3.12|livro três | habitum III
Desço o olhar para o crucifixo no meio dos seios de Minnie, um tanto quanto incomodada por ela ainda usá-lo. Não é a mesma coisa com ela, não tem o mesmo brilho.
— E então? Vai me dar o colar ou não?
Pacientemente, apoio o braço no balcão de mármore. A doutora Suwan ainda está sangrando aos meus pés, mas Minnie não consegue ver isso. Ela agarra a mão da irmã mais nova. Ambas se parecem com a psiquiatra.
Admito que foi um erro não notar isso logo de primeira. Eu deveria saber que Minnie era filha da doutora Suwan assim que bati os olhos nela, na sala de espera do consultório, mentindo que apenas levou a irmã para a consulta. Elas estarem aqui não faz parte do meu plano. Descobri que moram nos alojamentos de uma universidade no centro, e é uma sexta à noite, poderiam estar em tantos outros lugares, mas foram logo visitar a mãe?
Minnie dá um passo em minha direção, ainda segurando a mão da irmã.
— Pranpiya? O que... — Ela finalmente olha para o balcão, onde a faca ensanguentada está, e segue o olhar até o chão.
Aos poucos, a poça de sangue vaza para baixo do balcão.
Sigo o olhar dela.
— Ops... — sussurro, tampando a boca com a mão suja de sangue.
Consigo ver o desespero brilhar nas pupilas de Minnie, o sentimento intrínseco que algo de muito errado aconteceu. Seu primeiro instinto é puxar a irmã com força e as duas correm para a porta onde entraram. Eu não posso deixá-las chegar tão longe. Minnie está na frente, a irmã logo atrás. Pego a faca no balcão para jogá-la na direção da menina mais nova, porque preciso pegar pelo menos uma, mas não sou tão boa de mira como Jennie. A solução é ir atrás delas. Impulsiono o meu corpo para cima do balcão e deslizo até chegar ao outro lado. Elas estão perto de escapar e conseguiriam se a mais nova não tivesse caído. Ela quase leva Minnie junto.
Ganho o tempo necessário para pular o estofado branco, deixando para trás a marca de sangue do meu sapato. A única coisa que nos separa é a mesa de centro feita de vidro.
— Agun! — Minnie grita à irmã, mas a menina está caída, em transe, olhando para mim em pânico, sem conseguir se mexer. Minnie a arrasta em direção a porta, mas a menina só consegue se mexer, num engatinhar desesperado, quando percebe que estou perto. Tarde demais. Pulo em cima dela no momento em que Minnie abre a porta.
Caímos em um baque surdo contra o piso de porcelanato.
Não tenho tempo para sentir dor, mas estou arfando como um cavalo. Meu joelho protesta, talvez as minhas costas também. Ficar tanto tempo sem trabalhar me deixou enferrujada.
Minnie pára na hora, de costas para mim, mas com a mão agarrada à maçaneta.
— Se você der mais um passo, a sua irmã morre! — aviso a ela.
Sopro uma mecha de cabelo da frente do rosto, calando a menina embaixo de mim com a lufada de respiração quente, mas ela ainda se mexe violentamente como um touro raivoso. Pena que não consegue se balançar por muito tempo, meu peso em cima das suas costelas puxa todo o ar dos seus pulmões, além das minhas coxas de cada lado do seu corpo, travando os braços. Sabiamente, ela percebe que lutar só fará com que gaste energia de maneira desnecessária.
Minnie ainda está paralisada no mesmo lugar, sem largar a maçaneta, e a única coisa que me mostra que ainda está viva são os ombros subindo e descendo, graças a respiração arfante.
Mordo os lábios, impaciente.
— Não estou brincando, se você sair, ela...
A irmã me interrompe.
— Minnie! Vai...
Puxo o cabelo da garota.
— Dá pra calar a boca? Que insuportável! — Impaciente, repouso a faca no meio do seu pescoço. A glote se fecha contra a lâmina. Tenho certeza que ela não vai tentar falar por hora. — E então, Minnie, já decidiu?
Minnie sabe que a irmã é uma presa fácil e que, nessa posição, posso degola-lá com a mesma facilidade que corto um pão, mas não sei se ela a ama o suficiente para salvá-la. De qualquer forma é minha melhor jogada. Não posso deixá-las ir embora, não depois do que viram.
