|livro dois| mirum
— Arhg, merda! — balbucio, suada.
O banheiro fede a mijo, como um banheiro químico interditado. Meus olhos estão lacrimejantes pelo odor cítrico que irrita minhas narinas. As paredes de azulejos brancos estão encardidas, manchadas por algo marrom que eu não quero saber o que é. Me causam uma sensação claustrofóbica.
Aquele foi o primeiro posto de gasolina que encontrei à beira da rodovia. Se eu continuar sem desvios chegarei a Seul antes do amanhecer, mas preciso roubar um carro menor, já que aquele maldito caminhão é um chamariz.
A pia de cerâmica é pequena, está manca, mas me debruço sobre ela, embaixo da torneira quebrada, e o sangue diluído em água desaparece pelo ralo. A facada que Lalisa me deu está pior do que imaginei, uma crosta de sangue se mistura ao pus fedorento. A pele em volta está amarelada, infeccionada, e eu não tenho nada para passar na ferida. A única coisa que posso fazer é enrolar uma faixa suja junto a papel higiênico e rezar para Deus fazer o resto do trabalho. Era o que Jisoo me aconselharia a fazer.
Será que Lalisa sabia o que estava fazendo quando me esfaqueou? Será que ela queria mesmo me matar? Ela me enterrou viva de propósito? Lalisa é tão meticulosa, deve ter checado meus batimentos antes de me enterrar, mas cá estou eu, viva.
Limpo boa parte dos meus cabelos e do meu rosto, mas ainda estou suja e áspera. Minha pele parece uma lixa, meus cabelos se assemelham aos de uma boneca barata. Minhas roupas não tem salvação, os jeans e a blusa formam uma poça de barro no chão do banheiro. Eu as substituí por um blusão do caminhoneiro que matei e uma bermuda jeans larga demais, que sobra pedaço embaixo do cinto. É melhor do que ficar pelada.
— Ei! — Alguém bate na porta sanfonada e quase a derruba. A voz é feminina. — Não pode fazer programa aí dentro!
— Não estou fazendo programa nenhum, porra! — grito em resposta, trançando meus cabelos molhados. — Uma garota não pode fazer xixi em paz nesse posto fedorento dos infernos!?
Espero uma sequência de batidas mais intensas, alguém aparecendo e me arrastando para fora do banheiro, mas o que recebo é um murmúrio condescendente.
— Tem cinco minutos para sair daí! — ela grita, se distanciando a passadas pesadas.
— É mais do que preciso — respondo baixinho, em um suspiro.
Voltei a ser a garota que era antes de conhecer Jisoo, a garota que andava de canto em canto sem um lugar fixo para dormir, frequentando banheiros públicos, vestindo roupas que não eram feitas para ela e lutando por um resquício de amor que não merecia. As lágrimas se acumulam na beirada dos meus olhos. Sinto falta dos hidratantes cheirosos de Jisoo, das roupas macias, das mãos trançando os meus cabelos antes de irmos para a aula... Sinto falta do cheiro de cigarro que vinha dela, se parecia muito com o cheiro que associo ao amor, ao cheiro da minha mãe.
Aperto o meu peito, também sinto falta da cruz que pesava em meu pescoço. Lalisa a tirou de mim quando me enterrou viva.
— Não se preocupe, Jisoo-ah, eu vou fazer pior... — digo, entredentes. — Vou fazer muito pior.
Abro a porta do banheiro e saio para a madrugada fria.
(...)
Um novo semestre começou, há pais nos alojamentos se despedindo dos filhos com beijos molhados na testa e abraços apertados. As mães estão com os olhos lacrimejantes, maneando a cabeça em um: "eles crescem tão rápido" "parece que foi ontem que nós..." ah, é sempre assim em todo maldito começo de semestre. Agora entendo porque Lalisa escolhe os novatos, eles são tão suscetíveis, tão manipuláveis, tão cheios de esperança e apegados a cargos de autoridade. Deve ser delicioso ver o desespero nos olhos deles, quando finalmente cai a ficha de que vão morrer.
