Capítulo 4
O som das ondas e o cheiro do mar eram mais vivos fora do restaurante. O perfume
do sal, suave e picante, enchia a varanda para onde foram tomar a sobremesa; a noite estava
amena e os dois homens sentaram-se numa mesinha à meia-luz, saboreando a gostosa brisa
marinha que soprava da escuridão.
O empregado aproximou-se e dispôs sobre a mesa os doces que encomendaram.
Tomás tinha pedido uma mousse de manga, mas não conseguia deixar de se sentir
impressionado com a fileira de pratinhos pousados afrente do seu interlocutor, como se
cada sobremesa aguardasse a vez com o nervosismo de um condenado que espera a sua
hora diante do pelotão. Em primeiro lugar havia um copo com cinco bolas de gelado
regados a creme quente de chocolate, seguido de um bolo de bolacha, um pastel de nata e
uns crepes Suzette, e o mais extraordinário é que Orlov logo se atirou ao sorvete com
esfaimada sofreguidão.
"Você não tem problemas com o colesterol?", atreveu-se Tomás a perguntar.
"Hmpf", grunhiu Orlov, a boca cheia de gelado. Engoliu à pressa para poder
responder. "Reconheço que sou um tulipanas, mas é mais forte do que eu, o que quer?"
"Por mim, esteja à vontade."
O russo fez um gesto com os olhos para as fotografias dos mortos, pousadas entre
os crepes e o bolo de bolacha.
"O que me diz você a isto, hã?"
Tomás voltou a mirar o sinal deixado pelos assassinos junto às suas vítimas.
"Acho perturbador", observou. "Sem dúvida que o triplo seis remete estes crimes
para o trabalho de uma seita."
"Foi o que nós pensamos", concordou Orlov, lambendo ruidosamente as manchas
de gelado que lhe caíram nos dedos. "Devo dizer, no entanto, que não percebo as
subtilezas bíblicas em torno do seis-seis-seis. Parece-me tudo uma confusão."
"O que sabe você sobre isto?", perguntou Tomás.
"Tudo o que sei é que esse é o número da Besta", disse Orlov. Arregalou os olhos,
numa expressão exageradamente dramática. "Um sinal do Diabo." Agarrou-se ao pastel de
nata. "Já falei com vários padres e teólogos sobre isto e eles mostraram-me a parte do
Apocalipse onde é mencionado o triplo seis." Emitiuum gemido de apreciação pelo sabor
do pastel que devorava, a crosta estaladiça a reverberar nos seus dentes. "Tudo muito
terrível, claro está, mas receio que não tenha adiantado nada. A única coisa que percebemos
é que estávamos a lidar com uma seita de culto satânico."
"Eles não lhe fizeram a leitura deste número?"
Orlov parou por instantes de trincar.
"A leitura do número da Besta?" Recomeçou a mastigar. "Não, não. O que eles me
disseram é que isto é o sinal do Diabo, o número do Anticristo que vem aí para provocar o
apocalipse."
"Mas não lhe deram a chave para decifrar esta mensagem?"
"Você acha que este número esconde uma mensagem?"
"Claro que sim. À primeira vista, torna-se claro para mim que estamos diante de uma
mensagem oculta inserida na Bíblia. Só os inicia dosa podem decifrar."
Orlov abanou o indicador e sorriu com malícia.
"Você é um iniciado."
"Porque diz isso?"
"Porque você é um perito em línguas antigas. Dos melhores do mundo."
Tomás riu-se.
"Lá vem você com essa conversa..."
"Já vi que está armado em modesto." Inclinou a cabeça. "Diga lá a verdade, é ou não
é capaz de decifrar esse enigma bíblico?"
O historiador corou suavemente e baixou os olhos.
"Acho que sim."
O russo bateu com a mão na mesa.
"Ah!", exclamou. "Eu sabia!" Apontou o dedo ao seu interlocutor. "Você é um
iniciado! Confesse lá, é ou não é?"
Tomás encolheu os ombros.
"Enquanto historiador, sim, sou um iniciado." Apontou para a fotografia. "Uma vez
que o triplo seis é uma mensagem oculta, qualquer historiador com formação em línguas
antigas pode, em princípio, decifrá-lo."
