|livro um| quattuor
Jisoo expele bile pela boca, se dobra, colocando as mãos na barriga, mas as pernas não aguentam a força do corpo e ela cai, bate os joelhos na grama alta e vomita mais uma vez.
Quando acho que ela finalmente colocou para fora tudo que comeu nas últimas horas, ainda permanece na mesma posição e seus olhos vão até mim como uma águia.
— Você consegue compreender a gravidade dessa situação?
O carro está com o porta malas aberto, como uma bocarra esperando algum desavisado passar. Caminho até ele, alguns passos que se demoram mais que o previsto, já que meus saltos se afundam na terra batida. Jisoo está há uma distância segura, ela passa por mim e olha de novo.
— Você matou uma garota, Jennie.
— A culpa foi dela! — justifico. — Quem poderia imaginar que umas batidas na cabeça e uma noite em um porta malas mataria alguém?
— Todo mundo poderia imaginar! — ela rebate.
— A cabeça é feita de ossos, certos? Tem o crânio que... — Me aproximo com o punho fechado e bato na cabeça de Jisoo, como se fosse uma porta. — Na teoria deveria nos proteger disso. Eu juro que não foi nada demais, ela deve ter ossos de vidro ou sei lá, uma anomalia genética, então tecnicamente foi a própria falta de cálcio que a matou, não eu.
Nos aproximamos novamente. Ela está encolhida com as mãos em volta dos joelhos, pareceria estar dormindo se não fosse a poça de sangue que se formou embaixo da cabeça, engolindo os cabelos claros. É desleal o quando ainda está bonita mesmo morta — eu chequei —. Há marcas de unhas e socos na tampa do porta malas, em algum momento durante a noite ela deve ter acordado, mas ninguém a socorreu, então sangrou até a morte.
O rigor morti já é aparente, então não é possível mudar a pose macabra ou mover qualquer músculo do corpo dela, quem dirá tirá-la do porta malas.
— Tem certeza que ninguém te viu? — Jisoo me olha preocupada.
— Tinha uma porta nos fundos do banheiro que dava pra rua, foi ela que me mostrou. — Apontei para a garota morta. — Arrastei ela para um dos mictórios, sai do bar, estacionei na entrada dos fundos e depois entrei novamente no banheiro, levando-a até o porta malas. Se alguém tiver nos visto poderia supor que ela estivesse bêbada demais. Ficou uns respingos de sangue mas... sangue no banheiro feminino não é novidade. As pessoas não ligam pra isso, Jisoo.
— É claro que ligam! E se ela for importante? Famosa?
Nos entreolhamos.
Respiro fundo e tateio o corpo da garota até achar a carteira. Algumas notas caem assim que abro e Jisoo é rápida em pegá-las.
— O que foi? Ela não vai precisar mesmo — justifica, colocando no bolso de trás.
— Park Chaeyoung. — Encaro a foto 3x4 na carteira de motorista. — Ela mentiu o próprio nome, sabia! Lalisa a chamou de Rosé, algo assim... O que nós vamos fazer? — pergunto a Jisoo, que não tira os olhos da garota.
— "Nós" é muita gente.
— Jisoo! Agora não é hora para dar pra trás!
— Arh, você! — Ela afunda o dedo indicador no meu peito. — Não pode estar falando sério, Jennie! Isso é ocultação de cadáver! O que "nós" vamos fazer? — ela me imita, a voz oitavas mais aguda. — Ainda tem o fato que... ai meu Deus! Você entrou no campus com um corpo morto dentro do porta malas?
Deve ser uma pergunta retórica, por isso não respondo. É óbvio que entrei, estamos dentro do campus da faculdade em uma mata perto da quadra de futebol, vôlei e basquete, disputando espaço com um bocado de árvores suficientemente grandes para nos encobrir.
Jisoo arregala os olhos.
— Você entrou no campus com um corpo morto dentro do porta malas. — Dessa vez ela afirma. — Você entrou no campus com um corpo morto dentro do porta malas! — E exclama, partindo para cima de mim.