A sala enche rapidamente depois do sinal das sete horas, eu me sento na última carteira e observo os alunos chegarem. Os mais tímidos, que não conhecem ninguém ainda, preferem se sentar nas fileiras do meio. Os insuportáveis com síndrome de Sei Mais Que O Professor se sentam na frente, abrem o caderno e esperam ansiosos para anotar tudo que acontecerá na aula, como se estivessem no ensino fundamental. A turma do fundo é mais barulhenta, eles puxam conversa com facilidade, mas eu os ignoro.
Nesse mesmo dia, há alguns meses atrás, eu e minha irmã nos sentamos aqui.
Quando Lalisa entra na sala, eu prendo a respiração.
— Bem vindas, bem vindos! Sentem, já vamos começar a aula! Okay... quem deixou essa flor na minha mesa? Solar? Eu sabia! Nada de pontos extras, mocinha, mas obrigada pelo presente! Eu amo tulipas... — A risada dela preenche a sala.
Todos se sentam apressados, hipnotizados.
Lalisa está vestindo uma calça-jardineira, com uma blusa amarelo ovo por baixo. Os cabelos continuam na mesma tonalidade de castanho escuro, presos em um rabo de cavalo curto que acentua a franjinha rala. Os lábios estão pintados de vermelho, parecem maiores, é impossível desviar o olhar. Ela deixa a bolsa de tricô em cima da mesa e pega o buquê de tulipas, levando-os até o nariz. É um ato singelo, ela está deixando que eles olhem, está deixando que a admirem.
Lalisa levanta o olhar e sorri largo para eles, ouço suspiros à minha volta.
— Meu Deus, que cabelo fabuloso! Qual o seu nome? Jaemin? É um belo nome! Um dia eu tentei pintar o meu cabelo dessa cor e acabei quebrando ele todinho, ah, longa história... me lembre de te contar no fim da aula. Não acredito! Sana, você por aqui!? Eu desisto, desisto! Vocês não sabem o quanto eu tentei ajudá-la! — Lalisa ri e toda a sala a acompanha. Me encolho na carteira, apertando a madeira com tanta força que meus dedos ficam rígidos. — Bem, são sete e dez, vamos esperar os atrasados por mais dez minutos! Mas não se acostumem, eu não sou tão boazinha assim! Sanha sabe disso!
Lalisa passa pela carteira do garoto, bagunçando os seus cabelos.
— Enquanto isso, vou me apresentar, ok? Bom dia! Amei o colar, Olivia, onde comprou...? Ah! A apresentação, meu Deus, eu sou tão avoada! — Ela bate na própria testa. — Pois bem, sou Lalisa Manoban, professora de Introdução à Teoria Musical... é Lalisa, ok? Só os alunos que tomam pau na minha matéria podem me chamar de Lisa... estou de olho em você, Karina... — Ela ri. — Diferente dos outros professores, eu não vou passar as próximas horas tecendo comentários sobre...
Finalmente, os olhos de Lalisa esbarram nos meus. Ela pára de supetão, no meio da fileira, e sua expressão se congela em choque.
— Sobre... — Lalisa balbucia. — Sobre minha...
Sorrio, saboreando o momento. Eu gostaria de filmar, ter aquela reação guardada para ver depois. O corpo de Lalisa se enrijece, é perceptível, e seus olhos expressam tantos sentimentos que é difícil descrever. O primeiro é surpresa, suas narinas inflam e seu peito sobe e desce de uma só vez. Logo depois seus olhos semicerram e eu sei, sei que está puta, com raiva, sei que quer jogar algo na minha cara, mas ela balança a cabeça, desviando os olhos dos meus, e volta ao modo professora.
— Me desculpem, acho que bebi café demais hoje cedo! — Lalisa ri, sem graça. — Culpa daquela cafeteria nova que abriu do outro lado da rua, já foram nela?
Os alunos soltam suspiros aliviados.
Levanto o indicador.
