Capítulo 6 - Não Estava nos Planos
"A tristeza de uma despedida é necessária para que haja a alegria de um reencontro."
Ela recomeçou a explicar, mas parou de repente. Não estava querendo que discussões sobre o castelo estragassem aquele momento de paz. Sem contar que já teria que ouvir bastante sobre o assunto a caminho de casa, no dia seguinte. Decidiu, portanto, desviar a conversa para outro tema mais agradável.
— Parece que fiz exatamente o que não queria fazer: interrompi a sua música. Não quer continuar?
Rigard sorriu, e as rugas de expressão, em suas faces, deram-lhe um ar quase angelical. Olhou-a por um instante, consumido por uma batalha íntima. A música era uma parte de si mesmo que nunca partilhara com alguém. Mas, no fundo de seu ser, algo o estava estimulando a abrir uma exceção.
— Como posso dizer não a uma audiência tão atenta? — Cedeu, sem se dar tempo para reconsiderar.
Voltando-se para o piano, Rigard recomeçou a tocar, as pernas e os ombros tocando Scarlett, com familiaridade. O contato foi eletrizante, mas tão natural e confortável quanto se fossem velhos conhecidos. Ela sentiu o calor dele ao longo do braço nu e através do tecido fino do vestido, de encontro à coxa. Precisou de toda sua força de vontade para se impedir de chegar mais perto, à procura de um contato mais intenso. Olhando para o ombro de Rigard, calculou o quanto estava acima do seu. Se ele levantasse o braço, poderia se aninhar, facilmente, no espaço formado. Um sorriso distendeu-lhe os lábios.
Eram impressionantes suas reações àquele vampiro, àquele Rigard Dimitrescu. Não tinha fantasias desse tipo desde...
Desde quando? Já nem se lembrava mais da última vez que um vampiro fizera com que se sentisse daquele modo. Pensou em como o vira aquela tarde, alto, forte, usando apenas as roupas de treino, e sentiu-se aliviada por ele viver e trabalhar a quase sete mil quilômetros de distância. Rigard Dimitrescu poderia acabar com sua vida organizada com tanta facilidade quanto um furacão percorre um campo de flores delicadas.
Rigard fez com que voltasse ao momento presente, quando começou a tocar uma das música que foi encontrada num dos sirios arqueológicos humanos séculos atrás que ganhara bastante destaque, aquele século novamente. Decepcionada, Scarlett estendeu a mão, sem pensar, e obrigou-o a parar. Ele virou-se, fitando-a com um olhar interrogativo.
— Já mudou de ideia sobre me ouvir? Eu avisei que estava sem prática.
— Desculpe-me. Eu deveria ter esperado que terminasse, mas o meu entusiasmo muitas vezes me leva a fazer a coisa errada. Só queria lhe pedir que tocasse o que estava tocando quando cheguei. Era uma música linda.
— Prefiro tocar outra coisa. — Ele respondeu, seco.
Scarlett sentiu a súbita rigidez dos músculos sob seus dedos e, pasma pela reação inesperada ao pedido que fizera, não soube o que dizer. Uma porta de aço havia se fechado entre eles outra vez.
Respirando fundo, Rigard continuou, voltando ao tom de voz acariciante de momentos atrás.
— Deve haver uma música de que goste mais do que a peça que eu estava massacrando agora há pouco. O que acha de um pouco de nossa cultura? Ou prefere algo composto pelos Lycans?
Um sorriso surgiu nos lábios dela.
— Você não pode estar tão fora de forma quanto diz, com um repertório que vai do clássico ao desconhecido de muitos de nossa raça.
— Impressiona, não é? — Rigard piscou, com ar de conspirador. — O truque é decorar uma música de cada estilo.
Scarlett riu, divertida.
— Pois fique sabendo que me impressionou bastante.
O cômodo estava ficando estranhamente cada vez mais frio, e ela estremeceu, esfregando os braços arrepiados.
Notando seu gesto, Rigard pegou o seu sobretudo e cobriu-lhe os ombros. Onde os dedos dele esbarraram em sua pela nua, Scarlett teve a impressão de ter sido tocada por uma chama vulcânica.