O primeiro tapa consigo desviar por reflexo, o segundo me atinge em cheio. Tento segurar seus braços mas Jisoo é frenética e me chuta, quando canso de apanhar nós duas caímos no chão, rolando e batendo. Um emaranhado de cabelo meu está nas mãos dela e unhas minhas nas suas bochechas, terra batida se levanta e ficamos completamente imundas em pouco tempo.
O farfalhar das folhas junto a nossa respiração descompassada toma conta do ambiente quando tudo acaba, respiro fundo e deito ao lado dela. Não falamos nada por muito tempo, observando a poeira abaixar e nosso peito se mover em um ritmo constante e calmo.
— Precisamos sumir com o corpo junto com o carro — ela conclui e se levanta.
Jisoo está marrom dos pés à cabeça, uma das minhas unhas acertaram em cheio sua bochecha esquerda e um vergão nasce de forma sorrateira. Estou no mesmo estado que o dela, sentindo o ardido das mechas de cabelo a menos.
— Vamos queimar.
— Não, não vamos queimar... — Ela repensa, como se estivesse de frente de um dever difícil. — O fogo não vai ser suficiente para fazê-la virar cinzas. Se por acaso encontrarem o carro com o corpo queimado dentro, vão chegar até nós.
— Vai ser a palavra de um nerd idiota dono do carro contra a nossa. Duas contra um.
— Não é tão fácil assim. E porque a matou mesmo?
— O que você sugere? Já disse, eu não matei.
— Podemos pensar melhor ao sair daqui. Ela não golpeou por vontade própria a cabeça na pia de um banheiro e se colocou num porta-malas.
— Não podemos sair daqui sem um plano. Ela estava enganando Lalisa.
— Engan... espera, é isso! O lago de Jung, é algumas horas daqui! — Ela pula e bate palmas. — Jennie, é perfeito! Nós podemos dirigir até lá e jogamos o carro da ribanceira. Ele é um lago enganador, parece que não mas tem quase 50 metros de profundidade, nunca vão encontrá-la e... quanto ao carro, bem... eu posso transar com o cara. Ele vai achar que saiu no lucro.
Uma felicidade avassaladora invade meu peito e me jogo contra os braços de Jisoo, dessa vez a abraçando forte. Ela me levanta e nós duas rimos como duas idiotas, rodopiando no ar, levantando poeira com os pés descalços e gargalhando.
— Eu não sei o que seria da minha vida sem você! — Sinto seu corpo quente em contato com o meu.
— É isso que irmãs mais velhas fazem — ela responde, fechando os olhos com os meus beijinhos por sua bochecha. — Só tente não... não matar mais ninguém.
— Juro, juradinho que essa é a última vez. — Cruzo os dedos em uma promessa.
Não podemos arriscar passar no alojamento antes, para tomar banho, então saímos sujas para nos livrar do corpo de Chaeyoung, ou Rosé, ou qualquer outro nome que ela tenha — melhor, tinha.
Jisoo está no volante desta vez, os olhos inquietos implorando por algo que a deixe chapada, mas se contenta com o meu cigarro, aceso pelo isqueiro prata que ganhei de presente noite passada.
— Acha que vai ser difícil? — pergunto quando passamos por um dos prédios de Engenharia Civil, o último antes de finalmente saímos do campus. — Digo, mostrar a Lalisa que sou a pessoa perfeita para ela?
Jisoo pondera, sopra a fumaça na cabine do carro, e imagino que aquele cheiro ficará nos bancos como o nosso último presente.
— Se vai ser difícil eu não sei, mas pelo menos você tem uma concorrente a menos. — Ela estampa um ar de sorriso pelos lábios de coração e liga a rádio. Cindy Lauper preenche nosso final de manhã.