— Uma professora me levou nessa cafeteria semestre passado, o café de lá é ótimo! — falo, sorrindo.
Os alunos me olham, curiosos.
O maxilar de Lalisa trava.
— Acho que você se confundiu, querida, aquela acabou ficando sem graça... — Ela faz uma careta. — Enterraram de vez.
Meus dentes batem, seguro o tampo da mesa com mais força, os nódulos dos meus dedos estão doloridos agora.
— Oh, sério? — Pisco algumas vezes, afetada. — Me desculpe, fiquei uns dias longe e perdi algumas coisas.... Posso te chamar de Lisa agora, certo? Aparentemente, vou cursar essa matéria de novo.
Os alunos viram a cabeça em direção a Lisa, esperando a resposta dela.
— Tudo bem! — Ela abre os braços, receptiva. — Aliás, fiquei sabendo o que aconteceu com a sua irmã... meus pêsames, Jude.
— Jennie — corrijo, entredentes.
— Jennie, claro! Mil perdões! — Ela ri, balançando a mão em um "Tanto faz". — Enfim, estou aqui para o que precisar, Jennie. Seja bem vinda de volta!
Seja bem vinda de volta... a frase ecoa pela minha cabeça. Nunca precisei exercer tanto o autocontrole como naquele momento.
Lisa se aproxima de mim e repousa a mão em cima da mesa. Levanto o olhar para capturar o dela, a máscara de boa professora está quase escorregando. Seus olhos inquietos percorrem o meu rosto, para ter certeza que não sou um fantasma, que estou ali, viva, ao seu alcance, e os dedos tamborilam rapidamente na madeira. Ela quer me tocar, está se segurando para não o fazer, mas a energia entre nós está tão forte que é como se ela me tocasse. Espero o pressionar dos seus dedos em mim, do leve aquecer que suas falanges me proporcionam, mas ela recolhe a mão.
— Senti a sua falta, Jennie — Lisa sussurra inaudível, as palavras saem lentas de seus lábios e a língua alcança o céu da boca ao pronunciar o meu nome.
Preciso me lembrar que a sala está cheia, que temos vários pares de olhos nos fitando, e finco minhas unhas na coxa.
— Obrigada, professora Lisa — sussurro, com uma lágrima solitária rolando pela bochecha.
Lisa me olha uma última vez antes de se virar para a turma.
— Vamos começar a aula!
(...)
Não tenho uma faca, muito menos uma arma, não tenho algo pontiagudo o bastante, nem um mísero estilete, mas tenho as minhas mãos, terá que ser a moda antiga.
Eu poderia esperá-la sair da faculdade, seria prudente, seria o certo a se fazer. Daria tempo de tomar um banho antes, torcer para encontrar uma roupa limpa na bagunça minha e de Jisoo, mas não consigo entrar no nosso antigo quarto, não agora.
No intervalo, ameacei um garoto magrelo para me dar o seu lanche, mas ele não tinha cigarro. É uma pena que garotos nerds cuidem tão bem da saúde, o que eles esperam afinal? Viver depois dos trinta? Jisoo sabia que morreria cedo e tratou de aproveitar tudo o que tinha direito: fumar maconha, transar com desconhecidos, ocultar um corpo... ela é a minha heroína.
Acabo de comer o sanduíche com os olhos fixos no prédio destinado às salas dos professores. Inusitadamente, dirigi a madrugada inteira e ainda não estou com sono. Talvez eu seja uma morta viva que ainda não se decompôs, é como se Deus me desse uma segunda chance para terminar assuntos mal resolvidos na terra.
O prédio está vazio e silencioso como sempre foi, e é velho, a madeira range com os meus passos pelo corredor. As portas dos outros professores estão fechadas, estão sempre fechadas, a de Lisa é a única aberta. "Seja bem vindo!" Está escrito na placa, logo abaixo do nome dela.