O sobretudo era grande e desconcertantemente íntimo. Scarlett enfiou os braços nas mangas e sorriu agradecida, sentindo-se envolver por um cheiro que a fez prender a respiração. Era o cheiro natural, sem qualquer outra substância, do vampiro a seu lado. Um cheiro que falava dos brilhos de uma lua de sangue, talvez algumas florestas de Absinto e do ar que fica, após uma violenta tempestade noturna.
Rigard sorriu do modo como ela havia se aninhado dentro do casaco.
— Devia ter me dito há mais tempo que estava com frio. Ou eu deveria ter sido mais observador...
Estendendo as mãos, tirou os cabelos de Scarlett debaixo do sobretudo, deixando-os cair sobre o tecido negro como fios castanho-escuros de uma seda oriental. Em seguida, segurou-lhe os ombros e olhou-a. Ela viu o tumulto refletido nos olhos dele e não pôde evitar um estremecimento.
Qual seria a razão daquilo?
Rigard estava se sentindo num beco sem saída. Se se recusasse a tocar, estaria fazendo uma cena ridícula, sem o menor sentido. Seria mais fácil encarar a música como se fosse uma peça comum do que tentar fazer com que Scarlett mudasse de ideia, usando desculpas esfarrapadas. Mesmo assim, só de pensar em tocar a música que sua mãe havia composto para outra pessoa, ele teve a impressão de estar engolindo uma taça de sangue podre, sem vida alguma.
— É uma música muito longa e, acho eu, um pouco trágica...
O coração de Scarlett saltou. Estranhamente, ela se sentiu como se ele acabasse de lhe dar um presente.
— Já é tarde também, logo o sol irá nascer novamente. — Rigard continuou. — Não se importa se eu continuar de onde parei?
— Eu gostaria de ouvir aquela parte... — Nada sabendo da música, Scarlett hesitou, procurando um jeito de descrever a passagem que achara mais linda. — A parte que me faz lembrar da minha infância e quando eu brincava com as outras crianças!
— Crianças humanas? Você brincava com elas?
— Quando Vivica ainda estava viva nos eram permitido ter alguns luxos.
— Estranho, imaginar os nobres brincando com a comida.
— Pra mim, elas nunca foram comida. Elas eram minhas amigas! Afirmou co revolta.
— Isso sim é surpreendente!
Rigard estreitou os olhos especulativamente, sem deixar de encará-la. Como pudera ela adivinhar o motivo que havia inspirado aquela passagem? Ele não era tolo a ponto de pensar que a composição era tão boa, que qualquer um seria capaz de adivinhar o motivo dela existir.
— Acha mesmo que é isto que aquela passagem exprime?
De repente, Scarlett entendeu por que Rigard estava mostrando tanta relutância em atender seu pedido. A música era dele. Ele a compusera. Tocá-la para uma audiência seria o mesmo que revelar, a um estranho, um diário íntimo.
— Acho. É uma música tão linda e... e expressiva, que toca os nossos sentimentos mais íntimos. Aquela parte me fez pensar na minha infância. — Ela sorriu, aconchegando o sobretudo aos ombros. — Se não se importa, gostaria de ouvi-la de novo. Sinto que eu talvez a tenha ouvido em outro lugar, mas não tenho certeza disso.
Ricard fez que sim, espantado com a facilidade com que estava concordando.
Virando-se para o piano, começou a tocar.
Os sons rápidos encheram o ambiente escuro com a alegria e a esperança que são o direito de toda criatura que busca o amor. Para Rigard, aquele trecho expressava o breve período de tempo em que seu mundo fora, realmente, cheio de promessas. Tinha sido muito antes que percebesse quem e o que era. Um tempo que estava guardado em sua memória como uma gota de diamante no meio da rocha escura e fria de um corpo quase morto de um recém nascido abandonado para morrer.
Então, vieram os acordes hesitantes, repletos de medo. A alegria foi substituída pela confusão e o tumulto, expressando os anos em que Rigard sofrera as agonias de um ser se transformando em vampiro, sem nada do consolo que outros experimentam, quando passam por este processo no seio de uma família amorosa. Fora uma época incrivelmente solitária, uma época que ele evitava recordar, mas que com frequência guiava o vampiro em que havia se transformado.
