8. Frágeis memórias
❀ Capítulo 8 | O Silêncio das Flores ❀
No fim de semana, Zoey se preparava para viajar com a família para uma cidade próxima, onde moravam seus avós maternos. Era aniversário de setenta anos de seu avô, e toda família se reuniria – para a infelicidade de Zoey e outros parentes que se desgostavam. No começo, ela insistiu para que ficasse em casa, mas os pais não deixaram.
Não que ela não se importasse com seus avós. Ela se importava mais que eles imaginavam, porém, era sempre difícil para ela se encontrar com outros membros da família. A pressão para que ela falasse era ainda maior quando envolvia seus avós, primos e tios. Ela se culpava e lamentava muito o fato de não conseguir falar, sobretudo com seus avós. Eram comuns comentários como Ela não fala porque não gosta de mim – o que, absolutamente, não era verdade. Na maior parte das vezes, Zoey não sabia expressar sentimentos – sejam eles através de beijos, abraços ou através da escrita. O contato físico, principalmente, sempre fora complicado – e ela não sabia se se tratava de timidez ou apatia.
Os pensamentos invadiram a mente de Zoey enquanto arrumava a mochila com seus pertences. Havia acabado de voltar da clínica, na qual Zoey teve sua última sessão com a Dra. Zélia. Fora um tanto estranho – em menos de meia-hora, a consulta terminou e a mãe, que havia levado a filha naquele dia, foi chamada.
- Senhora Daiane, por favor, poderíamos conversar? – a psicóloga chamou pela mãe de Zoey, enquanto a garota voltava para a sala de espera. A mãe levantou-se e acompanhou a profissional, que parecia um tanto abatida naquele dia.
Zoey conseguia imaginar o motivo. Foram quase oito sessões sem nenhuma solução ou nenhuma melhora. Era sempre a mesma coisa: perguntas, respostas silenciosas em papéis, o relógio digital contando as horas e uma psicóloga pensativa.
Dez minutos depois, sua mãe estava de volta à sala de espera. Zoey não soube decifrar sua expressão inicialmente; porém, quando entraram no carro para irem embora, ela olhou um tanto decepcionada para a filha:
- Ela devolverá o dinheiro da última sessão – disse. - Nos recomendou outro profissional, pois ela não saberá ajudá-la.
Zoey baixou a cabeça e cutucou a unha de um dos dedos.
- Tá bom... – ela murmurou.
Ela ouviu a mãe soltar um suspiro e ligar o carro.
- Eu não sei mais o que fazer com você. – ela completou.
Os olhos da moça marejaram um pouco. Não sabia o porquê de estar tão sensível nos últimos tempos – era como se Zoey estivesse chegando ao limite e estava prestes a transbordar. O tom da mãe, que revelava certa irritação para com a filha, deixou Zoey pior. Era como se a culpa fosse dela. Desde o começo ela sabia que não queria aquilo. Não queria que os pais gastassem dinheiro e o precioso tempo com ela. Sabia que nada adiantaria – ela estava perdida.
A pequena viagem que faria após o almoço não melhorou a sensação de fracasso e culpa – sabia que seria um dia cheio e cansativo. Após almoçar, ela colocou uma calça jeans, o all star de sempre e uma jaqueta larga por cima da blusa rosa-bebê que usava. Penteou os cabelos de qualquer jeito, prendendo-os em um rabo-de-cavalo e deixando a franja cobrir parte de seu rosto. Enfiou-se no banco de trás do carro, ouvindo os lamentos de Mike na garagem. Sofia já estava lá, presa à cadeira infantil, conversando com seu ursinho de pelúcia e animada como sempre.