Sem delongas, Minnie larga a maçaneta e se vira com o rosto molhado de lágrimas. Ela chora igual à mãe.
— Pranpiya, eu...
— Não se preocupe... — eu a interrompo, tentando sorrir, talvez usando a minha voz predileta, fluída e suave, a mesma que eu usava com os meus alunos. Ela se parece tanto com um dos meus alunos. Poderia ser a minha favorita. — Eu só quero o meu colar de volta, okay? Deixe ele aqui, na mesa de centro.
— E d-depois você deixa a gente ir? — ela soluça.
Movo a cabeça em um "sim".
Abaixo, a irmã solta um suspiro aliviado.
Minnie olha para a cozinha, onde a poça de sangue só aumenta, mas ela não consegue ver o corpo da mãe que está atrás do balcão. Ótimo, não conseguiria mantê-las calmas com a mãe degolada na cozinha.
Minnie parece ler os meus pensamentos e pergunta, tremendo.
— O que aconteceu com a mamãe?
Ela treme tanto que parece estar convulsionando, os espasmos só aumentam quando encara a faca no pescoço da irmã.
— A doutora Suwan vai precisar de alguns pontos, ela bateu a cabeça na quina do balcão... — minto. — Você pode ligar para a ambulância se deixar o meu colar em cima da mesa. — Aponto com a cabeça para a mesa de centro há alguns centímetros de onde estamos. — É fácil.
— O que... o que... — Minnie tenta continuar, mas já está com as mãos em volta do pescoço, procurando freneticamente o fecho do colar. — Você fez isso por causa de...
Suspiro fundo. Ela definitivamente não deveria estar aqui.
— Não foi por causa de você. Isso não tem nada a ver com você — falo.
A irmã mais nova tenta gritar de novo, mas eu aperto a faca com mais força envolta do seu pescoço.
Minnie se apressa em tirar o colar.
— Aqui! — Ela quase grita quando consegue desabotoa-lo, suas mãos tremem tanto que ela o deixa cair, mas mergulha no chão para pegá-lo de volta. — De-esculpe, desculpe, está aqui, está aqui...
Ela me mostra o colar com um sorriso esperançoso no rosto debulhado em lágrimas.
É a minha vez de fazer a troca.
E, provavelmente, o que terei que fazer será uma daquelas escolhas que já mencionei antes, aquelas que me assombram na hora de dormir. Olho para os olhos de Minnie, esperando que eu solte a sua irmã.
— O nome dela é Agun? — pergunto.
Minnie balança a cabeça de forma afetada no que acho ser um "sim."
— É um nome bonito — sussurro.
— Tínhamos... — ela arfa, lutando contra as lágrimas. — Tínhamos uma videira. As uvas sempre maduravam nas primeiras semanas da primavera. Agun nasceu na primeira semana da primavera também, então eu pensei... pensei que seria...
Minnie se interrompe e me encara, em choque.
Os lábios tremem enquanto as lágrimas escorrem como cascatas dos seus olhos. Ela finalmente entende o que preciso fazer.
E o grito rompe da sua garganta no momento que deslizo a faca pelo pescoço de Agun, afundando-a de orelha a orelha.
O sangue jorra da ferida como uma cachoeira vermelha. É um corte rápido e preciso, dos que eu faço quando quero ser rápida. Engraçado como nunca dá certo, minha mãe diria que é porque estou com pena. Quando ela degolava coelhos para o almoço eu nunca poderia estar por perto, minha piedade os faziam demorar a morrer, eles se engasgavam com o próprio sangue, e minha mãe sempre dizia "A compaixão por esses pobres serzinhos que precisam morrer, só vai fazer com que você e eles sofram, querida."
Saio de cima da menina e ela leva as mãos até o pescoço aberto, mas não há nada que possa fazer para estancar o sangue. Só torcer para morrer logo, mas ela grita e grita por segundos excruciantes, tampando o jato de sangue do pescoço, e se sufoca com ele.
O som é horrível.
Vê-la lutar para recuperar a vida que eu acabei de tirar me leva a outro lugar.
