44. O Sacrifício dos Guardiões
Isadora, assim como na guerra da aldeia, convenceu Mendes a ficar mais um pouco para o enterro. Por mais que não gostasse de Antônio, sentia-se um pouco culpada pela sua dor. Kaimbe, por outro lado, resolveu ficar, talvez para passar mais tempo com Isadora. A verdade é que ele ainda não sabia se ficariam juntos ao término da tarefa, e aproveitava cada instante que podia para estar com ela.
Quando a preparação começou, Isadora permanecia com o bebê enquanto Kaimbe e Mendes foram com alguns funcionários ajudar a limpar o barco e posteriormente, retirar o corpo de Aurélia.
O corpo foi colocado com cuidado na areia, onde uma grande máquina estava escavando. Quando o buraco alcançou a profundidade adequada, o trator foi desligado e o silêncio perdurou.
Aurélia foi baixada no fundo da terra, envolto em lençóis. Mendes, Kaimbe e alguns operários desciam o corpo enquanto os outros, incluindo Isadora com o bebê nos braços, observavam. Ouviam-se orações seguida de homenagens e murmúrios. Todas essas etapas do enterro, deixavam as lágrimas de Antônio cair enquanto o céu se abria.
Quando o corpo já estava coberto pela terra, Antônio ainda permaneceu desolado e de ombros curvados.
— As flores favoritas dela eram jasmins. — Ele se ajoelhou próximo à sepultura feita de tábuas e troncos. As mãos, tocando a terra.
— Quer que as colhemos para ela? — Perguntou Raimundo, que recebe um sinal afirmativo antes de selecionar alguns dos homens para buscarem-nas.
Os jasmins, eram pequenas flores brancas de perfume doce que foram coletados em abundância. Mas ao invés de jogá-las em cima da terra, como habitualmente se fazia, Antônio teve outra ideia.
— Quero jogá-las onde Aurélia se foi. Quero ir até o mar.
Essa fala causou um déjà-vu em Mendes, que lembrou-se dos enterros em Orla dos Ventos, todos com flores jogadas ao mar. Imaginou que ali tenha sido onde e quando a prática começou. Essas memórias lhe aqueceram ainda mais a vontade de levar seu Arthur interior ao próximo século.
— Precisamos ir agora — Mendes disse, olhando para Isadora e Kaimbe.
— É, vamos. — Ela moveu a cabeça para o bebê e depois levantou-a para Antônio, que estava mais afastado.
Toda cena ao redor era melancólica, o mar ao fundo embelezando o céu cinzento, as ondas batendo na margem, lembrando o ritmo dos passos que iam até Antônio. Quando o trio chegou, o homem estava de costas, observando o mar, onde logo embarcaria outra vez.
— Estamos indo. — Isadora anuncia.
— E para onde vão?
— Ainda não sabemos, para longe daqui.
O pescoço do Capitão girou para avistar Isadora antes do filho, quando o percebe, o sorriso que tentou formar se acaba antes de se estender por completo. Ele aproximou-se mais dela e, com a voz impregnada de emoção, diz:
— Eu prometi a Aurélia que deixaria nosso filho bem, mas... ao mesmo tempo, sinto que não posso cumprir essa promessa.
Isadora esticou as laterais dos lábios em linha reta, olhando da terra para Antônio. — Meus pais fugiram por anos para me manter segura e perderam suas vidas por isso. Esse foi o sacrifício deles, e hoje... devo tudo a eles.
— Eu devo a muita gente. — Ele coçou o nariz — E estive pensando sobre o meu sacrifício.
— E descobriu o que?
— Que o meu sacrifício é diferente do de seus pais. Meu sacrifício é o conhecimento.
— Do que está falando?
Antônio estampou um olhar sério. — Para que meu filho fique longe dos Perpétunos, ele não deve conhecer o pai nem a mãe. Eu devo me afastar dele.
— Não! Não acho uma boa ideia. — Isadora balançou a cabeça. — Com quem ele ficaria?