Paro em frente a sala, as prateleiras estão mais abarrotadas de livros, eles ocupam a mesa de centro e as poltronas. O cômodo tem aquele cheiro de biblioteca velha e café, e a luz do sol incide sobre as velharias amareladas fazendo a poeira pairar pelo ar como confete. Lisa está sentada atrás da mesa lendo uma partitura, os óculos estão sujos de marcas de dedos e, observando as fotos dos gatos ao lado, percebi que ela adotou mais um. Sete, com a pequena Jennie.
— O que está esperando para entrar, Jennie? — ela pergunta, sem tirar os olhos da partitura.
— Um convite — respondo, ainda na porta da sala.
Lisa ri, me fitando de forma analítica.
— Você nunca precisou de um convite.
Lentamente, fecho a porta atrás de mim. Mantenho uma distância segura, porque não sei se terei controle das minhas mãos. Lisa abre uma gaveta da mesa e tira um maço de cigarros de lá.
— Está fumando? — pergunto.
— Não. — Ela tira um cigarro da cartela. — Comprei porque sabia que você viria.
Nos fitamos, dessa vez não há mais surpresa em seu rosto e sem desgrudar dele, eu me aproximo. Repouso as mãos na mesa e me inclino em direção a ela. Estamos próximas, posso sentir o cheiro familiar que Lisa exala, que fica impregnado no meu corpo junto ao suor, depois do sexo. O cheiro da sua cama, dos lençóis, da sua casa e do porão onde quase me matou. Ela coloca o cigarro entre os meus lábios e acende com o isqueiro, sem tirar os olhos dos meus.
— "Cristo haveria de sofrer e ressuscitar dos mortos no terceiro dia" — ela recita. — Lucas, versículo 24.
Me afasto, tragando o cigarro.
— Está me comparando a Jesus?
Lisa ri, se encostando na poltrona.
— A morte não lhe caiu tão bem. — Ela empurra uma cadeira com o pé. — Vamos, sente-se.
— Não estou aqui para conversar — digo, mas me sento de todo modo.
Lisa brinca com o lápis entre os lábios, me observando.
— Deixe-me adivinhar, está aqui para me matar?
Trago o cigarro mais forte dessa vez, até os meus pulmões queimarem. A fumaça paira ao nosso redor, cinza e pegajosa.
— Que bom que está usando sua inteligência para algo — respondo.
— Ah, Jennie... — Lisa lamenta, repousando os pés em cima da mesa. — Já que quer mesmo fazer isso, vamos conversar antes, que tal? Não quer saber o que aconteceu com o porteiro?
Maneio a cabeça, confusa.
— Que porteir... ah, me lembro vagamente dele. — Tão vagamente que não sei como era o seu rosto. — O porteiro que matei para conseguir entrar no seu condomínio.
Lisa ri, orgulhosa da minha vaga memória. É como se ela estivesse vendo uma versão mini de si, uma versão inacabada, mas parecida.
— Precisei limpar a sua bagunça como sempre, cheguei na portaria e ele ainda estava lá. Foi sorte tudo ter acontecido no período da noite... se outro morador o encontrasse, seria complicado. Apaguei as imagens das câmeras, o coloquei no meu porta-malas e roubei algumas encomendas que seria entregue aos moradores... para dar veracidade a história do sumiço.
Pressiono a ponta do cigarro na mesa.
— Foda-se o porteiro, quero saber o que fez com o corpo de Rosé, com Taehyung, o garoto amarrado no seu porão.
— Oh! — Ela cobre a boca com as mãos, surpresa. — Não os viu na sua breve passagem pelo mundo dos mortos?
Agarro as alças da jardineira de Lisa, colando as nossas faces. Ela estampa um sorriso zombeteiro ao passo que não para de olhar para a minha boca.
— Achou mesmo que eu estivesse morta quando me enterrou, Lisa? — pergunto entredentes.
— Gostei de como me chamou... — ela ronrona, fazendo um biquinho. — Repete.
Aperto a alça um pouco mais.
— Sem. Gracinhas.
Lisa tomba a cabeça para o lado, soltando um suspiro falso.
— Eu não te enterrei viva, se é isso que quer saber...
Me afasto bruscamente, incrédula.
— Mentirosa...
Ela dá de ombros.
— Se prefere pensar assim, tudo bem.
Lisa pega a bolsa e tira de lá algumas roupas, gases e remédios. Se aproxima de mim com uma agulha em uma mão e um soro fisiológico em outra. Eu recuo como um animalzinho ferido, mas a dor me faz lembrar que estou machucada e que não posso recusar uma oferta dessas. Ela se senta no meio das minhas pernas. Lisa nunca se ajoelhou assim antes, não para mim, mas agora ela está ali, gentilmente levantando a minha blusa sem desgrudar sua atenção de mim.
— Isso está feio... — ela segura a barra da calça e deixa os dedos lá, em contato com o meu quadril, enquanto limpa o ferimento que causou.
— O que esperava? — Bufo, incrédula. — Você me deixou debaixo da terra.
Lisa não me olha, está concentrada com os lábios frisados.
— Quer ouvir uma história? — ela pergunta.
— Não — respondo prontamente.
Lisa prossegue mesmo assim.
— Quando eu tinha seis anos, meus pais, meus tios e meu primo decidiram ir a praia... — Ela molha os lábios, borrando o batom vermelho. — Era para ser uma férias em família, mesmo que minha mãe precisasse passar os dias ensolarados com uma maquiagem forte demais e, bem, não sei se já viu o rosto de uma mulher que apanha do marido frequentemente, mas a maquiagem não esconde tudo... — Ela olha para mim, para ter certeza que estou prestando atenção. — As marcas ficam aparentes e as pessoas precisam fingir que não estão vendo. Elas sabem que as resposta serão as mesmas: "Cai da escada", "alergia a camarão..." coisas assim... — Um formigamento atinge minha barriga enquanto a agulha faz o seu trabalho. Lisa dá o primeiro nó com maestria, ela sabe o que está fazendo. — Meu primo tinha dez anos, ele implicava comigo, sempre implicou comigo, matava os meus gatos, cortava o meu cabelo, me queimava... mamãe dizia que ele gostava de mim. Eu não posso culpá-la por pensar desse modo, para ela o meu pai a amava... e demonstrava isso com os punhos. — Ela sorri triste. — Às vezes, as pessoas têm visões distorcidas sobre o amor.
Semicerro os olhos.
— Onde quer chegar com isso, Lisa?
— Esse meu primo me levou a uma gruta... — Ela me ignora novamente. — Aquelas grutas à beira-mar, e disse que iríamos brincar de uma brincadeira nova. "Vamos", disse ele, "vai ser divertido". Eu acreditei que seria. Ele me enterrou e deixou só a minha cabeça para fora, mas depois, quando a maré começou a subir e eu fiquei com medo, pedi que ele me tirasse dali.
— E ele tirou? — pergunto, imersa na história.
— Ele acertou a minha cabeça com uma pedra. — Ela levanta a franja, mostrando uma cicatriz profunda perto do couro cabeludo. — E me deixou lá, sangrando e convulsionando em cima do meu próprio vômito e sangue até alguém me encontrar, enterrada debaixo de um montante de areia. — As feições de Lisa se enrijecem. — Foi quando parei de acreditar em Deus, aliás. Lembro-me que a dor era tanta que implorei para morrer logo. Triste, não é? Uma garotinha de seis anos enterrada, implorando para que Deus tenha um pouquinho de misericórdia e a leve embora de uma vez...
Abro a boca para dizer algo, mas as palavras sumiram. Lisa fita um ponto inespecífico do meu machucado, perdida em memórias. Ela é boa nisso, em interpretar um personagem.
— O que aconteceu com o seu primo? — pergunto, contrariada.
Lisa limpa o ferimento com soro fisiológico e tapa com a gase, orgulhosa do bom trabalho.
— Isso não é importante. O que importa é que talvez minha mãe estivesse certa. Ele me amava.
Ri, incrédula.
— E como prova de amor abriu a sua cabeça com uma pedra e te enterrou viva?