Olho para as minhas mãos e elas são tão pequenas. Eu sou pequena. À minha frente, mamãe está sentado junto a Bambam, mostrando-o como cortar o pescoço do coelho. Ele é branco e seus olhinhos vermelhos estão me fitando. "Segure as orelhas dele com força, assim querido, e incline a cabeça para cima, isso, a garganta precisa ficar exposta. Muito bem!" Ela diz, orgulhosa. Bambam segue o olhar do coelho e me vê escondida ali, na moita. Ele sorri e, com um único golpe, afunda a lâmina na pelagem branca do bicho. A força é tanta que a cabeça rola alguns metros e pára bem na minha frente.
Mas não é a cabeça do coelho, é a cabeça da doutora Suwan. Ela abre os olhos, pairando em mim, e seus lábios se repuxam em um sorriso macabro. "A compaixão por esses pobres serzinhos que precisam morrer, só vai fazer com que você e eles sofram, querida" ela diz.
Desperto do transe com o grito animalesco. O segundo de desatenção me custa caro. Minnie parte para cima de mim.
Caímos no chão e, ainda confusa, cerro os dentes, contendo a dor que irradia pela minha cabeça. Minnie monta em cima de mim numa força surreal, o tipo de força que só aparece quando estamos cegos pela raiva, prontos para fazer estrago. Ela desfere o primeiro tapa na minha cara e logo depois outro. O ardido que a bofetada traz me acorda, apesar de doer mais do que o esperado. Ela está furiosa e tem toda a razão para estar, então eu a deixo me dar quantos tapas quiser. As unhas arranham a minha pele e eu consigo sentir o gosto do sangue nos meus lábios.
Ela não diz nenhuma palavra coesa e solta resmungos incompreensíveis, mas quando agarra os meus cabelos, pronta para esmurrar o meu rosto no chão, acerto uma cabeçada em seu nariz. O estalo do osso se partindo é audível e, assim que o pescoço dela vai para trás num solavanco, uso a minha força para empurrá-la.
Minnie caí para o lado, mas ao invés de estancar o sangue que desce pelas narinas ou até mesmo ir para cima de mim novamente, seus olhos vão para o corpo da irmã. A faca que eu usei para matá-la ainda está lá, do lado do corpo.
Nossos olhares se cruzam por um segundo antes de nos movermos, em sintonia, atrás da faca. Minnie se levanta, mas não consegue dar um passo sem tropeçar no corpo da irmã. Ela cai de cara na poça de sangue que toma conta da sala. Seu rosto vermelho me encara com ódio, ela parece a Carrie a Estranha ou qualquer bicho papão que assombra crianças; acho que nós duas parecemos, sujas e machucadas, cheias de sangue.
Sem poder fazer nada para impedir, ela me vê pegar a faca caída no chão e, temendo por sua vida, foge engatinhando para a cozinha, rumo ao corpo da mãe, mas puxo o seu pé.
Minnie solta um grito de desespero enquanto a arrasto para perto de mim. Ela se debate loucamente, o que me faz demorar a virá-la de barriga para cima. Minnie tem uma energia jovial que me inveja, eu estou tão cansada e tudo dói, mas ela ainda tenta me arranhar. Prendo as suas mãos acima da cabeça enquanto o peso o meu corpo a mantém no chão. Meu quadril está colado no dela e a proximidade faz os nossos narizes se tocarem, provocando uma mistura de respirações arfantes e o cheiro de ferrugem e suor.
Minnie semicerra os olhos e cospe no meu rosto.
— Você vai ter que me matar se quiser que eu pare.
Limpo a bochecha atingida no ombro.
— Eu deveria mesmo te matar — sussurro.
— O que está esperando, porra? — ela retruca, petulante.
Fecho os olhos por apenas um segundo, só no tempo em que Minnie afrouxa o aperto para logo depois voltar a se debater loucamente.
— Eu não vou te matar — admito.
Minnie para de se mexer, confusa.
— O quê?
— Disse que não vou te matar — repito.
Em seu semblante, a confusão dá lugar a dúvida, tristeza e então a raiva.
— Você matou toda a minha família! — ela grita contra o meu rosto.
— Me desculpe por isso! — retruco de volta.
— Desculpa? — ela bufa incrédula. — Eu quero te matar, desgraçada! — e grita mais ainda.
— Eu sei que quer! — Aproveito da sua incredulidade para arrancar a faixa do meu vestido e prender os seus punhos. — E você vai ter essa oportunidade — acrescento.
Minnie não parece ouvir o que falei. Ela vira a cabeça para o lado, as bochechas prensadas no chão, na mesma posição que a irmã agora morta está, e começa a chorar compulsivamente.
