua boca estava amarga e seca, tomada pelo desgosto de ter confiado cegamente em algo que não era o bom velhinho.
A estupidez de ser uma criança inocente fez com que sua família inteira morresse e agora ele estava desolado. Seus joelhos tocaram a madeira e ela rangeu. Aquilo foi o som da sua desistência. Ele só queria encontrar a irmã e pedir desculpas por ser tolo.
Insatisfeito com o sofrimento do garoto, o monstro segurou Trevor pela mão e o puxou para perto de si. Tomado pelo desejo de saciar a fome, ele o abocanhou sem delicadeza e quebrou seus ossos, um por um.
Sua mordida feroz desmembrava a criança que gritava e agonizava por causa da dor, enquanto o Papai Noel se divertia com as entranhas e o sabor do seu fígado.
Feliz natal.
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