Ela ergue uma sobrancelha, está me fitando com aqueles olhos enormes e incômodos. Seu cheiro me inebria e seus lábios me chamam, molhados e convidativos, como na noite do bar onde nos encontramos pela primeira vez.
— Como eu disse, as vezes, as pessoas têm visões distorcidas sobre o amor — ela sussurra.
Engulo um bolo de angústia, raiva e ressentimento. Minhas mãos estão tremendo, estou perdendo o controle, eu sinto toda vez que acontece.
— Você é uma vadia filha da puta — rugi, empurrando-a para o chão.
O som das costas de Lisa batendo na madeira reverbera pela sala. Preciso ser rápida, por isso monto em cima dela, me ajeitando em seu quadril, e prendo suas mãos acima da cabeça. Lisa esboça um sorriso, que se transforma em uma carranca quando bato a cabeça em sua face e o seu nariz começa a sangrar.
Ela fecha os olhos com força, rindo.
— Essa foi forte...
— E é só o começo — ameaço.
Solto as mãos dela para agarrar a sua cabeça e bater com força no chão, mas ela joga o peso do corpo para cima, me desequilibrando. Num primeiro momento, tento recuperar o controle e agarrar suas mãos de novo, mas Lisa se sacode e me joga para o lado. Caio no chão, ainda estou fraca, foi um erro não ter me preparado antes. Protejo a minha cabeça com as mãos, é onde bateria se estivesse no lugar dela: seria fácil, se ela aplicasse força o suficiente eu ficaria inconsciente em questão de minutos, mas Lisa não quer me matar, está se divertindo com a luta.
Ela fica por cima de mim, os cabelos saem do rabo de cavalo e formam uma manta ao redor de nós duas. Seu quadril se remexe propositalmente em cima do meu de uma forma indecente demais. Sem querer, perco o foco por alguns segundos.
— Quer ouvir outra história? — ela pergunta, prendendo as minhas mãos em cima do meu peito. O nariz sangra e pinga em meu rosto.
— Eu quero te matar! — esbravejo.
— Eu sei, eu sei... — Ela ri. — Mas porquê?
— Por que? — pergunto, incrédula. — Por que você me enterrou viva, porque matou a minha irmã, caralho! — grito.
— Eu já pedi desculpas pelo lance do enterro... — Ela faz um biquinho. — E sobre Jisoo... quem disse que ela está morta?
Paro de tentar me libertar.
— O quê? — pergunto, confusa.
Lisa aproxima o rosto do meu, tocando nossos narizes.
— Eu... — Ela mexe o nariz ensanguentado no meu, em um beijo de esquimó sanguinolento. — Não a matei.
— Você... — balbucio. — Você disse, Lisa... disse que matou ela, você...
Ela se rompe em gargalhadas.
— Me esqueço que você acredita em tudo que eu digo! Ah, minha princesa... — Ela passa o polegar na minha bochecha. — Eu só estava com ciúmes...
Maneio a cabeça em negação.
— Você está mentindo... está mentindo pra eu não te matar... é isso... — Meus olhos enchem d' água. — É isso, Lisa? É isso...?
Ela estala a língua no céu da boca.
— Eu posso provar. Posso provar que ela está viva.
Lisa se levanta em um pulo. Olho para o teto da sala por alguns instantes, sentindo o meu peito descer e subir rapidamente, e me sento, zonza. Ela limpa o nariz com um pano e joga algo em cima de mim.
— Jisoo queria ficar com isso, como lembrança — diz.
Nossas cruzes estão entrelaçadas, aquelas que usamos como colar. No verso, "Jisoo e Jennie" está escrito na madeira, na letra de Jisoo. Ela escreveu isso em algum momento depois de nos despedirmos, no hospital. Depois do hospital, em casa, talvez no nosso alojamento, segura.
Olho para Lisa, buscando respostas.
— Onde ela está?
Lisa estende a mão para me ajudar a levantar.
— Agora sim, isso vai ficar divertido.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro