|livro um| novem
O Instagram de Yeri está como "memorial", ela sorri na foto de perfil, parecendo incrivelmente mais nova do que já parecia ser. A maioria dos seus posts são covers de músicas do Justin Bieber, Ariana Grande e mais alguns artistas internacionais que não sei o nome. Ela também postava trechos de livros e em todas as fotos do feed aparece com o mesmo sorriso, o tipo de sorriso que nos faz querer tê-la como irmã mais nova.
A última publicação é uma foto dela junto a colega de quarto, Joy, elas estão sorrindo enquanto comem sorvete, a na legenda: "torça para que eu não congele o meu cérebro #joymepaga" evidencia que ela nunca mais irá postar nada.
Yeri não tinha irmãos, foi criada pela mãe e pela avó e se formou no ensino médio com 16 anos, precisou de uma autorização judicial para entrar na faculdade e completaria 19 anos daqui a quinze dias. Ano que vem ela ganharia o tão esperado diploma.
— Você não pode se torturar dessa forma. — Jisoo toma o celular das minhas mãos e o guarda dentro da bolsinha de lápis. Ela deve ser a única universitária que tem uma bolsinha com canetas brilhantes e lápis coloridos.
— Isso não faz sentido. — Me remexo na cadeira, desconfortável. — Ela era uma garota feliz, estava realizando seu sonho...
Jisoo maneia a cabeça negativamente.
— Rede social não é termômetro de felicidade.
— Mas a Joy...
— A Joy dividia o mesmo quarto que ela, não a mesma cabeça. — Jisoo toca minha testa com o indicador.
Seus dedos estão gelados pelo frio, o clima mudou rapidamente em pouco tempo e as manhãs são as mais geladas. O sol aquece tudo depois do meio dia e a tarde todos já estão usando roupas leves, mas nas primeiras aulas o que vejo são casacos, toucas e bebidas quentes soltando vapor. Jisoo e eu usamos blusas de frio e saias, estou tão anestesiada que não sinto frio nas pernas, diferente de Jisoo, encolhida na cadeira ao meu lado.
— A garota está morta, não é como se você não tivesse experiência o suficiente para entender isso. — Ela me lança um olhar duro e se vira para frente.
Estou sensível pelo o que aconteceu e aquele comentário entra fundo em minha mente. Não que eu estivesse arrependida de jogar Rosé no lago, foi necessário, mas Yeri me pegou de uma forma esquisita. Eu não a conhecia, só a via em raros momentos nos corredores, quando cantava no intervalo e todos faziam uma roda em volta e, por último, no fatídico dia na sala de Lalisa.
No timming perfeito, Lalisa entra fazendo barulho, está muito agasalhada mesmo para o frio e todos dão suspiros apaixonados por ela parecer uma criança vestida pelos avós. Ao desenrolar o cachecol de alguma casa do Harry Potter que eu não faço a mínima questão de saber, ela esfrega as mãos uma na outra, sorrindo.
— Bom dia, pessoal! Como foi o final de semana de vocês? Bom? Ótimo? Ruim? Por que seria ruim, Woozi? Você e sua banda arrasaram! Estou pensando em te dar créditos extras mas não fique tão animado... Ah, Jungkook! Depois que você mexeu no meu notebook ficou ótimo! — Ela vai até o menino e bagunça seus cabelos. — Consegui passar o slide certinho na turma do terceiro período e... Solar? Que bom te ver, como anda o braço engessado? Vou escrever o meu nome no gesso, só um minutinho. Tenho novidades sobre a equipe de saxofonistas, Chungha, me chama depois da aula, okay?
Lalisa sempre gasta um tempo da aula esperando os atrasados ou puxando papo com os alunos, Taehyung aquela manhã está particularmente falante e Sana, como sempre, rindo do vento. Woozi se vira para mim e lança um joinha depois que Lalisa o enche de elogios sobre a apresentação da sua banda, no sábado.
— Professora? — Levanto o indicador e arrumo minha postura, é a primeira vez que desejo fazer uma pergunta, e pela forma alarmada que Jisoo me olha, sabe que farei estrago.
Lalisa pisca algumas vezes antes de sorrir.
— Pois não?
— Você me parece bastante engajada nos assuntos que rolam na faculdade, gostaria de saber se há algum memorial sendo organizado para a aluna Yeri. Talvez você conheça, ela era da sua turma do sexto período.
O semblante de Lalisa escorrega e vejo algo desafiante em seus olhos. Ela solta um suspiro triste.
— Qual é o seu nome mesmo?
— Jennie — digo entre dentes.
— Jennie, infelizmente não podemos divulgar esse tipo de informação dada a forma como ela morreu. É uma política da faculdade e também um conselho do Ministério da Saúde, mas sim, respondendo a sua pergunta, eu a conhecia. Era uma menina cheia de potencialidades, o que torna tudo ainda mais triste.