Atravessaríamos o portão da universidade e pegaríamos o atalho mais logo até o lago Jung, evitando as Blits das grandes rodovias. Na saída de Seul, divisa com Busan, o veríamos como uma manta verde escura, convidando os mais corajosos a tentar descobrir o que suas águas escondem.
Mas o engarrafamento nos pegou na saída.
Não é nada para nos preocupar, já que é apenas alguns carros, contei uns seis, na nossa frente, buzinando apressados e loucos para sair das instalações da universidade. O medo só surge quando Jisoo coloca a cabeça para fora do carro e quando volta, está com os olhos arregalados.
— Tem policiais revistando os carros.
— O quê? — Abro a janela do meu lado. A menos de 3 metros, alguns homens fardados interceptam o portão da faculdade.
— Caralho, Jennie! Eu te perguntei se tinham te visto!
— É impossível que estejam aqui por minha causa! — Mas eu não digo com confiança. — Quem quer que esteja esperando por ela nem se deu conta que está sumida!
Jisoo fuma apressadamente, puxa e solta sem tirar o cigarro da boca, como se fosse uma chaminé automática.
— Essas coisas são rápidas! Você não vê CSI?
— Não estamos na porra de um seriado estadunidense, Jisoo! — Tomo o cigarro da sua boca e jogo pela janela enquanto tento, sem sucesso, descobrir o que os policiais estão fazendo.
Jisoo segura o volante com as duas mãos e tenta dar ré.
— Vamos sair pelo portão norte, não é possível que tenham bloqueado todas as saídas. — Mas há carros na fila atrás de nós e a via é curta para manobrar. Ela apenas vai para frente e para trás e continuamos no mesmo lugar.
Cinco carros antes de nós.
— Que porra! — Jisoo bate as mãos no volante. — Eu sou muito gostosa pra ser presa!
— CALA ESSA MALDITA BOCA! Eles podem ouvir... — sussurro, com o indicador na frente dos lábios.
Três carros antes de nós.
— Olha, não é nada demais, ok? Se eles verem que estamos nervosas aí sim vão desconfiar de algo, então respira... — Puxo o ar devagar e Jisoo me acompanha. — E inspira... — Solto e ela faz o mesmo. — Você confia em mim?
— Não — ela murmura, convicta.
— Mas agora precisa confiar. Eles irão pedir sua carteira de motorista, vão olhar e depois nos liberar... simples assim.
Jisoo não parece acreditar nisso e vejo seus olhos inquietos olhando para todos os lados, como se planejasse uma rota de fuga, mas ela solta o pé do acelerador. É a nossa vez.
— Carteira do motorista e documentação do carro — um oficial pede, impaciente. Tento sorrir para Jisoo, como se dissesse "Viu só? Eu estava certa" mas ela não percebe, suas mãos trêmulas vão para o bolso enquanto abro o porta luvas, procurando a documentação do carro.
— Jennie... anda logo.
— Espera, eu tô-
— Rápido — ela sussurra raivosa, e quando olho para cima o policial está analisando minuciosamente meu revirar de papéis no porta luvas. Ele se inclina, fungando.
— Que cheiro é esse?
— Cheiro? Eu não to sentindo cheiro nenhum — Jisoo fala rápido demais, e eu ao menos estou olhando, concentrada na montanha de papéis.
— Abre o porta malas — ele pede.
Jogo os papéis no meu colo e minhas mãos trabalham, ágeis. Um fio de suor brota na minha testa e desce pelo canto do rosto enquanto o farfalhar de folhas enche a cabine. Porque esse idiota dono do carro guarda tanta coisa desnecessária? Mapas, trabalhos antigos, folhetos e contas vencidas. Há um mar de papéis apenas atrapalhando meu trabalho.
— Sabe, seu polícia... — A voz trêmula de Jisoo dá lugar a um tom de flerte.
— Moon, oficial Moon.
— Moon? Que sobrenome bonito...
— Merda, merda... — murmuro, chorosa.
— O que disse, moça? — O policial quase enfia o corpo dentro do carro, pela janela.