Ele olhou diretamente nos olhos dela. — Com você. Se permitir.
Kaimbe desperta com a fala e dá um passo ao lado de Isadora — Você não sabe o que está falando. Está triste, é por isso que está tendo essas ideias.
— Não. Eu estou certo e decidido. Vocês não seriam minha primeira escolha, mas ela é uma guardiã do tempo, e também pode ser a guardiã do meu filho. Eu sou um homem rico desaparecido, e logo eles me encontrarão.
Isadora recuou atordoada. — Eu não posso aceitar o bebê. Nem sabemos para onde ir.
— Depois, voltem. Eu lhes arrumarei um barco. Com ele, podem ir para onde quiserem.
Isadora ficou petrificada. Antônio se curvou para acariciar os cabelos do filho, os olhos brilhando de emoção.
— Sei que estou pedindo demais.
— Sim, está. — Kaimbe afirma.
— Mas não é a última coisa que peço.
Kaimbe levantou as sobrancelhas — Tem mais?
— Sim. Quero que o nome do bebê seja Antônio Menezes. É importante eu saber que de alguma forma, eu e minha mulher estamos ligados a ele.
Isadora perdeu a fala, porém Carlos reapareceu, preenchendo esse vazio.
— Chefe, o barco está pronto. Estão esperando pelo senhor.
Antônio concordou devagar. — Já vou. Esperem por mim.
Carlos se afastou e Antônio olhou para o filho. — É a última vez que te vejo. — A tristeza retornou a face. — Vou sentir muito sua falta, mesmo tendo o conhecido apenas hoje.
— Antônio, não deixe ele aqui?!
Mas o pai já estava de costas limpando os olhos, enquanto seus companheiros os aguardavam, com as flores nas mãos. Isadora chamou por ele, mas não houve resposta. Foi quando o homem atingiu uma determinada distância, que Isadora falou:
— Ele realmente fez isso... ele deixou o filho com a gente.
Foi aí que chave das consciências abriu a porta das memórias de Arthur. Os acontecimentos presentes começaram a querer amarrar nós com momentos de outra vida. Mendes se permitiu entender, e uma das memórias que veio, foi de um dia de pesca com seu avô. E naquele barco, o velho lhe revelava sobre a sua família, não a biológica, mas a que lhe adotou. Ele disse que seu pai era pescador. Em reflexo ao pensamento, Mendes encarou Kaimbe, lembrando-se de que esse crescera na sua aldeia sobrevivendo obviamente da pesca.
Depois, ele prestou atenção em Isadora. A música que ela cantou ao bebê... Ele se lembrava de seu avô cantarolando a mesma melodia para ele várias vezes, sendo a última vez no quintal de casa, no dia em que a família Menezes soube da partida de Helena. Mendes questionou-se quais eram as chances de Kaimbe e Isadora terem sido os pais adotivos de seu avô? Lembrou-se também de que o nome dos pais adotivos eram João e Ana.
Por mais que tudo fizesse sentido, os nomes diferentes causavam uma confusão. "Eles teriam trocado de identidade ou, na verdade, nem eram eles? ". A porta das memórias voltou a se fechar trazendo-o de volta para a velha Orla dos Ventos. Ele volta a atenção para dupla ao lado, e gagueja:
— Vamos... a-a ampulheta.
Isadora enruga a testa. — Mas, e o bebê?
— Depois podemos resolver isso.
— Arthur, estamos falando do seu avô! — Isadora protestou. — Não dá para resolver isso depois.
— Justamente por isso é melhor não fazer nada agora. Helena e Arthur não podem se envolver nessa escolha. Primeiro, voltamos. Depois, resolvemos nossas vidas.
— Desde quando começou a seguir as regras da viagem no tempo?
— Ainda estou tentando.
Isadora o mirou por alguns segundos até dar um aceno curto de cabeça para concordar com ele, mas a dúvida ainda pairava em seu olhar.