"É o seu caso."
"É o meu caso."
"Então diga-me lá", desafiou Orlov, a colher a mergulhar na última bola de gelado.
"Como é que se decifra o triplo seis?"
"Calma, isso não é assim tão simples. Teria de estudar este enigma com cuidado."
"Então estude."
Tomás riu-se.
"Se tivesse tempo, estudaria", disse. "Mas a verdade é que tenho muito que fazer."
"Nós contratamo-lo."
"Como?"
"A Interpol contrata-o."
"Para quê? Para decifrar o mistério do triplo seis da Bíblia?"
Orlov abanou a cabeça com uma expressão divertida.
"Não, professor. Para nos ajudar a deslindar todo o mistério em torno destas mortes.
Claro que isso inclui a decifração do triplo seis, mas vai além disso."
"Vai até onde?"
"Ora, vai até onde for preciso!"
O historiador suspirou.
"Oiça, eu não sei se disponho de tempo para isto. Tenho uma série de projetos em
marcha e receio que não possua disponibilidade para andar agora armado em detective. O
meu trabalho não é ajudar a Interpol a deslindar assassínios."
"Qual é o problema? Que eu saiba você já foi contratado por diversas instituições no
passado. Basta-me citar a American History Foundation e a Fundação Gulbenkian, para já
não me referir a uma certa agenciazinha americana cujo nome não preciso aqui de
enunciar."
Tomás cravou os olhos em Orlov, como se o tentasse ler.
"Você anda bem informado."
"Sou polícia, já lhe disse." Apontou para as fotografias. "Preciso da sua ajuda para
deslindar este caso."
"E eu já lhe disse que não sei se tenho tempo."
"Pagamos-lhe quinze mil euros por mês, mais quaisquer despesas em que incorra,
incluindo viagens. E damos-lhe a inolvidável oportunidade de rever um velho amigo do
liceu."
"Ah, o Filipe. Afinal qual é o papel dele no meio de tudo isto?"
Orlov endireitou-se na cadeira e assumiu um ar grave.
"Receio que o seu amigo esteja metido nesta história até ao pescoço."
"Ah, sim? O que fez ele?"
"Se calhar premiu o gatilho."
"O Filipe?"
"Sim."
"O que o leva a afirmar tal coisa?"
"O seu nome encontra-se anotado na agenda das duas vítimas e, em ambos os casos,
com um triplo seis à frente."
"A sério?"
"Acha-me com cara de estar aqui a brincar?"
Tomás considerou a revelação.
"Mas isso não quer dizer nada."
"Quer dizer que as duas vítimas conheciam o seu amigo. Quer dizer que as duas
vítimas estavam relacionadas com ele através do número da Besta."
"Vocês já falaram com o Filipe?"
Orlov abriu as mãos, como um prestidigitador que acabara de fazer desaparecer uma
pomba.
"Ele sumiu-se. Evaporou-se." Os lábios sopraram. "Puf!"
"Não o encontram?"
"É como se nunca tivesse existido. Quando descobrimos o nome dele e de um outro
cientista nas agendas das duas vítimas com o sinal do Diabo ficamos cheios de curiosidade,
é claro. Para mais porque esse foi o sinal deixado pelo assassino junto aos cadáveres. De
modo que resolvemos ir interrogá-los de imediato." Fez uma curta pausa. "Pois não
encontramos nem um, nem outro. Volatilizaram-se ao mesmo tempo."
"Realmente, é estranho."
"Isto não é estranho, meu caro professor." Arregalou as sobrancelhas, como se
quisesse sublinhar a sua conclusão. "É suspeito."
"Qual foi o outro nome encontrado nas agendas?"
"James Cummings. Trata-se de um físico inglês ligado à tecnologia nuclear. Pedimos
à Scotland Yard que o interrogasse, mas a polícia chegou tarde de mais. Havia dois dias que
o homem já não era visto em casa nem no laboratório onde trabalhava, em Londres."
"E o Filipe? Qual a relação que ele tinha com esses... esses cientistas todos?"
"O seu amigo também é cientista."
Tomás fez um ar admirado.
"Ah, sim? Não sabia. O que faz ele?"
