5. Marcas subjetivas
❀Capítulo 5 | O Silêncio das Flores ❀
Alguns meses se passaram e nada mudou. A rotina de Zoey era a mesma: ir ao colégio de segunda à sexta, psicóloga aos sábados. Não havia tido muito progresso com a Dra. Zélia, o que gerou uma conversa séria entre os pais da moça sobre mudá-la de profissional. Zoey não discordava: era sempre a mesma coisa nas consultas – perguntas objetivas, anotações silenciosas e descontentamento por parte dela e da psicóloga. Dra. Zélia era gentil e paciente, e de fato tentava compreendê-la; porém não havia uma conclusão exata sobre o caso. Nas últimas consultas, Zoey teve a impressão que a psicóloga estava quase convencida de que a paciente havia sofrido um trauma de infância, mas que esta havia esquecido como forma de defesa. Zoey negava, pois, de fato, não se lembrava de ter sofrido nada a ponto de não conseguir falar com certas pessoas.
Na escola, o período de provas chegou junto com a gama de trabalhos finais para realizar. Grupos eram formados entre os alunos e, como sempre, Zoey nunca era escolhida. Os professores, então, pediam a um dos grupos que incluísse a colega. Eles aceitavam de bom grado, mas não que fizesse alguma diferença. Apesar de ajudar na execução dos trabalhos, fazendo pesquisas e montando as apresentações, Zoey nunca apresentava. Muitas vezes, isso a fazia sentir-se inútil.
Quando a professora de História anunciou um trabalho para a semana seguinte, os alunos reclamaram baixinho. Aqueles dias finais do semestre eram bastante apertados, mas a professora não parecia ligar para o conforto e o tempo dos alunos. Ela era uma mulher exigente, e não era só com Zoey. Ao contrário dos outros professores, ela não deixou que os grupos se formassem por vontade dos alunos. Daya já havia chegado com uma lista com nomes sorteados e o tema que cada grupo deveria apresentar. Aquilo também fora motivo de reclamação, mas a professora não aceitava desaforo. Por isso, os alunos tiveram que aceitar enquanto ouviam seus nomes serem mencionados em grupos com pessoas as quais não tinham afinidade alguma.
- Grupo número três; Revolução Francesa: – a professora olhou para os alunos por baixo dos óculos de grau – Amanda, Carlos, Kate, William e Zoey.
Zoey arregalou levemente os olhos, esforçando-se para não olhar para o colega a sua frente. Não queria ver a reação dele. Por mais que Zoey ainda não soubesse o motivo, ainda se importava com o que aquele garoto em específico pensava sobre ela. Ele nunca a cumprimentava ou olhava para ela – e era melhor que continuasse assim.
Amanda e Kate não eram um problema; elas estudavam com Zoey desde o fundamental. Mas Carlos, um garoto alto de cabelos claros, fazia parte do grupo dos alunos indisciplinados. Ele sempre ria quando Zoey era colocada em situações constrangedoras, e, apesar de nunca ser autor das piadas, sabia que o garoto não gostava dela. E Liam... Bem, ela ficava com os nervos à flor da pele só de pensar que teriam que fazer um trabalho juntos.
- Que tal na minha casa, no sábado à tarde? – Amanda se aproximou de Liam. Depois, olhou por cima do ombro e fitou Zoey. – Você pode, Zoey?
Zoey assentiu. Amanda não morava muito longe de sua casa – ela poderia ir a pé. Ela não tinha o costume de ir à casa dos colegas, pois raramente era convidada e o desconforto que sentia às vezes era grande demais.
- Tudo bem – Liam respondeu, e a colega se voltou para ele. – Me passe o endereço depois.
- Ok, nerd. Leve o seu notebook, o meu está precisando jogar na parede – Amanda disse. – Ah, e se quiserem, levem roupa de banho. Tenho piscina. Podemos aproveitar um pouco depois que fizermos o trabalho.
Ela sorriu para Zoey, e a garota deu um sorriso tímido de volta. Apesar delas não serem próximas, Amanda sempre fora gentil com ela. Pelo menos, teve sorte de ter sido incluída no grupo dela – e o tema o qual teriam que apresentar não era assim tão ruim.
O simples fato de ter que ir à casa da colega deixou Zoey um tanto ansiosa – mais do que normalmente ficaria. Sabia que era assim que se sentia em todas as situações sociais, mas, naquela ocasião em especial, mal havia conseguido dormir na noite anterior. Pela manhã, o pai a levou à psicóloga. Depois do almoço, Zoey juntou suas coisas na mochila e se preparou para ir à casa da colega.
- Tem certeza que não quer que eu a leve? – a mãe passou por ela com a chave do carro. – Tenho que ir ao mercado...
Ela olhou para os olhos escuros e preocupados da mãe.
