Virando um assassino
Kelly havia sido apenas uma simples vítima das circunstâncias. Era a típica pessoa que estava no lugar errado, na hora errada, no caminho errado. E que, principalmente, tinha uma vida errada.
Eu me forçava a sentir firmeza, a manter a pose, a mentalizar que eu estava fazendo o certo. Mas a única
coisa que eu conseguia sentir era pena. Lástima daquela mulher que sabia do quanto havia sofrido, do quanto a vida e o destino tinham sido cruéis com ela e do quanto, apesar de todos os milhares de obstáculos, ela continuava lutando e seguindo em frente, firme e forte. Era estranho porque eu via um pouco de mim nela. Claro que nossas histórias tinha contextos completamente diferentes. Além disso, ela não parecia o tipo de pessoa que se tomaria os rumos que eu estava tomando, o de se vingar. Mas uma coisa entre nós dois era igual: o quanto fomos vítima do destino. Também o quanto tínhamos vidas solitárias, o quanto éramos perdidos em nossos próprios mundos, atormentados pelos milhares de fantasmas do passado que insistiam em invadir a nossa mente todos os dias, praticamente todos os momentos, nos fazendo lembrar de momentos horríveis que nós dávamos tudo para apagar para sempre e fingir que nunca aconteceram.
Claro que eu não podia ler os pensamentos de Kelly, só havia conversando poucos minutos com ela, mas tinha quase certeza que seus pensamentos eram esses.
Me identificava tanto com ela. Era ela quem eu realmente queria ter como tia, não o iceberg que eu tinha como irmã de minha mãe. Aliás, Kelly podia ser mais que isso. Poderia ser minha mãe. Acho que, exatamente por isso, senti uma ligação tão grande com ela. Porque ela me fazia lembrar minha mãe. Seu jeito doce, meigo e a expressão meio melancólica e sentimental clara em seu rosto. Meu pai me contou uma vez que minha mãe sempre teve um pé na melancolia e no sentimentalismo, mas acabou ficando mais sensível depois da morte do meu avô, que era ela amava muito.
Kelly devia ter sofrido muito mais que minha mãe. Matar ela foi a coisa mais difícil que já fiz em minha vida. Mas, como eu já falei, ela foi uma vítima das circunstâncias. Era como se eu tivesse que atirar nela para acertar Roberto. Ou se eu tivesse que atropelar ela para matar Roberto. Porque ela estava no meio do caminho. Roberto ia sentir coisa muito pior do que senti quando ele jogou no vaso sanitário a única lembrança dos meus pais. Pior: ia sentir exatamente a sensação que senti quando recebi a notícia da morte deles.
A diferença talvez pioraria ainda mais as coisas. Roberto não era uma criança como eu. Tudo que aconteceu me afetou pra caramba, só que o fato de Roberto já saber muito bem o que é a vida, de não ter mais uma cabeça infantil, faria dua mente ficar bem pior do que a minha ficou. Ele devia sofrer muito mais que eu. Pensei em tudo isso. E a balança pesou muito mais para o lado da vingança. E já estava decidido: eu faria tudo em nome daquela vingança. Não importava o que fosse.
Eu me afastei um pouco com o carro e fui para uma área que ela não pudesse me ver. A observei de longe. Depois que ela pegou os remédios, pegou a bolsa e foi para o ponto de ônibus que estava do lado da padaria. Dei sinal para um que se aproxima e subiu nele. Fiquei o observando ir embora, num silêncio que perpetuou pelo que parecia ser várias horas, mas foram apenas alguns segundos. Liguei o rádio para preencher o silêncio. Estava tocando uma das minhas músicas favoritas, de uma das minha cantoras favoritas. "Simeone like you", da minha grande diva Adele. Sempre me identifiquem com ela pelo jeito melancólico da maioria das músicas.
Girei o volante para voltar para casa e, no trajeto, ia cantando a música inteira, sabendo cada parte perfeitamente. Claro que meu alcance vocal não era lá essas coisas. Ainda bem que nunca tive intenção de ser cantor. Além do mais, não tinha como comparar a minha voz com a de uma estrela como Adele.
Distraído com a música, que sempre me trazia uma série de sensações que me faziam extremamente bem, mas que eu não sabia explicar exatamente por quê, quase atropelei uma garota que atravessava a rua correndo. Parei o carro na hora exata. Graças a Deus. Já havia sido difícil matar Kelly.Já estava com mortes demais que em meu currículo por um dia.