— Então tá. Vamos levar o bebê? — Ela perguntou a Kaimbe.
— Podemos ir, mas para onde? — Kaimbe questionou.
Mendes observou o farol no alto de uma colina próxima. — Se o farol está ali, sua casa ficava mais ou menos ao norte dele.
— E como você sabe disso? — Isadora indagou.
— É fácil quando se vive usando bússolas.
— Impressionante, Arthur. — Ela entreabre os lábios — Eu não duvido que ia para minha casa usando uma.
— Às vezes fazia isso. Achava divertido.
— Tudo bem. Só que mesmo assim, precisaremos de uma bússola. O barco de Antônio já está de partida.
— Cheque a bolsa. — Mendes apontou para a bolsa de couro que ela carregava.
— Está aqui dentro?
Isadora recebe a confirmação de Mendes, mas como segurava o bebê, pediu ajuda a Kaimbe para vasculha a bolsa. Com uma rápida procurada, ele retirou de dentro dela o objeto dourado.
— Como você conseguiu isso? — Isadora pareceu surpreender-se.
— Peguei emprestado de Antônio. Sei que ele deve ter outra.
Kaimbe começou a girar o artefato de um lado para o outro como se fosse algo de outra terra. Acabando com a curiosidade, Mendes a pede de volta.
— Vamos? — ele estende a mão.
Kaimbe entregou a bússola a Mendes e finalmente os três estavam prontos para recuperar a segunda ampulheta.
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Depois de andarem onde apenas se viam arvores e moradores desconhecidos, Kaimbe interrompeu o silêncio para fazer um questionamento aos outros:
— Como saberemos a hora de parar?
— Eu estava pensando nisso agora. — Mendes estudava a bússola. — Helena, me ajude a pensar.
— Lembra do despejo de agua que tem perto da minha casa? — Ela olha ao redor. —Ficava perto do mesmo lugar em que costumávamos escalar um pequeno barranco.
— Lembro, e acho que ainda tem como reconhecer.
— Então vamos lá, se vermos água, estaremos perto.
— A água sempre procura o caminho mais fácil, descendo a terra. Vamos seguir o declive do terreno — disse Kaimbe, indicando a direção com a cabeça.
— E depois? — Mendes pergunta. — Pedimos ajuda?
— Se acharmos alguém é uma opção. — Disse Isadora. — Se não procuramos na raça.
Eles começaram a descer uma pequena colina. A mata estava quieta, mas de vez em quando ouvia-se o gotejar das folhas da chuva recente.
— Não tem nada aqui que vocês se lembrem? — Kaimbe pergunta.
Mendes olhava da bussola para mata tentando identificar algo em comum, mas não reconhecera nada, conseguinte continuaram avançando até se aproximarem de uma vegetação densa que se abria para uma trilha estreita ladeada por árvores altas. Mendes ainda não tinha certeza se os detalhes lhes evocavam alucinações que o faziam ver familiaridade onde não havia.
Passaram por uma árvore alta com uma cicatriz distintiva no tronco e com raízes expostas serpenteando pelo chão. Mais adiante, uma formação de pedras despontava entre as folhas, como um antigo marco natural. A trilha os levava cada vez mais fundo na mata, onde a luz do sol que conseguia espaço entre as nuvens, filtrava-se pelas árvores fazendo pontos de luz e sombras no chão.
Os arbustos de espinhos e flores brancas e amarelas não eram estranhas e pontuaram um caminho até onde o cheiro de água fresca e terra molhada preenchiam o ar. A trilha se abriu completamente, e o rio apareceu com suas águas, através da correnteza tranquila que convidava-os a se aproximarem.
O local estava intocado. A água límpida com pequenas pedras no fundo, e peixes nadavam calmamente em um lugar de serenidade e beleza.
As árvores altas ao redor, balançavam no ritmo da brisa enquanto as folhas caíam lentamente, girando até pousar na superfície do rio. O sol, filtrado pelas copas, jogavam o seu brilho dourado sobre a cena.
