Capítulo 39 - Desafios do Coração
No dia seguinte, Scarlett acordou com uma tremenda dor de cabeça e descobriu que sangue raro e caro também podiam dar ressaca. Ela e Billie tinham ficado acordados até tarde, na noite anterior, discutindo planos e esperanças para a nova guilda que iriam criar, apontando prós e contras. No espaço de poucas horas, haviam aprendido a se conhecer melhor do que em todos seus anos de amizade. Cientes dos medos e desejos de cada um, tinham terminado a noite com um firme aperto de mão, um abraço amigo e muita esperança em seu futuro juntos. O nome da Guilda, decidiram, jogando uma moeda para o ar, seria Cadebra. O que, no entender de Billie, era justo, pois o associado mais velho sempre deveria ter a preferência de escolher.
Levantando-se, Scarlett foi até a cozinha atrás de um copo de sangue purificado e um comprimido de extrato de verbena, antes de se aventurar na luz brilhante da manhã, para pegar o jornal do reino de Morlóvia que costumava ficar junto à porta da frente. Depois de uma xícara fumegante de chá bem forte, encontrou forças para se concentrar na seção de imóveis para alugar, onde se pôs a procurar um local com as características que desejavam. Enquanto isso, Billie deveria estar fazendo o trabalho preliminar para obtenção de uma licença de funcionamento e estabelecimento da nova guilda, Scarlett tinha certeza que seu irmão Devil seria de grande ajuda. Tinham decidido que ambos estariam presentes, quando fossem ao banco interRacional para pedir um empréstimo.
Dar um passo daqueles com a crise entre os dois reinos e nas condições em que estava era loucura, mas era também uma meta a ser atingida. Pela primeira vez, em duas semanas, Scarlett estava se sentindo animada. Se havia algo capaz de fazê-la esquecer Rigard, era aquilo.
Seus dias e noites seriam tão cheios de atividade que na certa as lembranças que tinha dele acabariam por perder a força. A dor que agora atormentava seu coração logo seria uma coisa do passado.
Deixando o jornal cair sobre o colo, Scarlett olhou cegamente para a janela. Que esperanças tolas tinha de vez em quando. Jamais poderia esquecer Rigard Dimitrescu. Ele estava estampado em sua alma, de uma forma tão permanente quanto um risco de sangue na lâmina de uma espada sagrada. Nunca deixaria de sonhar com ele. A única esperança que podia alimentar era que, com o tempo, sua dor diminuísse um pouco...
O comunicador tocou.
— Já achou um lugar para nós? — Billie perguntou, em resposta ao seu alô.
— Há três ou quatro anúncios interessantes. Vou visitar para os locais em breve, assim que a minha dor de cabeça melhorar um pouco.
— Bem, não se canse demais. Eu entrei em contato para lhe dizer que arrumei duas entradas para o Baile Real de Caridade Anual em homenagem a Imperatriz Vivica que, por acaso, é esta noite. Já é tempo de aparecermos em público e deixarmos os nossos futuros clientes ficarem sabendo que a mais nova guilda de caçadores está prestes a se abrir.
Os dois discutiram alguns pontos importantes, antes de desligar. Fechando os olhos, Scarlett recostou-se na cama, para onde tinha voltado com o jornal. Era bom ter alguma coisa para fazer de novo. Embora não gostasse de admitir, sentira um certo pânico durante os últimos dias, ao ver suas possibilidades de emprego diminuírem. Que bom ela e Billie terem alguma coisa a oferecer um ao outro. Seria horrível ser considerada um caso de caridade.
Logo, Scarlett descobriu que sua dor de cabeça havia passado. Pulando da cama, preparou-se para tomar um banho, mas a campainha do comunicador a deteve, antes que entrasse no banheiro. Desta vez, era Prisca.
— Como estão as coisas? — Sua prima perguntou, como vinha fazendo todos os dias, desde que ela ficara sem emprego.
— Bem, muito bem!
— Encontrou outro trabalho?
— Quase. Seria melhor dizer que uma espécie de trabalho me encontrou. Almoce comigo e eu lhe contarei todas as novidades.
Em sua atividade contínua, Scarlett mal notou a chegada da nova estação, o outono havia chegado sem ela ao menos notar. Um local e os móveis necessários foram encontrados sem muita dificuldade. Um logotipo foi desenhado, usando um B e um S modernos e discretos, e depois impresso em manuscritos de apresentação. Em seguida, um artistas do povo Lycan, um bom pintor que foi contratado para pintar seus nomes, de modo proeminente e de bom gosto, na porta de sua guilda. O empréstimo enviado pelos seus irmãos, os papéis obrigatórios exigidos pelo conselho dos anciões e a licença para funcionamento saíram sem problemas, e eles puderam fazer planos para começar a trabalhar bem antes do que esperavam. A guilda seria anunciada daqui a poucos dias e assim novos caçadores logo seriam anexados.
