3.8|livro três | nosce te ipsum
— Senti a sua falta — digo a Lisa.
Ela encosta a testa na minha e nossas respirações ficam no mesmo ritmo.
— Eu também — responde ela e, devagar, resvala o nariz no meu.
É como se fogos de artifício tomassem conta do meu peito, explodindo com um turbilhão de sensações que roubam a minha respiração. Estamos no quarto dela. Nada mudou. As paredes continuam brancas, os móveis escuros, a cama em que estive antes é a mesma, até a maciez do colchão. Minhas costas agradecem, é como se eu estivesse deitada em plumas. Os lençóis brancos se enroscam na minha perna, me prendendo, e os meus olhos fixam em Lisa acima de mim. Sustento-me pelos cotovelos, observando-a se aproximar como uma caçadora. Os lábios semi-abertos e avermelhados na escuridão do cômodo, os cabelos castanhos na altura do maxilar.
O tempo não passou e ainda não passa, estamos em um limbo.
A cama afunda levemente com o peso dela e meu corpo formiga em excitação. Eu esperei por isso durante anos, esperei para ser tocada por Lisa, beijada, fodida por Lisa. Suas mãos passam pelas minhas coxas até abri-las, e ela se encaixa entre minhas pernas.
— Eu estou tão orgulhosa de você... — ela diz com um sorriso.
Meu coração erra o compasso. Era isso que eu queria ouvir. Eu aprimorei o trabalho dela numa forma de não deixá-la morrer por completo. Lisa estar orgulhosa de mim significa que fiz certo dessa vez, que pela primeira vez na vida fiz algo certo.
— Estamos orgulhosas de você. — Ouço a voz atrás de mim e, ao olhar para trás, vejo Chaeyoung na cabeceira da cama. Ela se aproxima até ficar ao meu lado, as mãos acariciam os meus cabelos espalhados pela cama.
Franzo o cenho. Por que Chaeyoung está aqui? Ela sempre esteve aqui? Lisa não parece se importar e, quando agarra a minha cintura, Chaeyoung aproveita para me beijar. Fecho os olhos, sentindo a língua da detetive redescobrir a minha boca. A sensação é nova, gostosa, e revira o meu estômago. Lisa olha a cena com um brilho diferente no olhar, como se estivesse... gostando.
De repente, Chaeyoung interrompe o beijo, mordendo os lábios inchados sem tirar os olhos de mim. É o momento perfeito para perguntá-las o que está acontecendo, quer dizer, elas se conhecem? Mas Lisa captura a minha atenção. Ela adentra com as mãos pelas minhas coxas, chegando a minha calcinha. É estranho porque me lembro de estar vestindo calças, mas Lisa tira a minha calcinha facilmente graças ao vestido, e se debruça sobre mim. O rosto está a milímetros de distância, a respiração junto a minha, e eu fecho os olhos, esperando o beijo. Mas, no último momento, Lisa se vira e beija Chaeyoung.
É um beijo agressivo, como se ambas estivessem disputando algo.
O som preenche o quarto, erótico e rápido, a medida que elas viram uma bagunça de línguas e arfares, suspiros e sentidos. Enquanto a beija, Lisa desabotoa a blusa da detetive, expondo o tronco levemente bronzeado coberto por um sutiã preto. Elas não interrompem o beijo, nem quando é a vez de Chaeyoung tirar a blusa de Lisa.
Não sei o que achar disso, mas não consigo parar de olhar.
Tem algo estranho acontecendo, isso não é natural ou real, mas não consigo falar, minhas tentativas não emitem sons.
Sento-me na cama, sentindo meu peito descendo e subindo pela respiração brusca, mas elas me empurram de novo. Chaeyoung segura o meu braço e Lisa o outro.
— Não era isso que você queria? — Lisa pergunta, mas não tem humor algum na sua fala, nenhum sinal de amor, ódio ou o pior dos sentimentos: indiferença. É como se ela fosse uma casca vazia.
Balanço a cabeça em negação, não era isso que eu queria, mas também não consigo dizer. Chaeyoung tomba a cabeça para o lado, pronta para falar, mas outra voz preenche o quarto.
É uma voz masculina dessa vez, uma voz que arrepia a minha espinha.
— É isso que ela quer. — Ele responde por mim. — Ela quer vocês duas.