Ao observarem a paisagem, algumas memórias de Arthur ressurgiram. As pedras que costumavam escalar estavam lá, menos velhas, mas ainda reconhecíveis. As flores silvestres que cresciam nas margens do rio exalavam um perfume doce. O curso do rio seguia seu caminho, serpenteando pela mata e desaparecendo entre as árvores.
— Conhecemos aqui. — Mendes comenta. — Só que...
— Está bem diferente — completou Isadora, observando o reflexo das árvores na água.
— O rio ainda está limpo — Kaimbe agachou-se para tocar a água. — Uma pena que poluirá com o tempo.
— Éramos proibidos de vir para cá. — Isadora lembrou. — Mas não tinha jeito, gostávamos daqui.
— Quando crianças, escalávamos aquele barranco ali — Mendes apontou para uma elevação rochosa próxima ao rio. — É o único que está exatamente como eu me lembrava.
Kaimbe observava o rio, focado na correnteza tranquila antes de perguntar:
— E como vamos chegar até a casa dela daqui?
Mendes, ainda segurando a bússola, respondeu:
— Continuamos pelo Norte. A casa dela fica a poucos passos atravessando o rio.
— Fácil então, é só procurar pela casa.
Isadora, porém, balançou a cabeça, interrompendo o entusiasmo de Kaimbe.
— Não tem casa nenhuma, Kaimbe. A casa onde cresci foi construída do zero pelo meu avô.
— E tem como encontrar o seu avô? — perguntou ele, inocentemente.
— Ele seria uma criança no máximo agora. E mesmo assim, meu avô não cresceu em Orla dos Ventos. Existiam outras comunidades próximas da cidade, e ele viveu em uma dessas. Orla dos Ventos foi a que mais se desenvolveu, por isso alguns dos moradores vieram de outros lugares morar aqui.
— Certo. Então, onde exatamente procuramos? — Kaimbe perguntou mais sério.
— Vamos olhar pelo chão. — Mendes disse — A ampulheta deve ter caído em algum lugar próximo de onde ficava a casa.
— Então andem. Vamos atravessar o rio. — Isadora passa pela frente.
O bebê nos braços dela estava calmo, e Isadora o segurou com mais cuidado ao pisarem na agua rasa do rio. Quando andaram mais à frente da margem, tinham começado a observar os detalhes do terreno.
Com o aumento do tamanho da vegetação Kaimbe, agachou-se para observar mais atentamente o solo, afastando folhas e pequenos galhos. Mendes fazia o mesmo, enquanto Isadora, com o bebê, olhava ao redor, tentando encontrar algo que se destacasse. Mas apesar de procurarem minuciosamente, não encontraram nada. Até Kaimbe que estava com as expectativas mais altas, sem paciência, sentou-se na terra, exasperado.
— Tem algo de errado — disse Isadora, frustrada. — Será que alguém pode tê-la roubado?
Mendes considerava tanto essas opções como outras: Teria ele interpretado a mensagem do avô errado? E se só existisse uma ampulheta mesmo e ele estava enganado? O caminho até ali havia sido trabalhoso e até perigoso, e esses pensamentos o deixaram ansioso. Quando Isadora perguntou o que ele achava, Mendes apenas se sentou na terra como Kaimbe.
— É isso? Você desistiu? — Isadora perguntou.
Ele não sabia o que responder, mal sabia o que sentir. Não tinha um plano b para caso tudo desse errado. Convenceu todos de que sua ideia fazia sentido, mas nem tinha certeza mais do que dissera.
— Diga algo, Arthur!
— Pare de me pressionar! — Mendes respondeu com grosseria, deitando-se na terra e olhando para cima.
A sombra do tronco o protegia do sol, enquanto seu nervosismo só crescia.
— Dê um tempo a ele, Isadora. — Kaimbe pediu a ela.
Isadora esfregou as têmporas e disse — Eu que preciso de um tempo, já que nada aqui pode ser simples?