Uma série de cochichos enche a sala, ouço frases cortadas e palavras perdidas. Não desvio os olhos dos de Lalisa e ela também não parece querer desviar dos meus. Jisoo me cutuca debaixo da mesa, sua presença ao meu lado é um lembrete mudo do que não posso fazer, mas quando vejo já estou levantando o indicador novamente.
— Professora, você respeita as políticas da faculdade?
A sala instantaneamente fica silenciosa, todos estão encarando Lalisa. Ela sorri largo mas não chega aos olhos, eles estão semicerrados. Não sei se mais alguém percebe ou se essa constatação chega apenas para mim.
— É claro que sim! É muito importante que os docentes sigam as regras que a instituição impõe, mais alguma dúvida, Jane?
— Jennie — corrijo de forma brusca.
Todos se voltam a mim novamente, mas não consigo evitar olhar Lalisa e perceber como ela está se segurando para não perder o controle. Sei que deveria estar mais aborrecida por ela fingir não saber o meu nome e o pior: erra-lo propositalmente, mas não estou com raiva, estou feliz por vencer aquela pequena batalha.
— Nenhuma dúvida, obrigada professora Lalisa.
— Sem problemas. — Ela caminha até a mesa e liga o monitor com o controle remoto. Todo o ar risonho que Lalisa estampou ao entrar na sala, mais cedo, desapareceu por completo. — Se tiver mais dúvidas como essa será um prazer explicá-las para você. Vá até a minha sala hoje a tarde. — A última frase soa sem humor, mas não há como revidar, o monitor se acende e o primeiro slide aparece. Lalisa começa a aula.
●●●
Jisoo apressa o passo para me alcançar, estou andando tão rápido que quase penso que meus pés criaram vida própria, desvio de uma garota que deixa o celular cair e viro o corredor, descendo as escadas que me levam para longe do prédio de música.
— Se você quer seduzi-lá está fazendo isso errado. — Jisoo está arfante, comicamente seu pouco desempenho está em suas mãos: um maço de cigarros pela metade. — Jennie!
— O que foi? — Finalmente diminuo o passo e Jisoo me alcança.
— Qual o seu problema? Porque está tão obcecada com essa menina?
— Porque Lalisa está escondendo alguma coisa de mim — respondo. — Não posso ficar em paz comigo mesma sem descobrir porque ela está mentindo.
Jisoo me olha, confusa.
— Você tá chapada?
— Estou determinada, libera serotonina da mesma forma. — Levanto uma sobrancelha, desafiante, antes de retomar a caminhada.
Jisoo segura o meu braço e vejo um lampejo de preocupação em seus olhos, mas ela não tem a chance de falar o que abre a boca para dizer, porque Joy está vindo até nós com um desânimo visível, dessa vez, sem a namorada baixinha de encalço. Ela parece outra pessoa, não sei se é porque está sozinha e não precisa parecer estar bem ou porque não quer conversar comigo, talvez as duas opções, mas ela está ali, cabelos reluzentes em um castanho tão escuro que quase chega ao azul, calças jeans com rasgos cobertos por meia arrastão e uma camisa amassada do Rolling Stones, a língua vermelha está manchada de água sanitária. Um piercing na língua que não vi naquela dia reluz quando ela abre a boca para dizer:
— Jennie, certo?
— Sim, e essa é a minha irmã, Jisoo. — Apresento Jisoo, inquieta, passando a palma da mão suada na saia de sarja. — Ela pode vir conosco?
Joy dá de ombros e caminha para a saída, não restando outra alternativa para nós a não ser acompanhá-la.
O segundo dia da semana deixa o sol preguiçoso e as pessoas também. Olho para o ponteiro do relógio na cafeteria a penso se Lalisa está mesmo me esperando em sua sala, com castigos para infligir assim que eu chegar, imaginando o momento que irá amarrar os cabelos com o elástico que carrega no pulso e empurrar a cadeira para atrás da porta. Uma onda de prazer faz os pelinhos do meu braço se arrepiarem.
Jisoo chega com dois cappuccinos e um café preto, está sorrindo demais, o que indica que está nervosa, e o movimento de arrastar sua cadeira para o lado da minha é outra maneira inconsciente de tentar me proteger da má disposição de Joy.
— Está sendo um dia difícil? — pergunto, Joy maneia a cabeça em afirmação.
Estamos praticamente sozinhas na cafeteria, a quatro mesas de distância uma garota mexe no celular enquanto come pãezinhos e dois garotos se beijam perto da porta. Os bancos são bonitos e pouco confortáveis, a televisão passa um clipe qualquer da Billie Elish, e minha voz soa mais alta do que deveria pelo primeiro fator.
— Minha namorada precisou voltar para Busan, a faculdade não conseguiu outro quarto para me realocar, as coisas de Yeri ainda estão nas caixas... — Ela suspira. — A professora Lalisa está me ajudando a pressioná-los, espero que me mudem essa semana. Não aguento mais ficar lá com todas as memórias dela.
Jisoo pega a caneca de cappuccino e leva a boca delicadamente, como se não quisesse ser notada, entendo o porque, é difícil perguntar o que preciso sem soar rude.