Minha visão fica turva, como se as lágrimas não pudessem escorrer pelas minhas bochechas, acumulando-se no canto dos meus olhos. Tento piscar rápido para ver com clareza quem se aproxima a passadas lentas.
Ele se torna nítido a cada bater descompassado do meu coração.
Não consigo falar nada, mas o grito rompe pela minha garganta.
>< >< ><
— Jennie!?
Abro os olhos, ainda gritando.
— Jennie, Jennie! Se acalme!
Viro-me para o lado e vejo Chaeyoung, só então paro de gritar.
Aos poucos, a detetive solta os meus braços, mas com a vigilância de um caçador. Sento-me na cama, confusa e molhada pelo meu próprio suor, mas tento me tranquilizar. Foi só um sonho, só um sonho... Estamos em um quarto desconhecido, um quarto de hotel, o sol entra pela janela e doí os meus olhos, mas não quero piscar, não quero correr o risco de voltar para o lugar que eu estava antes. Parecia tão... real.
— O quê...? — pigarreio. Minha garganta está seca, parece uma lixa. — O que aconteceu?
A cada piscada, as lembranças vêm à tona. Noite passada, eu vi Jisoo depois de anos. Minha Jisoo, que agora está se prostituindo para os marinheiros locais naquele trailer imundo. Ela me expulsou em algum momento, o que me fez entrar no carro de Chaeyoung e aceitar de bom grado a ideia de nos hospedarmos na cidade até minha irmã mudar de ideia e aceitar conversar comigo, de preferência sem ameaçar estourar a minha cabeça. Mas, acima de tudo, decidi me hospedar na cidade porque tenho certeza que Lisa está viva.
— Jennie? — Chaeyoung me chama.
Levanto a cabeça, piscando rápido.
— Eu tive um pesadelo... — Minha voz saí rouca. Droga, fiquei fora do ar de novo. — Acho — acrescento.
A detetive é um livro aberto agora, consigo ver todos os pensamentos que passam por sua mente apenas olhando para os olhos castanhos amendoados. Ela duvida da minha sanidade.
— Você precisa ir embora — Chaeyoung caminha até a porta para fecha-la. Aparentemente, gritei tão alto que a acordei no quarto ao lado.
Ela dormiu com a mesma roupa de ontem, está descabelada e com a cara amassada de sono, mas parece decidida.
— Vamos embora? — pergunto confusa.
— Você vai embora — corrige ela.
— O quê...? Por que? Achei que nós...
— Eu sei o que achou, eu também achei, mas... — Chaeyoung respira fundo. Ela está dando voltas no quarto, como se ruminasse um pensamento. — Mas você não está bem, psicologicamente falando.
Arfo incrédula.
— Você está me chamando de louca?
Chaeyoung pára de andar e, sem saber o que falar em seguida, abre e fecha a boca até balbuciar uma desculpa fajuta.
— Olha, eu sei que essa situação é difícil pra você.
— Para com esse papo compreensível! — grito. — Você me chamou de maluca há dois segundos atrás!
Fecho a boca de supetão, fitando o rosto surpreso de Chaeyoung.
Ela me devolve um olhar que não consigo descrever, é como se estivesse com medo de mim ou por mim, como se tivesse um maldito elefante branco em cima da minha cabeça. Eu acabei de dar a confirmação que sim, talvez não esteja bem psicologicamente falando.
Fecho os olhos com força, respirando fundo. Sinto que estou caminhando em uma corda bamba, prestes a cair. Não sei mais quando estou sonhando ou acordada, o que é real e o que é paranóia da minha mente. Estou criando teorias que os mortos voltaram à vida, desconfiando da minha própria sombra, frágil como um espelho de açúcar.
Abro os olhos, não sei o que dizer, mas preciso dizer alguma coisa senão a próxima parada não será Seul, e sim, o hospital psiquiátrico mais próximo.
Chaeyoung vai até o frigobar do quarto e volta com um copo d'água. Não preciso de um comando para beber. É como se eu tivesse passado a noite toda no deserto. Bebo em goladas, entregando-a o copo vazio.
— Obrigada... — Abaixo o rosto, fingindo constrangimento. — E desculpe.
Ela respira fundo, concordando com um balançar de cabeça.
— Tudo bem.
Nos fitamos por um tempo que parece uma eternidade, enquanto o sol escaldante atravessa as janelas. Só então percebo que estou usando apenas uma blusa e calcinha, e acho que Chaeyoung também percebe no mesmo momento. A nossa sorte é que, assim que ela desvia o olhar, o telefone toca.