A doutora Suwan estava certa, talvez eu seja irmã do meu irmão, filha do meu pai, destinada a levar desgraça para a vida de todo mundo à minha volta. Obrigo Minnie a se sentar, mesmo com os seus protestos, e me agacho na sua frente.
— Olhe para mim. — Ela tenta cuspir no meu rosto, mas está chorando tanto que só se baba. Agarro o seu maxilar, forçando-a a me olhar. — Minnie, preciso que me ouça!
— Te ouvir...? — Ela consegue dizer. — Por que não me mata logo?
— Não vou te matar. Eu disse que não iria — respondo calmamente.
Um lapso de dúvida passa pelos seus olhos chorosos.
— Você matou toda a minha família, porque...
— Eu sei. E eu vou levá-las comigo. — Aponto para a mala enorme, perto da porta. — Vou limpar tudo. A polícia não investiga desaparecimentos com tanto afinco e eu preciso de tempo. Se quiser, quando eu sair, você pode pedir por socorro, mas eu sinceramente acho que você não vai envolver a polícia nisso. Eles não vão te dar a vingança que você quer, não é?
Ela maneia a cabeça em negação, se engasgando com as lágrimas.
— Você está com raiva, eu sei como é — continuo. — Preciso que cultive essa raiva. Ela vai ser a única coisa que te manterá viva. E meu nome não é Pranpiya, é Lisa, lembra? Eu te falei. Comece a procurar daí — aviso, levantando-me.
Por ter rasgado a faixa do vestido, estou apenas com um topper que preciso puxar para cima o tempo todo. Caminho aos tropeços, pulando a poça de sangue que engole a cabeça da menina mais nova, e abro a mala.
— Da próxima vez que nos encontrarmos... — continuo, pegando a fita no bolso da mala. — É melhor me matar, mire na cabeça, assim não vou ter chances, mas não se esqueça de certificar que eu estou mesmo morta.
Minnie tomba a cabeça para o lado, o rosto sujo de sangue e inchado de lágrimas me olha sem piscar. Não sei o que está pensando e não tenho coragem de supor, mas espero que siga as instruções. Ela não esboça qualquer tentativa de movimento, então, quando começa a falar, parece um ventrículo, um ser sem emoções.
— Você é a pessoa mais cruel que eu já vi na vida... — sussurra, com a voz pastosa. — Você não é digna de amor, compaixão ou qualquer sentimento bom. Não é digna de nada além de sofrimento, Lisa. E espero, do fundo do meu coração, que a vida trate de te dar tudo o que você merece, espero que ela tire tudo de você, tudo e todas as pessoas que você goste, que te deixe sozinha com a sua crueldade, que você tenha uma morte dolorosa e que não tenha ninguém lá para te ajudar.
Respiro fundo, voltando a me aproximar de Minnie. Agacho-me na frente dela, fitando-a olho no olho e, devagar, arrasto uma mecha dos seus cabelos para trás da orelha.
A cicatriz que corta os meus seios me atinge com uma dor incômoda.
— Para a sua sorte, a vida já fez tudo isso comigo.
Tampo a boca de Minnie com a fita.
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Notas da autora: Finalmente o pequeno "arco" da Lisa acabou por aqui e no próximo capítulo voltaremos a cronologia normal da história, mas enquanto revisava essa capítulo me lembrei de uma coisa que me deixou, digamos, emocionada, e por isso vim aqui agradecê-los. Desde o começo, sempre tive ressalvas em postar essa história porque sabia que ela não era uma história convencional e poderia enraivecer muita gente — como enraiveceu — mas mesmo assim, ainda há pessoas maravilhosas que estão sempre aqui, lendo, favoritando e comentando nos capítulos e isso me deixa segura em continuar postando. Durante a revisão deste capítulo, me lembrei que, de novo, antes de publicar a terceira temporada eu acreditava realmente que ninguém fosse ler, porque eu precisava trabalhar com Jennie e Lisa separadamente. A dinâmica entre elas é o que movia a história e, por muitas vezes, achei que não fosse interessante separá-las, mas funcionou, vocês estão aqui e isso me deixa tão agradecida! Enfim, não quero me estender demais, é só um agradecimento. Obrigada por continuarem acompanhando personagens carismaticamente detestáveis.
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