"Tirou Geologia e dedicou-se à área energética. Era consultor de duas empresas
portuguesas ligadas a este sector." Consultou os nomes num pequeno bloco de
apontamentos. "A... a Galp e a EDP."
Tomás refletiu naqueles dados.
"O senhor disse que o Filipe e o inglês desapareceram, não foi? Quando é que isso
aconteceu?"
"Em 2002, logo na altura dos assassínios."
"Eles têm estado desaparecidos desde então?"
"Sim."
"E por que razão só agora vêm falar comigo?"
"Porque interceptamos há dias uma comunicação entre eles. Os sistemas de
monitorização do projeto secreto Echelon captaram um e-mail e enviaram-no para o FBI,
que o reencaminhou para a Interpol."
Tomás tamborilou os dedos sobre a mesa.
"Onde é que eu entro nesta história?"
"Já vai", disse Orlov, fazendo-lhe sinal de que tivesse paciência. "O e-mail
interceptado foi originalmente remetido pelo professor Cummings ao seu amigo. Como se
tratou de uma comunicação através da Internet, não temos modo de detectar os pontos de
origem e de destino. Apenas podemos ler a mensagem."
"E o que diz ela?"
"O sentido de uma parte é muito claro, mas a outra parece cifrada. Ora o senhor é
um dos melhores do mundo nesta área e, por agradável coincidência, até conhece
pessoalmente um dos suspeitos." Franziu o sobrolho."Quem melhor que o senhor para
nos ajudar a deslindar este caso?"
"Hmm", murmurou Tomás, amadurecendo o que acabara de lhe ser dito. "É por isso
que me querem contratar."
"Nas condições financeiras que já lhe expliquei."
Quase inadvertidamente, o historiador fixou o olhar no bloco de notas do homem da
Interpol.
"Mas, diga lá, o que diz a mensagem?"
Orlov sorriu.
"Já vi que está a arder de curiosidade", observou. "Devo deduzir, pela sua pergunta,
que se considera contratado?"
"Pode deduzir isso, sim. Mas diga-me lá..."
O russo estendeu a mão.
"Então parabéns", cortou, efusivo. "Bem-vindo à Interpol!"
Apertaram as mãos sobre a mesa, selando o acordo.
"Calma", pediu Tomás. "Que eu saiba, não entrei na Interpol. Vou apenas ajudar as
investigações, não é?"
"Claro, mas isso merece ser comemorado, ou não merece?" Orlov pegou no copo de
vinho quase vazio e ergueu-o na direção do seu novo colaborador. "Na zdrovieV
"Isso, isso", retorquiu Tomás, levantando timidamente o seu copo. "Mas ainda não
respondeu à minha pergunta."
"Relembre-me."
"O que diz a mensagem que vocês interceptaram?"
"A mensagem entre o professor Cummings e o seu amigo?"
"Essa mesma."
Orlov consultou o envelope de onde já tirara as fotografias das vítimas dos
assassínios.
"Olhe, tenho aqui uma fotocópia. Quer ver?"
O russo estendeu um papel e Tomás leu-o de uma assentada.
Filipe,
When He broke the seventh seal, there was silence in heaven. See you. Jim
O historiador olhou interrogativamente para o polícia.
"O que diabo quer isto dizer?"
Orlov riu-se.
"Foi justamente para responder a essa pergunta que acabei de o contratar!"
Tomás releu a mensagem.
"Bem... ninguém pode dizer que isto não requer um profissional."
O russo pegou na fotocópia.
"Repare, há aqui uma parte que, para nós, é clara." Apontou para a terceira linha.
"Esta despedida, see you, sugere que James Cummings e Filipe Madureira planeiam
encontrar-se em breve." Bateu com o dedo na segunda linha. "Mas o essencial da
mensagem, e o nosso grande problema, está na frase principal."
Tomás pegou na fotocópia e observou a segunda linha.
"Esta, é?"
"Sim. Ora leia."
O historiador afinou a voz e, num sussurro baixo e com palavras pausadas, enunciou
então o enigma que aquelas linhas encerravam.
"Quando Ele quebrou o sétimo selo, fez-se silêncio no céu."
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