— Não sei, mas me sinto bem sabendo que você está aqui comigo.
— Pare com isso — Isadora disse, sentindo a direção que Kaimbe estava tomando. — Sei onde você quer chegar.
— Eu só quero Isadora... que você volte comigo para a aldeia.
— Eu queria muito, você não faz ideia. Mas como eu colocaria quem eu amo em risco?
— Você acha que isso é amaor? Ficar longe de quem se ama?
— Sim, as vezes é! — O bebê esticou os bracinhos e ela quase perde a atenção pelo movimento.
— Isso é ridículo, Isadora! — Kaimbe exclamou. — Isso não é diferente do que Antônio fez ao abandonar o filho com a gente.
— Como você ousa comparar? — Isadora retrucou, indignada. — Ele é um bebê indefeso! Eu estou tentando proteger você!
Mendes, com seu próprio nervosismo, queria explodir. Como eles ousavam ter problemas enquanto ele tentava resolver os próprios? Concentrando-se no alto das árvores, ele tentava relaxar o cérebro inconformado. Nos vagos flashes de memória, ele se lembrou outra vez da facada que levou e como havia sido insuportável, a rápida lembrança o arrepiou a ponto de tocar no mesmo lugar onde foi atingido. A agonia o afastou a imagem, e tentou pensar em outra coisa. No entanto, a memória retrocedeu só um pouco, para o momento em que ele derrubou a ampulheta. Aquele acidente, havia mudado tudo. Por mais que Arthur tenha ido parar no século passado e aquilo tenha causado tantos problemas, ainda assim, foi isso que lhe dera a chance de viver mais um dia.
A luz do sol nem chegava a tocá-lo graças à sombra do tronco que tampava o calor. Isadora e Kaimbe continuavam a discutir, e tão rápido quanto a queda de um graveto, algo veio à mente de Mendes, uma luz tão forte de uma lâmpada, que não superava a do céu que não o alcançava. Seus olhos se abriram mais, e ele parou a briga do casal para dizer:
— A ampulheta estava no segundo andar.
Os dois o olharam confusos.
— E daí? — Disse Isadora.
— E se a ampulheta não estiver no chão? E se ela estiver no alto, presa em alguma árvore?
Os interlocutores levantaram as pálpebras ao captarem a ideia.
— Pode ser — Kaimbe levantou-se, limpando a terra do corpo.
Isadora, ainda segurando o bebê, automaticamente olhou ao redor, tentando encontrar uma árvore que parecesse promissora, e quando se menos esperou, todos estavam com os queixos erguidos, examinando as árvores ao mesmo tempo. Eles começaram a se dispersar, cada um tomando uma direção diferente mantendo a vista no alto.
Mendes, mais afastado, julgou ter vislumbrado algo reluzente entre as folhas e decidiu investigar. Não hesitando, iniciou a ascensão por uma das árvores mais próximas. Entre os galhos que escalava, sua respiração acelerava pela crescente esperança de encontrar a ampulheta. Movia-se com cautela, testando cada ramo antes de confiar-lhe o peso do corpo, sentindo a textura áspera da casca sob as mãos e os pés. O vento balançava levemente as folhas que parecia incentivá-lo a continuar.
Do alto, a vista era vertiginosa e os galhos formavam uma rede de madeira e folhas, filtrando a luz do sol em feixes dourados que dançavam no ar, como uma miríade de pequenas estrelas. Mendes atentava-se a qualquer brilho ou forma incomum entre o verde. Subitamente, um bando de pássaros alçou voo dos galhos próximos. O movimento brusco quase fez Mendes saltar de susto.
Por um breve instante, perdeu o equilíbrio, as mãos deslizando pela casca rugosa. Mas ele se segurou firme, os músculos dos braços retesando-se com força. Após acalmar os nervos, conseguiu focar novamente. Observou ao redor, certificando-se de que o que havia visto era mero engano dos sentidos.