— Meus pêsames. — Não é verdadeiro mas Joy não parece ligar, ela aponta para o maço de cigarros que Jisoo deixou em cima da mesa, eu tiro um e a entrego, ela pede o isqueiro também.
Assim que ela acende o cigarro uma moça sai detrás do balcão, fala que não pode fumar lá dentro, mas nós três apenas fingimos que não ouvimos nada; depois de minutos parada enquanto fazemos de tudo menos olhar para ela, a atendente se retira, constrangida.
— Me desculpe ser tão direta... — pigarreio. — Eu estava com a professora Lalisa, no sábado, e...
— O que tá rolando entre vocês duas? Tipo, tá todo mundo falando, mas ninguém sabe se Lalisa te ama ou te odeia. — Joy usa o pires da xícara de café como cinzeiro.
Jisoo bufa.
— Essa é uma boa pergunta... aí! — Cutuco ela por debaixo da mesa.
— Não tá rolando nada. Lalisa ao menos sabe o meu nome. — Tento soar indiferente. — Continuando, você comentou com ela que havia lido o livro que Yeri pediu emprestado, em busca de um bilhete ou carta.
Joy molha a ponta do cigarro no café quente e o toma depois, fico tentada a repetir a pergunta por medo de não ter sido ouvida. Ela toma a bebida de uma só vez e seus lábios estão vermelhos quando termina.
— Yeri não se despediu, não deixou bilhete ou carta, só usou o cinto que a dei de presente no natal e o ventilador de teto do nosso quarto.
Jisoo arfa, e automaticamente repouso minha mão em cima da sua, apertando. Joy está nos encarando como se esperasse aquele tipo de reação e tivesse uma mistura de prazer e dor ao contar, também imagino que sou julgada por sua mente de luto, como se ela dissesse mentalmente: "O que quer saber sobre Yeri? Sua colega de quarto está viva, porra."
— Não há nada. — Repito a mesma frase que ela falou no sábado, reverberando em minha mente desde que a ouvi. Acho que digo mais para mim do que para elas, mas sinto uma pequena vitória em Jisoo quando ergue o queixo e me olha de soslaio, satisfeita pelo caso estar encerrado.
O celular dela vibra, um iphone antigo de tela quebrada que Jisoo tem alguma fascinação em mantê-lo daquela forma. Não consigo ver o número, mas ela junta as sobrancelhas e caminha para atender do lado de fora. Quando olho para a frente, Joy se entretém cutucando as cinzas do cigarro já extinto com o dedo, é a hora exata para me despedir, mas assim que abro a boca ela também abre e demora algum tempo até dizer.
— Na verdade... — Joy ainda mantém a atenção nas cinzas, parece escolher as palavras. — Ela escreveu uma coisa no livro, na contracapa. Não significa nada, mas deve ser a última coisa que ela escreveu, por isso tirei uma foto.
Jisoo está do lado de fora da cafeteria e de costas para mim enquanto conversa pelo celular, foi um bom momento para ela ter saído, pretendo manter aquela informação longe dos seus ouvidos. Joy pega o celular no bolso, seus dedos tocam a tela algumas vezes até ela colocar o aparelho na mesa e o arrastar até mim.
Preciso fazer muito esforço para não sorrir ao ver a foto tirada da contracapa do livro. Joy tem certeza que não há significado porque não olhou com os meus olhos, porque não imagina um terço do que Lalisa é.
A letra de Yeri parece ser bonita, mas ali está apressada, inclinada para a esquerda e com a tinta da caneta manchada, provavelmente estourada.
O que ela escreveu? "Lalisa".
Yeri escreveu o nome de Lalisa.
— Yeri era bastante avoada, provavelmente não queria esquecer de quem era o livro. — Joy dá de ombros.
— Imagino que seja isso, mesmo que o carimbo da biblioteca de Lalisa esteja na capa, engraçado...
Penso em tanta coisa que é difícil me manter quieta, finalmente tenho algo concreto para perguntar a Lalisa e estou tão eufórica que mal vejo Jisoo chegar. Se eu estivesse decepcionada, se Joy não tivesse me mostrado a foto e eu chegasse a conclusão que a morte de Yeri não fosse nada que não se resuma a uma adolescente com problemas, se eu não tivesse deixado essa nova informação se alastrar pela minha mente de uma forma tão rápida, teria notado a expressão de espanto em Jisoo.
Não é qualquer expressão que se deixe passar batido. Ela parou ao lado da mesa que estávamos sentadas, seus olhos vidrados e o queixo caído, as mãos trêmulas segurando o celular que cairia a qualquer momento pelo aperto frouxo de seus dedos. Jisoo se aproxima e sussurra no meu ouvido.
— Ligaram da delegacia.
Foi a frase que me fez ficar atenta, que me fez engolir a despedida que faria a Joy e encarar Jisoo, alarmada. Mas o pior ainda estava por vir.
— Encontraram o carro, no lago Jung. — Ela completa, baixinho. — Precisamos ir até a delegacia. Agora.
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