A detetive demora um tempo para se situar, apalpa o corpo até chegar ao bolso de trás da calça.
— Detetive Park Chaeyoung — ela diz, afastando-se devagar até a porta com o celular no ouvido.
Faço silêncio na esperança de ouvir alguma coisa, mas o semblante de Chaeyoung entrega tudo.
Aconteceu algo ruim. Muito ruim.
Assim que ela desliga, eu aviso rápido:
— Vou com você.
Chaeyoung abre a boca para recusar a oferta, mas eu já estou de pé, vestindo a minha roupa.
>< >< ><
A praça da cidade está cheia, os moradores estão amontoados, cochichando e esperando novas notícias. O assassino será o assunto principal durante a semana e, se mais nada de interessante acontecer, no ano todo. Como deve ter sido a morte dos Kim, enforcados no quintal de casa.
Há algo de excitante em mortes violentas. Eles vão querer saber como aconteceu, com que crueldade aconteceu, se demorou, onde será o enterro, e vão ter o prazer de contar aos vizinhos, amigos e familiares. Nada une mais um bando de pessoas desconhecidas que uma morte em comum.
A igreja da cidade é onde se encontra o maior número de pessoas. A catedral é a mesma de antes, os vitrais coloridos refletidos pelo sol. Evito olhar para lá, para onde Lisa morreu. A dor que pensei estar adormecida ressurge com a força de um furacão. Observo a construção ficar menor pelo espelho retrovisor do carro, até sumir de vez.
Endireito-me no assento, olhando para Chaeyoung no volante.
— Como tem certeza que é o mesmo assassino? — pergunto.
— Não tenho — responde ela e não toca mais no assunto.
Mordo os lábios, preciso fazer mais perguntas, mas não quero lembrá-la que estou aqui, tornando-me mais um fardo do que uma ajuda. Ela dirige por mais alguns minutos para além das casas de arquitetura japonesa, até o fim da cidade. A vegetação cede espaço à rodovia tortuosa à margem do mar e, no horizonte montanhoso, há um portão que não esconde as luxuosas casas do condomínio particular, feitas para parecer um pedaço de paraíso na terra.
O sol toca os telhados americanos, fazendo-os brilhar, e tudo é tão branco que dói os olhos. O portão é maior à medida que nos aproximamos e os arabescos dourados cortam o céu sem nuvens, enormes, pontudos e perfeitos para empalar garotas.
No topo do portão, há três mulheres cravadas.
Completamente nuas, elas parecem bonecas de porcelana, pálidas e vazias. O rosto está virado para o céu e as mãos em formato de prece, como se pedissem perdão a Deus, como se implorasse um cantinho no paraíso também. O metal atravessa o anus e sai por suas bocas, mas a ponta dilacerou os lábios. É o único lugar onde o sangue está fresco.
Ao olhar para aquilo, sinto a minha alma sair do corpo. Todo e qualquer movimento que eu faço é sem perceber; destranco a porta do carro e saio aos tropeços, parando de supetão ao ver o escrito a sangue abaixo dos portões, no piso de pedras brancas.
"Suas ações não lhes permitem
voltar para o seu Deus."
— Jennie, Jennie! — Chaeyoung me sacode. — Volte para o carro! Não saia de dentro do carro!
Eu a deixo me arrastar de volta, mas não paro de encarar o corpo das garotas. A detetive me joga no banco do carona e fecha a porta, voltando para a cena do crime. Ela também está desesperada e não consegue esconder isso.
É como se acontecesse em câmera lenta, os cabelos castanhos dela voando pela brisa quente, os carros de polícia se aglomerando em volta do portão, com as sirenes inquietas. O bando de policiais ao redor dos corpos, enojados e excitados, confusos e maravilhados.
Tudo está silencioso.
Nem o meu coração ousa bater.
— Não é Lalisa — sussurro.
Como pude achar que fosse Lisa?
Há ódio demais ali.
No entanto, a teoria de Chaeyoung não está errada.
É um assassino em série experiente, inteligente e com um modus operandi muito bem definido. É carismático, assiado e tem um humor ácido. Ele é quase... sedutor. Matou muitas vezes, está ativo há anos e, diferente da maioria dos homens, tem um cuidado excepcional com garotas, garotas jovens e bonitas, provavelmente estrangeiras, garotas que o fazem lembrar da meia irmã, prima ou seja qual for o laço sanguino incestuoso que os ligam.
