40. Anzol dos Condenados
Antônio saiu da cabine batendo a porta, enquanto Mendes ficava parado com sua irritação, desejando dizer mais coisas a ele. Porém, apenas passou a mão pelo pescoço, sentindo suas unhas crescidas roçarem a nuca e um som de batidas leves na madeira alertando a aproximação de alguém. No céu as ilhas brancas, sobrevoavam o oceano no tempo em que ele se debatia internamente.
Concentrando-se na imagem do alto, via uma tranquilidade externa, da qual, não tinha tanta capacidade para absorver. Seu monstro demitia sensibilidade e rosnava para a paz. Se pudesse explodir o mínimo dos objetos, esqueceria que estava num barco e afundaria na própria saliva de dor cruel. E para completar seu descontentamento, a porta da cabine se abriu e Aurélia apareceu, buscando o contexto da discussão que ele não forneceu. A dama moveu seu pescoço avistando o marido mais afastado. Ela o chamou, não obtendo resposta. Dessa forma, seguiu em sua direção até a parte da frente do barco.
Com a cabeça sobrecarregada, Mendes saiu da cabine, indo pelo lado oposto, na parte traseira. Lá estavam Isadora e Kaimbe, alheios ao ocorrido. Isadora tentou alcançá-lo, mas esse apenas murmurou:
— Agora não.
Ele se isolou em um canto um pouco distante, mirando as águas ao redor do veículo agora parado, com os pensamentos e emoções semelhantes a tornados em torno dos antigos parentes da decepção.
Após conhecer Antônio como ancestral, aceitava suas semelhanças e, ainda assim, sentia-se moralmente distante dele. Sua insatisfação crescia, pensando se, em alguma parte de si, seria capaz das mesmas ações do casal, sob influência da ampulheta. Independente da resposta, não tinha como se orgulhar de um passado como aquele. Seus futuros bisavós, com toda sua riqueza, usaram o artefato para ganhos pessoais, o que lhes atribuía o desprezo pelas escolhas.
A pele de Mendes começava a arder, e o mesmo notou que Isadora e Kaimbe haviam desparecido da retaguarda, colocando-o como o próprio vigilante de si e das próprias ideias.
Após certo tempo olhando o horizonte, descobriria que nem o constante balançar do barco o acalmaria. Contudo, o espaço que lhe foi dado não se prolongou, quando Kaimbe discretamente retornou.
— Isadora pediu para eu falar com você.
O outro não se virou. — Já disse que não quero falar.
— Então me siga em silêncio, tenho uma coisa para mostrar.
A vista oceânica não estava pronta para ser abandonada, mas com mais um chamado de Kaimbe, foi pressionado a se virar. Em concordância, os pés dele foram atrás dos passos do homem forte. Esse o conduziu até a área longe da cabine principal, onde havia algumas cadeiras espalhadas pelo chão e, algumas varas de pesca derrubadas, como se tivessem sido deixadas às pressas.
— Foi ideia da Isadora?
— Você disse que não queria falar nada. — lembrou Kaimbe.
O conforto afundou Mendes em uma das cadeiras, suspirando. — Não quero que você perca tempo comigo.
— Não é perda de tempo. — Insistiu Kaimbe, estendendo uma vara a ele. — Segure.
Mendes a analisou antes de atender ao pedido. Kaimbe sentou-se ao lado dele, puxando uma caixa pequena que estava escondida sob uma das cadeiras. Abriu a tampa, apresentando uma seleção variada de iscas.
— O que você tem aí? — Mendes perguntou.
— Dê uma olhada. — Kaimbe empurrou a mencionada caixa, permitindo-o avaliar o fundo.
— Tem minhocas e peixes pequenos.
— É... e veja essa aqui. — Kaimbe pegou uma isca artesanal com penas e pequenos pedaços de metal. — Essas já são feitas à mão... Sabe por que são tão boas?
— Porque imitam os movimentos de peixes pequenos ou insetos na água. Elas atraem os predadores maiores.
Kaimbe retirou um pedaço de linha da caixa. — Isso mesmo. Estou acostumado a fazer iscas com materiais que encontro. Folhas, penas, até ossos de pequenos animais.
— Fazia isso desde pequeno, certo? — Mendes preparou uma linha com uma das minhocas.
— Sim. Aprendi observando.