A menina se aproximou da janela do motorista, eu já desconfiava, pela fisionomia, que eu tinha visto meio embasada antes, só que agora tinha certeza. Era era. A Alessandra. Estava com o cabelo preso em um coque de qualquer jeito, uma bolsinha vermelha pendurada no ombro e seu rosto não tinha nenhuma maquiagem. Dava para ver que ela tinha sea arrumado rápido. Mas estava linda do mesmo jeito.
- Alessandra? - eu disse na hora, com um misto de surpresa e alegria que eu não sabia disfarçar.
- Eduardo! - ela falou de modo sincero e visivelmente feliz, o que fez com que uma sensação de bem estar ao ver sua reação invadisse o meu corpo.
- Você está indo visitar o Roberto no hospital?
- Sim. Você já foi vê-lo?
- Fui. Estou saindo de lá agora.
- Ah. - ela olhou para os pés e depois para mim de novo. Percebi que aquela era a minha oportunidade. O destino podia ter sido cruel comigo no passado. Mas, no presente, estava sendo maravilhoso.
- Você quer uma carona?
- Ah, não precisa se encomodar.
- Que isso, vamos?
- É que... - Alessandra parecia insegura.
- O que? Está com medo de mim?
- Não. Tá bom. Eu vou com você. - ela abriu a porta e se sentou no banco do carona, nossos braços se tocaram por um instante e eu não podia deixar de reparar nisso. - Obrigada. - ela colocou o cinto de segurança.
- Por nada.
- Mas... - ela olhou para o retrovisor. - você vai me achar a pessoa mais careta do mundo, só que eu tenho que te perguntar: você tem carteira?
Dei um um sorriso malicioso, abri o porta do luvas e mostrei a carteira de motorista.
- Só não repara na foto, por favor, sem comentários.
Ela riu.
- Tudo bem.
Guardei a carteira.
- Espero que você não me peça para mostrar a identidade, se não, se você for cardíaca vai ter um ataque de susto aí mesmo.
Ela riu novamente, sua risada ficou mais alta.
- Todo mundo sai ruim em fotos de identidade.
- Eu não saí ruim. Ruim é pouco.
Alessandra deu um largo sorriso.
- Aliás, você tem motivo para reclamar. Você é tão bonita que devia sair bem em qualquer foto.
Ela pareceu ficar com vergonha e se ajeitou no banco. Ficamos em silêncio por um instante e ela decidiu mudar de assunto.
- Pedi a carteira porque achei que você não tivesse 18 ainda.
- É, mas eu tenho, policial Alessandra.
Novamente o riso dela dominou o carro. Eu estaca indo bem no papel de impressionar a minha platéia de uma garota só.
Na verdade, eu tinha 17 ainda. Havia arrumado a carteira de motorista falsa com um colega que trabalha com essas coisas. Minha prestava tanto atenção em minha vida que nem sabia a minha idade, então, foi muito fácil mentir para ela que eu já era maior de idade.
- Eu já tinha ido visitar o Roberto hoje. Mas decidi ir de novo para ver se ele está desacordado. - a expressão de Alessandra mudou para a tristeza. - não sei como isso pode ter acontecido. Como? Que coisa estranha.
- É mesmo. Eu me culpo tanto. - liguei o carro e girei o volante.
- Você não tem culpa. O que acho maos estranho é quem podia fazer isso com ele. O Roberto não tem inimigo nenhum.
Pelo jeito, Alessandra não sabia quem era a pessoa que estava ao seu lado. Nem a que estava namorando com ela, nem a a que estava ao seu lado naquele momento, no caso eu.
Fomos conversando sobre Roberto, Alessandra ía me contando que estavam juntos há dois, que já haviam brincado várias vezes que iam casar por conta do tempo que estavam juntos, planejam dar um jeito se estar juntos na faculdade. Aquilo tudo estava me deixando enjoado. Sorte que Alessandra tinha voz linda, bonita de ouvir, fina e suave.
Só de ouvi-la, já me sentia bem. Ainda não sabia explicar exatamente o que invadia meu corpo quando estava em sua presença, mas tinha certeza que a queria ao meu lado várias outras vezes para sentir aquela sensação novamente.
Até que chegamos ao hospital. Entramos e ficamos na sala de espera por uns momentos, já que não haviam atendentes naquele momento. Até que vimos vários médicos irem para a saída do hospital correndo. Eu e Alessandra nos olhamos sem entender nada.
Alessandra decidiu se aproximar de uma das enfermeiras que voltava da saída.
- Desculpe, você sabe o que está acontecendo?
- Trouxeram uma mulher que passou mal de repente em um ônibus. E ela está morta.
- Nossa! Sabe por que ou quem é?
- Não sabem ao certo. Mas sabem o nome. A mulher se chama Kelly Fernandes.
O rosto de Alessandra ficou pálido em um instante.
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