— "No meu peito derramo minhas lástimas em lágrimas... em minhas mãos, sustento um mundo que não tem pés... em minhas costas carrego o fardo, a dor, a glória!"
Depois de alguns minutos a música mudou de novo, tornando-se gradualmente, tranquila como a superfície de um lago obscuro, num dia sem vento.
Scarlett pensou nos invernos frios e indolentes que passara, na transição entre sua infância e a idade adulta de uma vampira original. Como, em alguns daqueles dias, lutara com unhas e presas ara ser considerada crescida e pronta para herdar o legado de seu clã, enquanto que, em outros, morrera de medo de ser taxada como tal. Quase todos os dias eram gastos na exploração das margens do rio Salinas de Sangue, e as noites, contendo o ímpeto de algum vampiro jovem que tentava explorar sua extraordinária forma feminina.
Rigard compusera aquela parte quando era dos guerreiros do Castelo Red, anos atrás ele recebeu de sues parentes uma caixa contendo diversos objetos e cartas que pertenciam a sua mãe, um tesouro para muitos, mas para ele foi uma maldita maldição saber que carregava o sangue ruim dos Nemesis.
Naquela época, sentira que havia deixado para trás o trauma de seu passado, que deslizaria para um futuro feliz e gratificante com tanta facilidade quanto o dia dá lugar à noite. Naquela época, Vivica, havia lhe escrito promessas sussurradas e sonhos tolos e românticos tinham feito parte de sua existência. ser reconhecido como herdeiro da família original Nemesis e herdar o legado deles, pura ilusão de um jovem vampiro que um dia ousou sonhar e ter uma família de verdade.
Scarlett não conseguiu identificar-se com a música daí em diante. O episódio cheio de segurança e tranquilidade terminou seguido por refrões confusos e sofridos, que procuravam escapatória em cada oitava do piano. Ela prendeu a respiração, atônita com a solidão que sentiu na música. Nunca pensara que uma mágoa e um sentimento de perda tão grandes pudessem existir. Nunca experimentara tanta dor assim.
Como uma tempestade que castiga a mais fortes das rochas a beira mar, até que a mesma cede e se desprende da terra que lhe dá vida, a música fustigou seu coração até que as lágrimas começassem a deslizar por seu rosto. Afinal, a agonia terminou e um tom hesitante, explorativo, começou, fluindo para um trecho brilhante, moderno. Brilhante... E por que não dizer Vingativo...
— Será possível esquecermos tudo e fingirmos que nada aconteceu? Não é melhor encararmos o que aconteceu para vivermos nossas vidas sem tudo isso pairando sobre as nossas cabeças? O sino do castelo prenuncia o perigo. Eles estão vindo! O sino toca por todos nós... Eles estão voltando de novo. Eu tomei minha decisão. Não aceito questionamentos. Lembre-se de onde vieram. Há sangue por todos os cantos, neles, nele e em minhas mãos...
Deslizante. Sem saber por quê, ela detestou este trecho.
Esta era a parte da música de que Rigard menos gostava, mas que sempre lhe dava mais satisfação. Representava sua recuperação e fazia com que se lembrasse de que conseguira superar o que de pior a vida já lhe oferecera, tendo não só sobrevivido, como também prosperado. Vivica, Jack, sua existência miserável... tudo fora superado. Ele podia ter se tornado uma nação de um só vampiro, durante o processo, mas essa era uma troca da qual nunca se arrependera.
E então, a música terminou.
Rigard voltou-se para Scarlett. O momento foi eletrizante, frágil, e, olhando-o nos olhos, ela viu um vampiro solitário que ele tinha sido. Mas logo o vampiro jovem se foi, e em seu lugar surgiu um caçador livre e seguro de si que vira aquela manhã. O mesmo vampiro que, agora, estava sentado a seu lado.
— Obrigada!... — Scarlett murmurou, ciente do privilégio que acabara de ter.
Rigard fitou-a por um longo tempo, antes de levantar a mão e tocar-lhe uma das faces. Com a ponta dos dedos, enxugou as lágrimas que tinham escorrido de seus olhos castanhos. Segurando, então, seu rosto, inclinou a cabeça e encostou a boca em sua têmpora, num beijo tão leve e delicado quanto o toque de uma asa de um morcego.