Afinal, quando o inverno já estava para começar, o dia chegou. Scarlett e Billie se encontraram na porta da guilda, às oito e meia da manhã, para uma cerimônia particular de comemoração. O jornal do reino de Morlóvia tinha prometido lhes dedicar uma ou duas colunas de sua seção de negócios graças a interferência de Vergil, mas o fotógrafo que mandariam só deveria chegar dentro de uma hora.
O aroma gostoso de sangue fresco logo se espalhou pela sala de reunião da guilda, enquanto eles preparavam biscoitos de castanhas e chá de ervas para o desjejum, tinha nécter de flores, frutas da estação. Quando tudo estava pronto e eles sentados à mesa, Scarlett levantou a taça de sangue e propôs um brinde.
— A nós, Billie. Que tenhamos tanta sorte em nossa guilda de caçadores quanto temos na nossa amizade. Você é um companheiro formidável, excelente caçador e um promissor mago de seu clã, e eu nunca poderei pagar tudo que lhe devo.
— Não foi nada. É que eu sei reconhecer uma irmã vampira que está destinada a vencer, quando vejo uma. Mesmo vindo da realeza, eu sei que você tem objetivos completamente diferentes. — Ele sorriu, caloroso.
No meio da refeição, Billie tornou-se sério novamente.
— Scarlett, quero que saiba que evitei dizer qualquer coisa até agora, porque não considero este assunto da minha conta. Sei também que o fato de sermos sócios nessa guilda não me dá o direito de interferir na sua vida particular, mas não aguento mais. Vou fazer o que não deveria. Não espero que me conte o que aconteceu. Na verdade, nem sei se quero saber...
— Por que não deixa de rodeios e diz logo o que quer, Billie?
— Há algo que eu possa fazer para reconciliar você e Dimitrescu? — Quando Scarlett não respondeu, Billie continuou. — Você disfarça muito bem, mas às vezes posso ver a mágoa e a solidão que anda sentindo. No começo, pensei que as coisas melhorariam com o tempo, mas não foi o que aconteceu. Não me leve a mal, Scarlett. Você tem-se saído muito bem e não creio que os seus sentimentos pessoais cheguem a interferir com o andamento da guilda. É só que não aguento ver você tão... tão...
Seria sua depressão tão evidente? Tomara tanto cuidado para disfarçar os próprios sentimentos... Chegara mesmo a nunca pronunciar o nome de Rigard em voz alta.
— Está bem, Billie... — Disse afinal, depois de pensar um pouco. — Vou lhe contar
tudo.
— Você não tem...
— Eu sei, e não acho que esteja interferindo. Não pedi o seu conselho até agora porque sabia que seria inútil. Tentar fazer qualquer coisa é como construir castelos feitos de bolhas de sabão... o vento vem e leva tudo. Prefiro não desperdiçar mais as minhas energias. — Scarlett sorriu com tristeza. — Mas lidando com uma resposta direta... não, nada pode ser feito. O que tive com Rigard Dimitrescu está tão acabado quanto o que tive trabalhando an guilda real da minha família.
— Ele também se sente assim?
— Não sei... Mas não tem importância. Basicamente, somos tão diferentes que seria impossível contornar a diferença. É melhor não tentar.
— O que é isso, Scarlett? Você nunca foi assim. Nunca admitiu que algo pudesse ser impossível. Até pensei que essa palavra não existisse no seu vocabulário. Pois foi sempre a primeira a lutar contra os desmandos dos nobres dentro do reino.
— Aprendi muitas lições novas nos últimos tempos.
— Não seja tão derrotista!
Scarlett encarou-o.
— Desculpe, não pretendia ser tão melodramática. — Pensativamente, deu uma mordida nos biscoitos feitos por mãos das bruxas. — Com vinte e pouco anos de idade, você já deve ter-se sentido terrivelmente atraído por um semelhante que, no fundo, não era o seu tipo.
Ele concordou.
— A única diferença é que não fiquei tão arrasado quanto você. Fiquei foi muito contente por ter escapado enquanto ainda era tempo.
— Talvez eu precise de mais alguns dias para atingir esse ponto.
— Acho que você nunca atingirá.
As mãos de Scarlett começaram a tremer. Que possibilidade horrível! Afinal, só estava conseguindo atravessar cada dia porque tinha esperanças de que o outro fosse melhor.
— Isso não faz diferença... — Admitiu, relutante. — O rompimento é definitivo. Billie começou a dizer alguma coisa, mas parou, ouvindo atentamente. Depois, jogou o guardanapo sobre a mesa e se levantou.
— Acho que chegou alguém.
Scarlett olhou para o relógio.
— Ainda é muito cedo para ser o fotógrafo enviado pelo jornal do reino.
— Vou dar uma olhada.
Enquanto esperava que Billie voltasse, Scarlett limpou as migalhas dos pães da mesa, com mais força do que seria necessário. Zangada, amassou o guardanapo de papel numa bola e jogou-o no lixo, errando por alguns centímetros e vendo-o bater na parede.
Maldito vampiro sexy e charmoso do Rigard Dimitrescu!, pensou, amaldiçoando principalmente o modo como a lembrança dele estava sempre invadindo sua vida. Levantando-se, pegou o guardanapo e colocou-o no lixo. Nunca se livraria dele? Ele havia estragado uma manhã que deveria ser perfeita para ela.