Descendo da árvore, ouviu o chamado de Isadora dizendo ter visto algo, então limpando suas roupas se apressou para onde Isadora estava. Kaimbe chegou quase ao mesmo tempo, já olhando para cima, tentando identificar o objeto mencionado, todavia, as folhas dificultavam essa visão.
— Olhem da minha posição, aqui. — Isadora pediu, apontando um ponto específico.
Fazendo isso, Mendes e Kaimbe identificaram o formato de algo coberto pelas folhas. Kaimbe decidiu subir para verificar mais de perto. — Vou olhar.
Cumprindo a fala, Kaimbe iniciou sua subida. E pelos metros ganho no tronco da arvore, seus olhos se estreitavam, mirando no brilho esquivo que parecia se ocultar entre a folhagem. Enquanto subia, galhos rangiam, e Kaimbe seguia imperturbável.
Quando alcançou uma altura considerável, parou para recuperar o fôlego. O ar assoprando o pólen das flores que se espalhavam ao seu redor. Seu rosto apreensivo, examinava concentrado o entorno tentando avistar o objeto desejado, parcialmente oculto entre as folhas.
— É a ampulheta? — Indagou Isadora do solo.
Kaimbe, com o corpo levemente inclinado para frente e as mãos segurando um galho grosso, respondeu:
— Espera um pouco, vou verificar.
Ele se aproximou mais, olhando o brilho característico do vidro e do metal. Ao afastar as folhas, a ampulheta revelou-se em todo seu esplendor, seus contornos definidos reluzindo à luz filtrada do sol.
— Sim, é ela! — Confirmou ele.
O alívio bateu como uma brisa fresca após um dia sufocante de verão. Mendes deixou escapar uma comemoração, enquanto Kaimbe tentava se aproximar mais.
— Está em um galho muito longe — disse Kaimbe, frustrado.
— Tudo bem, espera um pouco.
Mendes olhou ao redor para encontrar algo comprido que pudesse alcançar a ampulheta. Seus olhos esquadrinhavam o solo, vasculhando a vegetação rasteira e os galhos dispersos pelo chão.
Eis que, ao longe, seus olhos encontraram um galho perfeito, pendente de uma árvore próxima, que se dividia em duas partes. Então Mendes aproximou-se dela, analisando o galho bifurcado. Colocou o pé na abertura entre as duas partes, testando a resistência da madeira e com cautela, começou a subir.
Com o coração ritmado de esperança, Mendes alcançou o galho mais longo. Estendeu a mão, sentindo a casca tocar seus dedos calejados. Depois, transferiu o peso que tinha para o galho, que, por um breve instante, pareceu suportá-lo. Mas logo ouviu o trágico estalido de madeira se partindo.
O galho, incapaz de suportar o peso, quebrou-se subitamente, lançando Mendes em uma breve queda. Com rapidez, Mendes elevou-se, segurando o galho que conseguira arrancar. Suas roupas estavam manchadas de terra, folhas e suor, mas não se importava em limpar. Analisou a ferramenta da natureza, ajustando seu plano e retornando ao ponto onde Kaimbe o aguardava.
— Consegui um galho! — ele anunciou, brandindo a peça de madeira como um troféu.
— Ótimo, vai servir. — Kaimbe disse.
Mendes tentou então subir pelo tronco onde Kaimbe permanecia parado tentando chegar perto o suficiente para estender o galho a ele.
— Chegue só um pouco mais perto — Kaimbe pediu.
— Acho que não consigo subir mais do que isso.
— Não tem problema. — Kaimbe olha par baixo. — Eu vou aí.
Kaimbe se agarra com força no tronco usando o atrito dos pés para se sustentar na arvore. Quando os dois homens se aproximam, o galho é passado de uma mão a outra como uma tocha.
Kaimbe voltou a subir, com menos facilidade dessa vez, mas nada que o impossibilitasse. Esticando o braço o máximo que pode, deu um cutucão no bulbo do objeto.