Zoey colocou os fones de ouvido e encostou a cabeça na janela quando o veículo saiu da garagem. Durante todo o trajeto, ela ficou escutando música baixinho enquanto observava os poucos carros que passavam pela rodovia. Entretanto, seus pensamentos não estavam na música que ouvia ou na estrada que se passava à sua frente. Pela primeira vez desde os seus dez anos, ela pensava em seu futuro. As palavras da professora de História ecoavam sem parar em sua mente: As pessoas vão começar a se afastar de você. Não vão mais querer te ajudar. E o que seria dela em dois anos, quando teria que fazer faculdade? Como faria amigos? Ela se casaria um dia? Eu não sei mais o que fazer com você, dissera a mãe. Quando você vai falar?, diziam os outros.
Pensamentos assustadores começaram a emergir de repente: Zoey, você não tem jeito. Deveria morrer logo.
A família estava no meio da viagem quando Zoey não aguentou mais. Começou a chorar intensamente e de repente, o que assustou a todos. O pai, que dirigia, parou o carro em uma lojinha de um posto de gasolina. Assustados, perguntaram o que havia acontecido, mas Zoey não soube responder. Não naquele momento.
❀❀❀
Com os olhos inchados e ainda fungando, Zoey chegou à casa dos avós.
- Por favor, não fique com essa cara – pediu o pai. A filha assentiu, obediente. Tentou sorrir quando os avós apareceram para recebê-los; mas eles perceberam que havia algo errado.
- Que cara essa, menina? Estava chorando? – perguntou a avó, passando o braço ao redor do corpo da neta em um abraço. Ela balançou a cabeça, negando, e abraçou a avó de volta. Os cabelos curtos pareciam ainda mais brancos que antes, e tanto ela quanto o avô pareciam mais baixos.
- Coisa de adolescente, mãe – a mãe de Zoey falou, levando as mochilas para dentro de casa.
- Oh, sim! Essa idade é um terror – Zoey fingiu que não estava prestando atenção e entrou na casa, indo direto para o quarto dos hóspedes. Eles iam ficar ali apenas por um dia, mas a sensação é que ficariam por uma semana.
Zoey ficara no quarto de hóspedes praticamente o dia todo, lendo um livro ou mexendo no celular, até que os convidados da família começaram a chegar. A mãe insistiu para que ela fosse cumprimentar os tios, mas ela negou:
- Minha cabeça está doendo – ela disse quase sussurrando. – Depois.
Zoey não gostava de mentir e teria que enfrentar seus familiares de qualquer jeito, então, não demorou muito para que ela se esbarrasse com uma das suas tias quando atravessava o corredor para ir ao banheiro.
- Zoey! Como você está crescida! – a tia gritou no corredor, abraçando-a exageradamente. – Venha ver seu tio, ele está com saudades de você.
Completamente desarrumada – não que ela se importasse com isso – e os olhos ainda inchados, a tia praticamente empurrou-a para a sala de visitas. Sem preparar-se, ela teve que cumprimentar cada um dos primos e tios; dando abraços sem graças e sorrisos tímidos. Ela estava prestes a voltar para o quarto quando a mesma tia puxou-a para se sentar ao seu lado. Ela tinha a sensação que todos estavam observando-a – até mesmo o bebê no colo de uma das primas, que havia dado a luz há pouco tempo. Um primo de dez anos cochichava no ouvido da mãe, para em seguida olhar desconfiado para Zoey. Será que falava dela? A avó não parava de observá-la pelo canto do olho, e a janela com uma pesada cortina que antes fora branca estava fechada. Alguém havia ligado a televisão e já passava a novela das seis. Tios, primos e amigos dos avós que chegaram depois falavam e riam sem parar. Alguém tocou a campainha, e um enorme bolo fora colocado na cozinha.
Zoey tentou relaxar, mas não conseguiu.
Um de seus primos mais novos começou a perguntar por que ela não falava com ele, e Zoey não soube como reagir. Era apenas uma criança curiosa – e a moça já teve que lidar com muitas ao longo de sua vida. Não se ofendia pois sabia que, naquele caso, não era por mal. Entretanto, sentia-se ainda pior: ela, uma adolescente de quinze anos, não conseguia falar com uma criança. Seu maior medo ao tentar verbalizar era a reação das pessoas, e ela não esperava nada mais que um grito de surpresa de uma criança que nunca havia escutado sua voz. Aquele pensamento a aterrorizava desde de a infância de Zoey.
Não demorou muito para que a família se unisse na mesa de jantar para cantar parabéns. Zoey se juntou a eles e se limitou a bater palmas, enquanto as crianças se juntavam ao redor da mesa encarando o bolo de chocolate. Zoey não se importava muito com o parabéns pra você, desde não fosse para ela. Desde os doze anos ela não comemorava seus aniversários com festas; mas se lembrava perfeitamente das outras festas de aniversário. Ela amava receber os amigos e colegas da escola em sua casa, receber presentes e comer salgadinhos e bolos, mas odiava o som dos balões e de um bando de crianças e adultos batendo palmas e cantando, conforme a pequena Zoey se contorcia e chorava no colo dos pais na frente do todos. Foi assim desde os seus três anos até os onze, quando as festas se limitaram a bolos com a família e alguns vizinhos – sem balões e sem parabéns pra você.
A moça não soube explicar o que aconteceu em seguida – fora tudo emocional e inconsciente demais para que houvesse controle. Logo quando o grupo de pessoas ao redor da mesa começou a cantar e a bater palmas, Zoey sentiu seu coração acelerar e a respiração ficar ofegante. Imagens e pensamentos começaram a surgir em sua cabeça. Lembranças de infância, onde a pequena Zoey se expunha na frente de todos os colegas e familiares, enquanto estes cantavam e batiam palmas para ela. Colocando as mãozinhas no ouvido, ela choramingava assustada, e todos achavam graça. Zoey nunca soube explicar aquele medo. Sentia-se ainda mais exposta e todo aquele barulho a incomodava. Por isso, tampava os ouvidos e torcia para que aquilo acabasse logo.
O som das palmas ecoava pela sala e invadia os ouvidos de Zoey como zunidos ensurdecedores. Zoey encostou-se à parede atrás dela quando a tontura tomou conta de seu corpo, conforme lágrimas escapavam de seus olhos. Mais palmas. Mais gritos. Zoey teve vontade de gritar, mas é claro que nada saiu de sua boca.
Ninguém viu quando ela saiu correndo para o quarto, apoiando-se nas paredes até chegar à cama. Não conseguia controlar os pensamentos em relação ao seu futuro e as lembranças de infância, que a fazia lembrar constantemente de quem era e quem poderia ser. Ela tentava sempre evitar pensar em qualquer coisa que remetia ao seu passado – até mesmo fotos de quando era pequena ela preferia deixar fora de vista. Mas não pensar tornava-se cada vez mais difícil. Consequentemente, seus pensamentos seguiam cada vez mais acelerados, deixando Zoey sem ar e zonza. Não percebeu quando começou a chorar novamente, enquanto encolhia-se na cama e terríveis pensamentos a perturbavam; juntando-se com suas frágeis memórias. Memórias que a faziam se sentir ainda mais envergonhada de ser da forma que era. Recordações que a faziam querer voltar ao tempo para mudar cada parte de si; para poder renascer como uma nova Zoey – uma menina extrovertida, falante e feliz. Uma criança que não tinha medo de festas de aniversários, medo de palcos, de dançar e cantar alto.
Mas não havia como voltar atrás. Lamentar o passado era inútil, porém, pensar no futuro era ainda pior. Pois ela não o via. Zoey não conseguia ver o próprio futuro. Quem ela seria? O que ela faria? Será que conseguiria trabalhar, namorar, fazer alguma faculdade? Por mais que tentasse, ela não conseguia ver nada disso. Ela tinha sonhos, mas nada daquilo parecia possível para aquela Zoey.
A única coisa que poderia pensar era no presente. E seu presente, naquele momento, encontrava-se no caos. Ela torceu para que ninguém a encontrasse em sua lástima, expressando-se de forma tão íntima.
Mas ninguém notou a ausência de Zoey. Todos já haviam se acostumado com seu silêncio.
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