Quando não invadia sua mente e seus pensamentos constantemente, havia ainda os seus sonhos, agora tinha que surgir até nas conversas de seus conhecidos e amigos.
O som de vozes cada vez mais altas chamou sua atenção para a porta da frente.
— Sinto muito!... — Ouviu Billie dizer, com impaciência. — Mas não estamos entrevistando ninguém hoje. Volte amanhã.
Scarlett sorriu. Se havia uma coisa que Billie detestava, eram criaturas sobrenaturais inconvenientes. Do modo como estava agindo, a fada lá fora podia se considerar cortada do quadro de possíveis caçadores da nova guilda.
— Se me deixar falar com a regente Scarlett Redfield, tudo se resolverá agora.
Scarlett virou-se na cadeira, achando a voz furiosa familiar.
— A regente Redfield não pode ver ninguém hoje. Está indisposta.
Scarlett sorriu da expressão antiquada que nunca ouvira Billie usar antes.
— Scarlett! — A voz furiosa gritou. — Quer fazer o favor de vir até aqui e me livrar deste idiota?
Scarlett correu para a porta e explodiu numa gargalhada gostosa quando viu Billie e Prisca cara a cara, enfrentando-se como dois combatentes em batalha, prestes a se engalfinharem.
— Graças aos Deuses! — Prisca exclamou, ao vê-la.
— Você conhece esta vampira louca?
— Claro que sim. — Virando-se para a prima, Scarlett disse. — O que está fazendo aqui tão cedo? E como conseguiu a folga? Pensei que esta fosse uma das épocas mais ocupadas para você.
— Achei que você poderia estar precisando de uma mãozinha por aqui. — Lançando um olhar fulminante a Billie, Prisca passou por ele. — Por isso, tirei o dia de folga. Não sei como esse grosseirão filho da puta achou que eu estava procurando trabalho.
Scarlett sufocou uma risada, ao olhar para a cara de Billie e ver como ele fitava Prisca.
— Antes que as coisas piorem ainda mais, Prisca, gostaria de lhe apresentar Billie, meu sócio. Billie, esta é Prisca, minha prima, do reino de Marlóvia. Billie é um caçador de elite do reino de Morlóvia e um promissor mago do seu clã. Já Prisca anteriormente era uma Luna na cidade de WereWolf.
— Sobre isso de Luna, melhor esquecer isso... Essa história ficou no passado! Afirmou Prisca.
Billie e Prisca trocaram um aperto de mãos, com todo o entusiasmo de duas espadas se chocando em uma batalha de vida e morte.
— Pretende tratar todos os seus visitantes com a mesma delicadeza com que me recebeu? — Ela perguntou, muito meiga, mas com o olhar feroz de uma assassina vampira.
— Só aqueles que chegam inesperadamente e são sem educação!... — Billie respondeu, com o mesmo charme.
— Então, é melhor colocar essa informação nos seus anúncios de apresentação. Seria uma pena que perdessem um cliente só porque ele teve o atrevimento de aparecer sem avisar antes.
— Clientes são sempre bem-vindos. Agora você é outro assunto!
— E posso saber por que achou que eu não era uma cliente?
— Os sobrenaturais que têm meios de contratar um caçador geralmente se portam com mais classe.
Scarlett acompanhou a troca de amabilidades sem acreditar no que estava ouvindo.
Ela poderia ser um dos móveis da sala, pela atenção que os dois estavam lhe dando. E o comportamento deles! Totalmente estranho. Será que o seu amigo estaria se sentindo atraído por usa prima Prisca?
— Esta é a coisa mais grosseira que já ouvi alguém dizer desde que vim para este reino. — Prisca colocou as mãos na cintura, dando toda a impressão de que ficaria mais feliz se pudesse fechá-las em torno do pescoço de Billie.
— Deve ser porque, até agora, conservou a boca fechada e não provocou ninguém.
— O que está havendo com vocês dois? — Scarlett meteu-se entre eles, com medo que a briga acabasse em agressão física. Ambos fitaram-na como se estivessem saindo de um transe.
Billie foi o primeiro a falar, quebrando o silêncio pesado.
— Vamos começar de novo? — Perguntou, olhando humildemente para Prisca.
Ela correu os olhos de Billie para Prisca, e depois para Billie novamente, o rosto corado de vergonha dando-lhe uma aparência bem mais jovem que seus duzentos e poucos anos de idade.
— Acho que ou começamos de novo, ou escolhemos as armas para o duelo.
O riso geral dissipou o último traço de tensão.
— Já tomou o café da manhã? — Scarlett perguntou, pegando a prima pelo braço e levando-a para a sala de reunião.
— Já, mas não me faria mal juntar alguma coisa ao sangue gelado que está balançando de lá para cá no meu estômago. — Prisca olhou por cima do ombro e corou de novo, ao ver Billie fitando-a atentamente.
Scarlett sorriu. Nunca tinha visto uma expressão tão desconcertada no rosto de Billie.
Mas, afinal, ele nunca se encontrara com uma vampira como Prisca.
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