Esses assassinatos não tem nada a ver comigo, tem a ver com Lisa.
Bambam quer chamar a atenção de Lisa.
Observo Chaeyoung conversar com os policiais enquanto duvido dos meus próprios pensamentos. Há algo evidente naqueles corpos que me incomoda. O que esse assassinato significa? Não matei ninguém dessa forma, nem nos tempos em que minha mãe me encobria.
Maneio a cabeça em negação. Não pode ser o mesmo assassino.
Abaixo a janela, tentando ler os lábios de Chaeyoung e dos dois policiais que ela conversa. Preciso saber o que ela pensa a respeito disso.
— Alguém encostou na cena do crime? — A detetive coloca um par de luvas cirúrgicas.
Os três olham para as garotas empaladas, com o sol despontando atrás delas.
— Eu. — Um policial levanta o polegar, como um aluno disciplinado. — Fui checar se elas estavam mesmo mortas.
Chaeyoung não responde, mas o olhar que ela lança diz tud: Imbecis.
— Já chamaram o IML? — ela pergunta.
O mesmo policial nega com a cabeça.
— O que estão esperando? — dessa vez, a detetive resolve demonstrar impaciência.
Os três policiais saem apressados até a viatura, cedendo espaço para Chaeyoung se aproximar dos corpos. Não preciso sair do carro e nem vou, daqui consigo ver o que ela pensa.
As vítimas nuas vão intrigar a polícia, eles vão pensar ser um crime de cunho sexual quando é visível que a nudez delas está ali para mostrar imoralidade, por isso o versículo: "Suas ações não lhes permitem voltar para o seu Deus."
Pessoas imorais não entram no reino dos céus.
Chaeyoung se aproxima com cautela e toca em um filete de sangue que escorre dos arabescos no portão. Ao mover os dedos, contata o mesmo que eu, o assassinato foi recente porque o sangue está fresco. Ele não teve tempo de montar a cena como gostaria, o lugar é arriscado. Um morador poderia aparecer a qualquer momento e, mesmo com as câmeras desligadas, a sensação de estar sendo vigiado ainda permanece.
Estou com essa impressão agora mesmo, de estar sendo vigiada. Observo a vegetação ao redor, tentando abstrair os policiais, Chaeyoung e o corpo das garotas, até que algo se move nas árvores ao meu lado.
A floresta daqui é composta de pinheiros, é relativamente fácil ver alguém tentando se esconder, mas ela não está tentando se esconder.
Ela está olhando para mim.
— Jisoo — sussurro.
Será possível que...? Não consigo terminar a frase.
Abro a porta do carro, engatinhando até sair da vista da detetive. Jisoo fica inquieta com a minha aproximação, os olhos estão inchados e fixos em mim. Ainda veste o hobby de seda azul, mas ele está sujo de terra. Os pés descalços estão enterrados na grama úmida, como se estivesse ali a noite toda, esperando que alguém a encontre. Ela parece um passarinho assustado.
Assim que entro na floresta, endireito o corpo e me aproximo, abraçando-a.
— Je-nnie... — ela se engasga, respirando espaçado contra o meu ombro.
Aperto-a com força apesar do medo de quebrá-la. As lágrimas escorrem por suas bochechas, molham os meus ombros, mas neste momento não me importo com nada, nem com as garotas mortas.
Só penso que eu deveria ter abraçado-a ontem.
Abraçar Jisoo é a mesma sensação de voltar para casa depois de anos, é saber que existe um lugar seguro no mundo onde você pode ir caso as coisas deem errado.
Afundo a cabeça em seu ombro ossudo. Talvez, apenas talvez, eu não devesse ter abandonado-a. Independente do que seríamos agora ou onde estaríamos, morando em hotéis e matando caminhoneiros, casadas com militares ou vivendo em um trailer. É tudo mais fácil quando você tem uma casa por perto.
Abro a boca, para quem sabe dizer o que penso em voz alta, mas ela me interrompe.
— O inferno está vazio, Jennie. — Ela sussurra no meu ouvido e, delicadamente, se afasta. Procuro os olhos de Jisoo, vendo o pavor refletido em suas pupilas. — Todos os demônios estão aqui.
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