— Estou descendo, Kaimbe.
— Tudo bem. — Kaimbe esforçava-se para de esticar ainda mais agora.
Mendes deu um pequeno pulo, dobrando os joelhos quando chegou perto do chão. Voltando a se esticar, ele olha para cima, acompanhando a tarefa do companheiro ainda pendurado. Kaimbe chegou a se segurar apenas com os dedos, para só assim, poder cutucar a ampulheta de uma forma que ela saísse por inteira do galho e caísse. Entretanto, a queda que mirava o chão, destinou-se as mãos de Mendes.
O objeto bateu em seus dedos, como em um encaixe perfeito. A ampulheta era dele outra vez, e logo estaria com a sua versão futura em Orla dos Ventos. Porém, o pensamento que devia lhe dar conforto, estranhamente, foi morrendo, com uma ansiedade que ganhou seu corpo. Todo medo de estar retornando a um futuro que não conhecia era real. E sua expressão mudou, aparentando esse desespero.
— Está tudo bem, Arthur? — Isadora notou a mudança.
Mendes, tentando disfarçar aquilo que o dominava, então respondeu com um sorriso forçado:
— Não é nada.
— Então gire-a logo por favor, antes que mais alguma coisa aconteça.
Ele sentiu-se como uma criança prestes a receber uma injeção, a ansiedade crescendo dentro de si. Respirou fundo e a girou. A areia começou a cair como se estivesse esperando por isso há muito tempo.
Enquanto a ampulheta despejava seus grãos, Kaimbe, que ainda descia da árvore, saltou de um dos primeiros galhos, aterrissando com um leve baque ao lado deles. Ele se levantou, comentando que a arvore estava muito úmida.
— Você foi incrível, Kaimbe. — Isadora elogiou.
— Obrigado. Você também foi.
O guerreiro, como aqueles que possuem o coração que transbordam emoções, inclinou-se para beijá-la. Seus lábios se aproximaram, mas, num movimento rápido, Isadora desviou o rosto. A rejeição, inesperada e abrupta, fez com que Kaimbe instantaneamente ficasse confuso.
— O-o que foi? — Perguntou ele, como se temesse a resposta que viria.
Isadora, tinha os olhos lacrimejantes devido as lágrimas não derramadas, pensou antes de responder:
— Não quero ter motivos para mudar de ideia. Deixar você é algo muito difícil. Ter duas pessoas vivendo na minha cabeça ajuda um pouco com esse sentimento, mas quando apenas Isadora tomar conta de mim, eu não sei se vou suportar ficar longe de você. Então por favor... não me dê motivos para ficar.
Kaimbe, ainda parecia não compreender completamente, e deslizou um dedo pelo rosto dela, limpando uma lágrima solitária que caía na sincronia das folhas. O bebê soltou um gemido suave e tudo ao redor continuava vivo, todos os ciclos, independentemente das decisões difíceis que precisavam ser tomadas.
— Isadora... Eu sempre tive compromissos como futuro líder dos Wanakauas, sempre aceitei quem nasci para ser, e o lugar de onde vim. Já você... você mudou tantas vezes, veio de longe, conseguiu entrar na minha vida e ganhar o respeito de todos. Está pensando em ir embora para uma vida nova e, na próxima vida, vai ser alguém totalmente nova. Eu admiro o seu jeito de se adaptar e ainda ser você, de ainda me fazer te amar.
Ele deslizou as mãos pelos cabelos dela com carinho, o toque leve como uma carícia.
— Eu quero muito voltar para minha família — continuou ele. — Mas acho que ganhei de Amana uma família nova. Ganhei a chance de ser só o Kaimbe.
Isadora, segurando o bebê com um braço e limpando os olhos com o outro, perguntou hesitante — Vai dizer isso mesmo que estou pensando?
Kaimbe confirmou com um sorriso. — Já que você não vai voltar comigo, vou ficar com você.
— Kaimbe, você... você não deveria...