— De nada my Lady. — Ele respondeu baixinho.
Scarlett jogou a cabeça para trás, levantando os lábios para os dele. E esperou, comandando-o mentalmente, desejando que ele a beijasse, com uma intensidade tão grande que a assustou. Por um instante, suas respirações se misturaram, a dele tocando a pele em torno de sua boca com uma intimidade quase dolorosa. Afinal, ele pressionou os lábios de encontro aos seus. O beijo, a princípio terno e hesitante, como se os dois estivessem inseguros da reação que o outro teria, logo se aprofundou.
Quando Scarlett entreabriu os lábios para deixar que a língua de Rigard explorasse o interior de sua boca, sentiu-se assolada por uma onda de desejo tão grande que a deixou atônita. Em pânico, percebeu que estava querendo que Rigard fizesse amor com ela.
O que teria acontecido com seu autocontrole, cultivado com tanto cuidado?
Como podia um único beijo daquele vampiro fazer com que perdesse o que trabalhara a vida inteira para adquirir?
Scarlett só percebeu que Rigard estava segurando a parte de trás de sua cabeça, quando tentou se afastar. Com o pânico crescendo em seu íntimo, empurrou-o, apoiando as mãos no peito dele. Rigard soltou-a assim que exerceu a menor pressão. Seus olhares se encontraram de novo, e, no fundo dos olhos dele, ela viu que algo indescritível ocorrera a ele também.
— Desculpe, Scarlett... — Ouviu-o murmurar.
Naquele momento, só um pensamento ocupava a mente dela: afastar-se de Rigard o mais depressa possível. Ele era o vampiro que sempre tivera medo de encontrar um dia. O vampiro que poderia fazer com ela o que seu pai tinha feito com sua mãe. O vampiro capaz de obter o controle de seus pensamentos e de suas ações, fazendo-a perder a individualidade. O vampiro que poderia amar de forma tão intensa, que deixaria de ser Scarlett Redfield, passando a ser o que ele quisesse, com uma personalidade tão ligada à dele que seria praticamente inexistente. Com a música e a força da própria personalidade, Rigard despira-a de sua armadura protetora e atingira sua alma vampiresca. E ela respondera com tanta presteza quanto um botão de rosa se abre ao ser tocado pelo cair do sereno noturno em dia de lua cheia.
Ela mataria e morreria por ele, se tornaria sua arma mortal se fosse preciso.
Scarlett moveu-se para longe de Rigard. De repente, ele tinha se transformado numa criatura amedrontadora. Ela lutou para se controlar e achou que havia conseguido, até ver-lhe os olhos e perceber que ele tinha entendido seu medo.
— Eu... eu tenho que voltar para a festa. Meu acompanhante já deve estar procurando por mim.
— Seu acompanhante ou algo mais?
O poder da voz de Rigard fez com que parasse, quando já estava caminhando para a porta.
— O vampiro com quem eu vim.
— O que ele é para você?
Não havia tempo para responder. Precisava sair dali. Ela teve a impressão de ter gritado "Nada!", enquanto fugia da sala, mas só um murmúrio abafado saiu de seus lábios. Segundos depois, estava de novo ao ar livre, lutando para controlar a respiração.
Tinha que arranjar tempo para pensar no que acabara de lhe acontecer. Tempo a sós.
Olhou para o Pêndulo central do castelo.
— Maldição! — Exclamou, em voz alta. — Fiquei fora quase duas horas. Jack deve estar louco, atrás de mim.
Já estava correndo em direção à festa, quando se lembrou de que ainda estava com o sobretudo de Rigard. Como poderia explicar a Jack o fato de estar com o sobretudo de um estranho?
Não tinha escolha. Teria que ir ao dormitório primeiro, pegar a sua capa e voltar, torcendo para conseguir pensar numa boa desculpa para justificar sua ausência, antes de se encontrar com Jack.
Scarlett quase riu, de puro alívio, quando voltou para a festa e viu que Jack nem mesmo notara quanto tempo estivera fora. Pois estava entretido com os diversos bajuladores por toda à sua volta.
2641 Palavras
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro