|livro dois| apocalypsis
O sol vai embora poucos minutos depois, levando consigo o calor de outrora. Agora, um vento frio cheio de maresia atinge o meu corpo com um tapa. Jisoo já deve estar acostumada, ela anda como se estivesse em um dia ensolarado na praia.
Atravessamos uma estrada deserta, com uma floresta de pinheiros de um lado e o mar do outro, onde uma construção pequena está abarrotada de gente estranha. Vozes altas, cheiro de cevada e uma música ecoa lá de dentro.
Jisoo me olha de soslaio, com o cenho franzido.
— Está com frio?
Maneio a cabeça em afirmação, mas estar com os braços cruzados já é uma boa resposta. Nossas mini-saias jeans combinam, como na época da faculdade, mas enquanto sua blusa é frente única e mostra as costas pálidas ao luar, a minha é um pouco mais casta.
Jisoo se aproxima de um grupo de rapazes escorados em uma árvore perto do bar, e convence um a me dar o seu casaco. Prendo a respiração, tentando não vomitar com o cheiro horrível de suor masculino misturado a cerveja, e visto. É melhor do que passar frio.
Quando voltamos a caminhar, um deles grita:
— Jisoo! Meu pai disse que sua boca ficou torta de tanto pagar boquete pros caras da capital, é verdade?
Uma raiva primitiva toma conta de mim, mas Jisoo é mais rápida e dá a volta, desferindo uma joelhada no meio do saco do garoto. Ele se curva, soltando um gemido dolorido, enquanto Jisoo me arrasta para longe.
Ainda o observo à medida que ela me puxa em direção ao bar, faço questão de guardar o máximo de detalhes daquele garoto, na esperança de vê-lo por aí sozinho.
Quando entramos no bar, o burburinho de conversa fica mais alto. Já frequentei lugares assim, costumam ser o único local minimamente divertido em cidades pequenas. Tem prostitutas velhas e álcool de procedência duvidosa, a iluminação é precária e há uma sinuca onde garotos espinhentos de farda estão em uma partida. Um músico canta em um palanque improvisado, algumas mulheres de meia arrastão e saltos quebrados tentam a sorte com um bando de homens de meia idade.
Jisoo só me solta quando chegamos no balcão, onde senta e puxa outra cadeira para que eu me sente também. Ainda estou pensando na cena anterior. A Jisoo que eu conhecia nunca teria voltado para dar uma joelhada naquele garoto.
— O que foi aquilo? — pergunto baixinho, enquanto uma senhora de cabelos brancos se aproxima e enche duas canecas de cerveja.
Jisoo me olha confusa.
— Aquilo o quê?
— A joelhada — respondo.
Ela suspira, prestes a responder, mas a senhora de cabelos brancos a interrompe.
— Mais uma companhia da capital, querida?
"Mais uma?"
Aquele povo caipira deve reconhecer forasteiros muito bem, qualquer pessoa que se destaque no mar de calças jeans desgastadas, camisas feias e rosto sofrido pelo sol é automaticamente da capital. Mas qual a outra companhia da capital Jisoo tem?
A pergunta se perde quando a senhora toca o meu olho inchado sem permissão.
Me afasto, assustada.
— Ah, foi o maridão, meu bem? — ela pergunta.
Jisoo solta um riso debochado.
— Sabe como os marinheiros costumam voltar estressados do cais, dona Kanji.
A senhora estala a língua no céu da boca.
— Loucos para descontar a raiva, sem muito bem, querida. A cerveja está por minha conta hoje.
Observo-a se afastar ao passo que a atenção de Jisoo não sai de mim. Encontro o seu olhar em um misto de diversão e amargor.
— Foi tudo um plano para conseguir bebida de graça? — pergunto.
— Não sou tão meticulosa assim — ela responde.
Toco o olho ferido, minha pálpebra está tão inchada que mal consigo mantê-lo aberto.
— Obrigada pelo soco. Eu merecia.
Ela mantém o olhar.
— Merecia muito mais que um soco.
Jisoo abaixa a máscara o suficiente para beber um gole da cerveja.
— Se pudesse voltar atrás, teria feito de novo? Teria me empurrado da escada de novo?
Pela primeira vez em um bom tempo, resolvo não mentir.
— Sim. Faria de novo.
Ela nem pisca, como se esperasse essa resposta.
— É claro que faria, conheço você e, acima de tudo, conheço o quão louca é por Lalisa.
— Pode chamá-la de Lisa. — Quando Jisoo não entende, acrescento. — "Só alunos que tomam pau na minha matéria podem me chamar de Lisa", — recito o discurso do primeiro dia de aula. — Bem, você não passou na matéria dela.
Jisoo ri.
— E nem você, pelo visto. — Ela toma mais um gole da cerveja, as sobrancelhas bem feitas se unem em uma careta, por causa do amargor da bebida. — Nunca te contei isso, mas quando te vi pela primeira vez no quarto de alojamento, pensei que fôssemos totalmente o oposto uma da outra...
— Achei que estivesse chapada demais para pensar em qualquer coisa — pontuo.
— Também — Jisoo concorda. — Mas hoje consigo ver que temos mais coisas em comum do que eu imaginei.
— Que são...?
Um homem bêbado esbarra em nós, então mando-o para longe com um empurrão forte. Jisoo mantém sua atenção em mim, me fita com aqueles olhos angulosos, como duas jabuticabas maduras.
— Somos como um cachorrinho abandonado, implorando carinho para o primeiro estranho que nos dá um afago na cabeça. Reparou nisso?
Quero responder que não, não sou assim. Voltei obstinada a matar Lisa, ela não me faria falta nenhuma se morresse. Mas estaria mentindo e não vejo porque mentir para Jisoo, não mais.
— O que aconteceu depois que você acordou no hospital? — Mudo de assunto.
Jisoo desce os olhos para o pingente de cruz, os dois que carrego no pescoço, e bebe mais um gole da cerveja.
— Meu pai estava lá e a professora também. Ela me disse que você tinha morrido. — Seus olhos se estreitam. — O mais estranho disso é que, mesmo morrendo de raiva de você e não acreditando em nada do que ela me disse... ainda sim, Lisa conseguiu fazer soar plausível toda a desculpa. Ela entra na nossa cabeça de um jeito tão estranho.
Levanto a blusa, mostrando o corte na barriga que agora está quase cicatrizado.
— Sei bem como é. Sai de uma cova rasa, voltei para Seul.
— Voltou para ela — corrigiu Jisoo.
Encolhi os ombros.
— Algo assim.
Ela suspirou, como se me achasse uma causa perdida.
— É como um vício, me faz mal, mas eu não consigo largar — acrescento.
— Não vou te julgar. — Jisoo aperta a minha mão repousada em cima do joelho. — Estou aqui com você, sabendo que me jogaria de novo em uma escada, se pudesse. O lance do cachorrinho, lembra?
Por fim, ela se inclina sob o balcão e alcança um isqueiro preso a uma correntinha, logo em seguida, acende um cigarro. O mesmo cigarro que estava amassado no bolso do meu jeans, ela o pegou sem que eu visse.
— Acho que não deveria estar fumando — alerto, mas pego o cigarro da sua mão e levo aos lábios.
Jisoo dá de ombros, sem se importar em responder, e compartilhamos o cigarro sem falar nada pelos próximos minutos. Ambas sentindo o amargor da nicotina na boca, junto a todas as palavras que ainda teríamos que dizer e estavam entaladas na garganta.
Não sei como pensei que seria o meu reencontro com Jisoo, mas imaginei que seria mais despretensioso. Que fosse fácil como antes.
— Desde que voltei dos mortos, estou lidando com coisas que não deveria sentir... — confesso baixo demais e por isso tenho que repetir, para que minha voz vença a música horrível e as vozes altas. — Estou sentindo coisas que não deveria sentir.
Jisoo franze o cenho.
— Coisas?
Maneio a cabeça em concordância.
— Acabei com a vida de pessoas inocentes e eu não me sentia culpada por isso... por que agora estou sentindo? — Passo a língua pelos lábios secos, buscando as palavras certas para dizer enquanto a fumaça do cigarro nos envolve naquela redoma acinzentada. — Agora, bem, agora eu... eu sinto que deveria sentir algo. E a possibilidade de não sentir acaba se tornando um sentimento. Não consigo explicar.
Jisoo bufa.
— Se você não consegue explicar, imagine eu. — Ela termina de tomar a sua cerveja, eu ao menos toquei na minha. —Vamos. Quero te mostrar um lugar.
— O lugar que Lisa não pode saber? — retruco, já levantando da cadeira.
Jisoo assente enquanto desvia os olhos dos meus. É quando eu sei que precisa me contar algo importante.
𓁹
Ela me leva para a praia.
A noite está fria, mas nossos pés na areia me causam uma sensação boa.
Jisoo está silenciosa agora, mas tirou a máscara cirúrgica. Não parece com vergonha da cicatriz. Atravessamos a maré baixa até uma rocha, a água a molhou completamente e isso também é bom, porque posso me encolher junto a Jisoo. A sensação de tê-la perto de mim é boa, a partir de hoje, se me perguntarem se somos irmãs, vou responder que somos gêmeas.
Jisoo está com o semblante fixo no horizonte, no mar sem fim que se mescla ao céu noturno.
— O que quer mostrar para mim? — pergunto.
Ela me olha, respira fundo, e aponta para a água abaixo.