— Eu achava que também não deveria, mas a aldeia sobreviverá sem mim. Os Wanakauas são fortes para isso, esse é o preço da minha felicidade.
Isadora deixou escapulir um soluço. Seu corpo tremia, enquanto suas lágrimas caiam. Kaimbe levantou o queixo dela com uma das mãos, deslizando os dedos com cuidado pelo rosto, limpando suavemente suas lágrimas com o polegar. A tristeza nos olhos de Isadora encontrou a compaixão nos de Kaimbe.
Então Kaimbe inclinou-se outra vez e a beijou. Não de forma apressada ou impulsiva. Suas almas estavam entrelaçadas, e nem o tempo ou espaço poderiam mais desgrudar aqueles lábios sem que não fossem de sua vontade.
Os olhos de Isadora se fecharam lentamente, nos últimos toques suaves. Quando finalmente se separaram, foi apenas o suficiente para se olharem nos olhos. Os rostos ainda próximos, respirando o mesmo ar, partilhando o mesmo instante de vulnerabilidade e compromisso. Kaimbe manteve a mão no rosto dela, os dedos ainda na linha de suas lágrimas secas.
Mendes sentiu que sua vergonha cruzou com o medo diante do beijo. Embora sentisse felicidade por ver que os dois haviam se entendido, ele também olhava para baixo, preocupado com a areia que caía em seu próprio ritmo. Manteve os olhos nela até que sentiu uma mão tocar seu ombro. Era Kaimbe.
— Está bem?
— Acho que não.
Dessa vez, Mendes não conseguiu disfarçar. Seu coração parecia prestes a saltar, e a ansiedade crescia dentro de si como uma maré impiedosa. Numa última tentativa de respirar durante o afogamento de emoções, Mendes expressou seu medo:
— No futuro, as coisas já não estão indo bem. Tenho medo de perder pessoas como Helena e meu avô. — Ele fitou Isadora — Mas também estou pensando se há como perder ainda mais do que isso.
Isadora, ao ouvir, aproximou-se mais dele. — Independentemente do quão ruim as coisas sejam, você não pode ficar aqui, nem eu. Também estou correndo risco, mas ficar aqui pode ser ainda pior. Cada dia que ficamos neste tempo, dá mais vontade de mudar as coisas, mas o tempo todo temos que seguir um caminho neutro, e isso é muito difícil. Nossas consciências devem voltar.
Mendes lembrou-se do que seu avô lhe dissera um dia: ele tinha sua própria vida para viver e seu próprio tempo para criar lembranças. Isadora tinha que seguir seu caminho, assim como Mendes. Não era justo que ficassem limitados a Helena e Arthur que já tinham suas próprias vidas.
— Você é um grande homem, Arthur. — Kaimbe elogiou. E, sussurrando em seu ouvido, acrescentou — Só não deixe a Helena escapar.
Isadora, curiosa, perguntou — O que cochicharam?
— Não se preocupe com isso.
Mendes olhou para Kaimbe, agradecido. — Kaimbe... Vou sentir falta de você também.
Ele estendeu a mão, mas Kaimbe o abraçou calorosamente. Mendes disse, com um sorriso emocionado:
— Esse abraço foi para Arthur, ou Sérgio?
— Esse abraço é para o Arthur. Eu vou sentir menos falta de você porque o Sérgio Mendes ainda estará conosco.
Mendes soltou uma risada sincera, a primeira em muito tempo. Esperou que o sorriso desaparecesse, e olhou para a ampulheta, que estava com a areia quase toda do outro lado. Levantou a cabeça, vendo Isadora se aproximando.
— Te vejo na próxima vida. — Ela disse.
Eles se encararam, e então a magia da ampulheta se fez. Uma luz brilhante envolveu Mendes, levando-o exatamente para onde ele precisava estar: um momento no futuro desconhecido que ele tanto conhecia, onde Orla dos Ventos era o lar do jovem Arthur Menezes.
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