— Eu... eu tô procurando... — engulo o choro, minhas mãos não param de se mexer.
— Saia e abra o porta malas, agora. — A voz dele muda, soa impositiva.
Não há como enrolar mais, ouço Jisoo engolir o seco, as mãos dela passam pelo volante e sinto o que quer fazer, como se estivéssemos conectadas. A liberdade está a nossa frente, o que nos impede de sair da faculdade é apenas uma barra de ferro amarela e preta que pode ser facilmente transgredida. Até os policiais darem partida na viatura teremos um intervalo de tempo precioso, onde podemos ganhar a vantagem de alguns quilômetros percorridos.
— Achei! — Empurro o papel para o policial e o impeço de falar. — Eu estou menstruada agora, nesse exato momento, e sujei o banco do carro de sangue. Você já sentiu cheiro de menstruação? Provavelmente não, mas fede. Estamos um pouco apressadas, porque preciso comprar absorventes e ainda precisamos limpar o sangue do banco, antes de entregarmos o carro ao dono.
Jisoo está com a boca aberta, em choque, e o policial me olha com nojo. Ele nem abre o papel da documentação e me entrega de novo.
— Boa sorte aí nesse... nesse problema. — E bate na lataria do carro.
Estamos liberadas.
●●●
Jisoo gargalha tanto que não consegue respirar, e preciso vez ou outra segurar o volante para não batermos.
— Você traumatizou o cara! — Seus cabelos voam ao vento e a estrada se abre à nossa frente como um tapete de concreto sem fim. — "Você já sentiu cheiro de menstruação? Provavelmente não, mas fede" — E ri tanto que se dobra.
— Homens, o que dizer? É natural, mas eles tem nojo — digo com um sorriso esperto no rosto.
— Como se não fossem nojentos. — Jisoo estende a palma e eu bato na dela. — Laranja não combina comigo.
— Nem comigo... — Me afundo no assento assim que o lago Jung ganha nossas vistas.
Ele tem uma elevação baixa, de modo que conseguimos vê-lo cruzar o céu em um horizonte sem fim lá embaixo, enquanto cruzamos a estrada níveis acima. Parece um mar bem no interior do país, como se Deus quisesse uma exceção, mas na verdade é uma represa e quem criou foram homens endinheirados querendo uma vista bonita.
Dirigimos pela encosta por mais alguns minutos até encontrarmos uma ribanceira afastada. O vento bate forte como um tapa e é difícil proteger os olhos dos grãos de areia. Jisoo solta o freio de mão e pede ajuda para empurrar, nós fazemos força com nossos braços magrelos na lataria do carro até ele seguir o declive.
O automóvel mantém uma linha reta até cair no horizonte sem fim, segundos depois ouço o baque atingir a água como um estouro no céu.
Caminhamos até a beirada, vendo o carro em miniatura lá embaixo parecendo pedir ajuda, engolido pela água escura do lago até não restar mais nada na, aparentemente calma, represa.
É como os olhos de Lalisa, me vejo pensando. É como se por trás de toda aquela calmaria castanha um segredo se escondesse, e por mais que eu esvazie toda a represa, que mapeie tudo que estiver embaixo, é profundo demais para emergir.
Tento tapar os olhos, por causa do sol. A vista a nossa frente é bonita, como se aquela bola laranja reinando no céu azul sem nuvens fosse engolir tudo.
— Descanse em paz, Chaeyoung ou Rosé... — Jisoo diz enquanto aperta o crucifixo entre os seios, já que não sabe nenhuma oração. Ela se vira para mim, o vento faz seus cabelos parecerem ter vida própria, farfalhando pelo rosto bonito, rebeldes e livres. — Acha que Deus está nos observando? Lá de cima?
Encaro a imensidão azul brilhante e respiro fundo, tateando os bolsos até encontrar o cigarro.
— Se ele estiver nos observando... — acendo, inspirando a fumaça. — Estamos fudidas.
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