— Preciso que fique de joelhos.
Franzo o cenho, mas me ajoelho. A rocha é escorregadia e preciso me escorar em Jisoo, ela também se ajoelha e olha para a água. Não sei o que espero encontrar, não sei se isso faz sentido, se Jisoo está chapada e vendo coisas. Ela já confundiu um aluno de Lisa com um flamingo, então tudo é possível, mas não vejo nada, apenas a água gelada contra a rocha, então me inclino um pouco para frente e sinto a mão de Jisoo na minha nuca.
Não tenho tempo para pensar no que ela vai fazer, porque meu rosto já está dentro da água. O choque térmico faz meu corpo inteiro ficar em alerta. Abro os meus olhos e grito, mas a água salgada entra com tudo pelas minhas narinas e me faz respirá-la. Minha cabeça desponta de dor pela onda de sal, sinto uma queimação em todos os meus poros.
Jisoo vai me matar? Por isso me trouxe aqui? Será esse o meu fim? Me debato loucamente, mas suas mãos estão mais fortes do que eu me lembrava, agarrando os meus cabelos e mantendo a minha cabeça na água. Minhas mãos não encontram apoio na rocha, elas escorregam pelo lodo.
A Jisoo de antes nunca me mataria, nunca faria nada para me machucar. Ela sempre foi a irmã mais velha ingênua e medrosa, e nunca me deixou na mão. Sempre me apoiou, mesmo com tudo de errado que eu repetidamente fazia. O que mudou desde o acidente? O que aconteceu para ela ficar assim? Sinto que não poderei lutar por muito mais tempo, meus braços estão doloridos e pesam. Eu não consigo enxergar nada a não ser a escuridão do mar e o som das ondas se chocando de maneira abafada, junto aos meus gritos.
Parece durar horas, pareço estar ali por dias, e quando penso em desistir, a mesma mão que me afunda resolve me puxar para a superfície.
Caio de barriga para cima na rocha, respirando ruidosamente.
Minha garganta está ardendo, meu nariz e meus olhos, e meu peito parece pesar como chumbo. Pisco algumas vezes, tentando me situar, mas só enxergo o céu escuro acima de mim e, logo em seguida, o rosto de Jisoo. Tento afastá-la, mas seus lábios tocam os meus e empurra ar para dentro de mim.
Me engasgo e cuspo uma torrente de água do mar na rocha, tossindo loucamente.
Meu peito fica mais leve, apesar de ainda estar dolorido. Consigo sentar e volto toda a minha fúria para Jisoo.
— QUE... — tusso, expelindo água pelo nariz. — QUE PORRA...? — Me engasgo. Lembro-me de afogar quando criança, na piscina de uma festa infantil, e a sensação foi tão ruim que consigo descrevê-la até hoje, mas a água salgada do mar torna tudo mil vezes pior. — POR QUE VOCÊ TEN... TENTOU... ME MATAR?
Consigo gritar, respirar ar puro, e pulo em cima de Jisoo. Ela tenta se desvencilhar dos meus tapas, mas meu ódio me deixa cega e descontrolável. Eu confiei nela, fiquei de guarda baixa esse tempo inteiro, para no fim ela trair a minha confiança e tentar me matar. Ela está gritando para que eu pare, mas eu não consigo, preciso descontar a raiva. Acerto um tapa em seu rosto, o que a faz se desequilibrar na rocha e cair, mas no último segundo, ela me puxa pela cintura.
Nós duas caímos na água.
Uma onda me atinge como um tapa, começo a me debater em desespero, lutando contra a água que congela os meus ossos, mas estou afundando.
Até Jisoo agarrar o meu cabelo e me puxar para cima.
A iminência da morte não nos faz parar de brigar. Continuamos a nos estapear. Engulo tanta água salgada que o gosto preenche a minha boca. Sinto que vou vomitar.
— Você tentou me matar! — grito, engolindo mais um montante de água.
— Você tentou me matar primeiro! — ela rebate, engalfinhada nos meus cabelos.
— Me solta!
— Me solta você!
Empurro sua cabeça para debaixo d'água.
— Sua vadia drogada!
Ela também empurra a minha cabeça para debaixo d'água.
— Vadia psicopata!
— Vadia, vadia!
— Eu te odeio, Jennie Kim!
— Eu te odeio mais, Kim Jisoo!
Depois de alguns minutos de briga, descobrimos que estamos em uma parte rasa da praia. Nos levantamos, momentaneamente desorientadas.
Meus músculos estão doendo tanto que não consigo ficar de pé, não consigo fazer força para respirar ou para mover meu dedo mindinho. Deitamos lado a lado contra o banco de areia, sentindo a maré baixa bater contra as nossas pernas e nos enterrar ainda mais. Estamos completamente encharcadas, machucadas e com algumas mechas de cabelo a menos.
O frio noturno nos atinge com a força de um tornado.
Viro a minha cabeça de lado e encontro o olhar de Jisoo. Seus olhos estão brilhantes no escuro, as sombras acentuam seu rosto oval, as maçãs do rosto altas e seus lábios. Percebo que está chorando, eu acho que também estou.
— M-me desculpa, J-Jisoo-ah — sussurro.
Jisoo me puxa para um abraço. Repouso a cabeça em seu peito molhado, sentindo o seu coração bater forte.
— Eu não tentei te matar — ela diz baixinho. — Queria te fazer sentir a mesma coisa que me fez sentir quando me empurrou das escadas, a sensação de achar que vai morrer. Se eu não fizesse isso, nunca poderia te perdoar. Na verdade, eu te salvei.
Solto um riso misturado às lágrimas.
— Depois de me afogar, claro.
O corpo de Jisoo se enrijece.
— Eu estou falando sério. Eu te salvei dela, Jennie.
Meu sorriso morre no rosto, mas demoro a esboçar qualquer reação. Meu cérebro fica em branco.
— O que você tá falando? — consigo balbuciar.
Jisoo me olha, séria.
— Não espero que me agradeça agora, mas eu te salvei de Lalisa.
Um som parecido com um riso saiu dos meus lábios. Um grunhindo, como um bicho indefeso. Sento-me no banco de areia, sobre minhas coxas, e uma onda bate contra as minhas costas. Não saio do lugar.
— Jisoo, o quê você está falando?
Ela se senta também, nunca a vi tão séria assim.
— Ele me contou tudo, Jennie. Lalisa te esfaqueou e te enterrou viva em um cemitério em Busan, não foi?
Minha voz some, é enterrada garganta abaixo. Quando abro a boca para falar alguma coisa, só sai uma série de resmungos.
— Quem... quem te contou, Jisoo, quem...
Ela prossegue, sem ao menos respirar.
— Não é a primeira vez que Lalisa faz isso. Não é a primeira vez e nem a última. Ela faz isso com todos os alunos escolhidos. É um jogo.
Engulo um bolo de angústia, desce ardendo a minha garganta. Ao menos percebo que estou maneando a cabeça em negação enquanto lágrimas descem pelas minhas bochechas.
— Não sei do que está falando, Jisoo, você...
— Ela não mata nenhum dos alunos escolhidos, Jennie. Os favoritos. — Jisoo se aproxima e agarra o meu rosto, sua voz está severa. — Ela os enterra vivos. Os que conseguem sair da cova são pegos por um caminhoneiro, na beira da estrada. Ele os leva para Seul. É um jogo. Você passou por uma fase, mas tem outras... ela está jogando com você o tempo inteiro e...
— QUEM TE CONTOU ISSO? — vocifero contra o seu rosto, como um bicho acuado.
Não pode ser. É mentira. Jisoo está mentindo. Como ela pôde mentir?
— Bambam. Ele me contou tudo.
Espero que Jisoo corrija o nome, espero que comece a rir, acordar de um sonho. Espero que tudo isso não passe de um inferno particular, que estou mesmo morta naquela cova rasa. Jisoo não diz mais nada, continua me fitando no escuro da praia. Ela também está chorando, assim como eu.
Olho ao meu redor, para as montanhas rochosas e para o mar sem fim, consigo respirar perfeitamente, mas de repente sinto uma sensação de claustrofobia. Tudo começa a girar, minha cabeça lateja. Jisoo me agarra e me põe de pé, suas mãos se firmam no meu maxilar e me fazem olhar dentro dos seus olhos. Estou em pânico. Nunca senti algo parecido antes, mas meu coração quer sair do peito, meus dedos estão enrijecidos, não tenho força nas pernas. Se não fosse Jisoo me segurando, iria cair e nunca mais levantar.
— Jennie! — Ela me chacoalha. — Eu tive que fazer! É pro seu bem!
Isso me tira do transe.
— O que você fez!? — berro, contra as lágrimas. — O que você fez, Jisoo? O que você fez?!
Jisoo não se abala, é como se ela tivesse esperando isso. O ar sai de uma só vez pelos meus lábios. Agora tudo se encaixa.
Jisoo não quis me levar para um lugar que Lisa não poderia saber, Jisoo quis me separar de Lisa, deixá-la sozinha, sozinha com Bambam.
Ele deve ter chegado aqui muito antes de nós. E teve a cara de pau de perguntar no telefone para onde estávamos indo, quando já sabia a resposta o tempo inteiro.
Avanço na direção de Jisoo, puxando-a pela blusa.
— O que você contou a ele?
Jisoo não muda de expressão ao dizer.
— Tudo. — Sua fala é lenta. — E ele vai matá-lá, Jennie.
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