- Não precisa, mãe. É praticamente minha vizinha – ela disse, ajeitando a mochila nas costas. A mãe colocou uma mecha de cabelo da filha por trás da orelha e ajeitou sua camisa branca. Sabia que a mãe a achava uma desleixada. Não a culpava. Zoey nunca se considerou vaidosa, apesar de não achar que se tratava de uma escolha.
Ela chegou à casa de Amanda 13 horas em ponto. Encarou o portão marrom e o interfone ao lado. Pairou o dedo pelo botão azul e fitou o aparelho. Sem pensar muito, apertou o botão e esperou.
- Quem é? – ela ouviu uma voz pelo aparelho. Zoey enxugou as mãos sobre o short e engoliu em seco. – Zoey? É você? Espere aí, estou indo.
Zoey ouviu o portão menor se abrindo e esperou. Um minuto depois, a colega abriu-o e sorriu para ela. Abraçou-a, dando-lhe boas vindas. Zoey, que tinha dificuldades quanto a contato físico com outro humano, atrapalhou-se ao abraçá-la de volta e quase tropeçou.
- Você foi a primeira a chegar – Amanda disse, guiando-a até a varanda próxima à piscina. Havia uma churrasqueira ali, além de uma grande mesa de madeira. Alguns cadernos estavam espalhados sobre ela.
A casa da colega era grande, mas aparentava ser velha. Zoey sentou-se em uma das cadeiras e encarou a piscina com água cristalina. O sol da tarde batia na água, refletindo pontinhos brilhantes sobre a superfície. A moça repreendeu a si mesma por não trazer as roupas de banho – sabia que não teria coragem de nadar na frente dos colegas. Principalmente na frente de Liam. Não que ela tivesse vergonha do próprio corpo ou alguma coisa do gênero – se expor de forma tão íntima era um tanto complicado para ela.
Não demorou muito para que o restante do grupo chegasse. Liam chegou junto com Kate, usando uma roupa de manga comprida cinza e calças jeans. Levava a mochila escolar nas costas. Zoey pôde ver o biquíni por baixo da camisa de Kate, que chegara comemorando com uma garrafa de refrigerante em mãos. Carlos foi o último a chegar com sua bicicleta.
De cabeça baixa, Liam jogou a mochila sobre a mesa e sentou-se ao lado de Zoey.
- Oi. – ele falou, abrindo o zíper e tirando um notebook da mochila. Em nenhum momento olhou para ela, mas mesmo assim deixou-a nervosa. Liam nunca havia falado com a moça. Oi, a voz doce e grave dele se repetia na mente dela.
Ela também queria dizer-lhe Oi. Queria abraçá-lo tão naturalmente quanto Amanda fez quando o garoto chegou. Queria poder dar-lhe um sorriso sem se sentir tão idiota. Mas a única coisa que conseguiu fazer foi fitar a apostila de História e ajeitar a longa franja na frente do rosto. Estava acostumada com Liam sentado à sua frente, tão concentrado e quieto, mas não tão próximo daquela forma. Ele poderia ter se sentado em qualquer outro lugar; entretanto, sentou-se ao seu lado.
Zoey não sabia se se sentia feliz ou agoniada com aquilo. Através do véu de cabelos que cobria a parte esquerda de seu rosto, ela observou-o de soslaio enquanto o garoto ligava o aparelho. Zoey observou os adesivos de Star Wars e outras personagens colados no notebook e o papel de parede na tela – um gato cinzento deitado sobre um sofá. Deveria ser dele. Viu suas mãos digitarem ao abrir o Google. Ele usava um anel prateado no dedão esquerdo, e todas as unhas se encontravam roídas. Zoey quase riu. Pelo menos, eles tinham algo em comum – a compulsão por roer unhas. Os cachos castanhos claros cobriam as orelhas e parte do rosto, os quais geralmente ficavam escondidos no capuz do inseparável moletom preto. Mesmo com o clima quente, o garoto sempre usava roupas de frio. Zoey não podia reclamar – aquela blusa cinza, em especial, ficava bem nele.
A moça não percebeu que havia passado dos limites de observação quando Liam virou o rosto e fitou-a com semblante sério. Zoey desviou o olhar de imediato, voltando a atenção para a página do livro que falava sobre Revolução Francesa.
- Quer sugerir algo? – ele perguntou.
Zoey balançou a cabeça de forma negativa mais rápido do que pretendia.
- Talvez queira ler algo – Carlos se debruçou sobre a mesa de repente, observando a apostila de Zoey de cabeça para baixo.
- Carlos, por favor – Amanda puxou o braço do garoto para fazê-lo sentar direito. Kate trazia cinco copos de plástico coloridos. Liam pegou o amarelo.
- Como vamos fazer? Ela vai ter que apresentar – Carlos continuou dizendo. Zoey sentiu a malícia em sua voz, além de seus olhos observadores sobre ela.
- Zoey não vai apresentar. Mas estará participando do trabalho como todos nós – Amanda continuou.
- Daya disse que todos devem apresentar – o garoto murmurou, remexendo o colar de corrente de seu pescoço. Zoey ajeitou-se sobre a cadeira, desconfortável.
- E você é péssimo em apresentações – murmurou Kate. – Vamos começar isso logo, pois quero aproveitar a tarde com a minha amiga.
- Pelo menos, eu apresento. – Carlos falou, pegando um dos copos. – Não tem cerveja?
- Não. Estamos aqui para fazer um trabalho. – Amanda se sentou na cadeira lateral da mesa. Depois, voltou-se para o garoto no notebook ao lado. – Liam, o que temos aqui?
Zoey ouviu Carlos bufar e Kate despejar o refrigerante em todos os copos. Liam enfiou o braço dentro da mochila e puxou um grande e pesado exemplar de capa dura. Jogou-o no centro da mesa. Na capa, havia o clássico quadro A Liberdade guiando o povo.
- Minha cunhada é fascinada em tudo que tem a ver com a França. Ela disse que esse livro tem curiosidades que podemos usar em nosso trabalho – Liam disse. – Podemos garantir alguns pontos.
- Ótimo – Amanda disse. – Vamos começar isso logo. Fiz um resumo geral da matéria. Zoey, você poderia dar uma olhada no livro do Liam? Você pode anotar as curiosidades que achar mais interessantes.
Zoey assentiu e olhou para o livro. Apesar de estar próximo a ela, temeu pegá-lo. Percebendo o desconforto da colega, Liam arrastou o livro em sua direção.
- Fique à vontade – ele disse, voltando-se para a apresentação que montava no computador. Ela deu um sorriso sem graça e começou a folhear o grosso livro.
Os colegas começaram a discutir os principais pontos da matéria que poderiam colocar no trabalho, enquanto Zoey anotava tudo que achava relevante. Pela primeira vez em muito tempo – apesar do desconforto inicial e a piadinha de Carlos – ela estava se sentindo muito bem. Amanda a havia recebido melhor do que Zoey havia imaginado, e Liam havia falado pela primeira vez com ela; depois de meses convivendo quase todos os dias em sala de aula. Estava se sentindo útil por incluí-la de alguma forma, mesmo não podendo apresentar o trabalho – poderia executá-lo tão bem quanto os outros. Carlos, por outro lado, pegava no celular a todo momento e reclamava do trabalho. Logo deixaram-no de lado, pois não estava acrescentando em nada.
Zoey analisou o resumo final dos colegas e assentiu, concordando com tudo. Entregou a folha com as curiosidades para Liam enquanto este se dedicava à montagem da apresentação. Era um garoto caprichoso, como era de se esperar. Finalmente, após quase duas longas horas, eles terminaram. Carlos arrancou a camisa e pulou na piscina. Amanda soltou um suspiro de alívio e espreguiçou-se.
- Agora, vamos aproveitar esse sol de verão desgraçado! – ela exclamou, afastando-se da mesa. – Vocês vêm?
- Eu não vou, obrigado – Liam disse. – Vou terminar a apresentação.
- Tudo bem. Zoey? – a garota olhou para ela. Zoey balançou a cabeça, negando. Liam riu baixinho enquanto a garota se jogava na piscina. Zoey olhou rapidamente para ele.
- Já é outono – ele disse, olhando para a tela do computador. Ele montava a bibliografia. – Não verão.
Zoey também riu timidamente, guardando as coisas na mochila.
- Mas está, hum, bem calor – Liam continuou, pegando um pen drive na mochila e conectando-o no notebook. Zoey maneou a cabeça, concordando. Tomou um gole do refrigerante que mal havia tocado. Quase engasgou quando, distraidamente, viu Liam arregaçar as mangas da blusa cinza. Ele não percebeu, mas Zoey viu as marcas avermelhadas em seu pulso. Achou, a princípio, que fosse um machucado comum. Mas havia vários cortes iguais; do pulso e em todo o antebraço esquerdo.
A garota olhou para a piscina, enjoada, e observou os três colegas rirem e mergulharem sob o sol escaldante. Quando se voltou para Liam novamente, os braços estavam cobertos de novo. Ela queria perguntar: Por que fez isso com você? Por que está se machucando dessa forma? Você precisa de ajuda...
Aquelas marcas ficaram grudadas nas lembranças de Zoey e doíam como se fossem nela. Mas a moça não o julgava. Todos tinham feridas e cicatrizes, sejam elas internas ou externas. Aquilo assustou-a e a fez refletir sobre o seu próprio ser. Não podia julgá-lo, pois ela fazia o mesmo consigo. Fazia toda vez que se olhava no espelho e se odiava. Feria-se todas as vezes que se diminuía, quando acreditava que não era capaz. As marcas eram subjetivas – e algumas delas representavam as dores daquele que as portava. Zoey era uma pessoa observadora, mas nunca havia passado pela sua cabeça de que Liam tivesse problemas a ponto de se ferir. Sentiu-se mesquinha e impotente, mas sabia que não poderia fazer nada.
Zoey também tinha suas marcas.
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