— Apenas observando? Eu prefiro na prática.
— A prática é a melhor parte. — Kaimbe terminava de prender a própria isca.
— Meu pai e meu avô diziam que eu tinha que saber o que os peixes comem, onde se escondem, como se movem.
— É, conhecê-los é necessário, porque esses animais obviamente sabem mais sobre a água do que nós. — A vara dele, deu um rápido giro e seu anzol voou até boiar sobre a água que formou uma pequena onda.
Mendes imitou seu movimento e lançou sua linha ao mar na mesma velocidade. — Você já sabe o que vai fazer depois que isso acabar?
— Não... ainda não. — Disse Kaimbe. — Continuo tentando convencer Isadora de voltarmos juntos, mas ela continua insegura.
— Eu a entendo. Mas ela ainda pode mudar de ideia.
— A conhecendo bem, talvez não. — Ele virou o pescoço para o companheiro — mas e você? O que vai fazer?
— Honestamente não faço ideia. Não sei se vou aguentar o luto. E esse passado podre da minha família me decepciona cada vez mais.
— Esses erros não são seus.
— Mas me sinto perturbado.
— Olha, mesmo que a escuridão do seu passado seja longa, a luz dos seus passos vai dissolvê-la com o tempo.
O ritmo da linha com anzol estava sendo meditativo para Mendes, que a acompanhava com olhos húmidos. — Acabei de perceber que precisava disso... de um tempo, mesmo sabendo que é algo que nunca dura.
— Se conseguimos pegar algo bom hoje, fico satisfeito com a duração. — disse o outro dando um leve puxão na vara de pesca. — Mas realmente, eu também precisava disso.
— Sabem que estamos aqui?
— O casal? Não, não sabem. Mas esse é mínimo que merecemos por aturá-los.
Mendes teria sorrido ao comentário se pesos não derrubassem seus lábios. Consequentemente, sua linha sofreu uma vibração devido a um forte puxão, que fez o apertar da vara, e o enrolar do fio. — O-olha... peguei algo.
—Pegou?! — Kaimbe exclamou. — Onde está?
— Ainda não posso vê-lo.
O ser tentava se libertar de todas as maneiras, espalhando pingos de água ao redor. Mendes tentava puxá-lo o mais rápido possível, mas o peixe estava bastante relutante em ser capturado, contorcendo-se como podia. Mas, em alguns segundos o bicho de escamas já havia se aproximado bastante do barco, dando para ver algumas de suas partes, mostrando que se tratava de um peixe grande e acinzentado. Ao mesmo tempo em que Mendes se esforçava em pegá-lo, sons se elevaram na direção da cabine.
— O que está havendo? — Kaimbe olhou no caminho de onde as vozes vinham.
— Pare de insistir!
— Você não vai decidir sozinha!
Uma pessoa que falava, parecia ser Isadora e a outra Aurélia. Quando o som se elevou, Mendes acabou involuntariamente concentrando-se no que as vozes diziam, tomando um susto quando Kaimbe gritou um "Cuidado!", tarde demais. O peixe deu um puxão forte no fio, fazendo a vara perder o controle e pular de seus dedos lisos, permitindo o peixe escapar, levando a vara consigo.
— Mas que droga! — Mendes queixou-se para as ondas, enquanto as vozes continuavam.
— Não devolveria!
— Você não pode fazer isso.
Kaimbe puxou a linha para se levantar. — O que estão falando?
— Não sei. — O companheiro se, põe, de pé, desfazendo-se da paz anterior. — Mas vamos ver.
Frase feita antes de dirigirem-se a cabine, encontrando por lá, Isadora segurando a ampulheta, com Aurélia e Antônio em pé diante dela de rostos contorcidos de raiva.
— Vocês... abusam dela. — Isadora balançou a ampulheta.
— É abuso sobreviver?! — Aurélia gritou. — O que eu não posso é aceitar o que me diz.
— O que está acontecendo aqui? — Mendes perguntou.
— Sua amiga... está dizendo absurdos, e não deseja devolver a ampulheta — explicou Aurélia. — Daqui a pouco irá desmanchar nosso acordo.
— Isadora, nós prometemos que eles poderiam ficar com ela quando tudo acabasse?
— Isso não vai acabar, vamos pensar melhor. Estão brincando com o tempo só para viverem a vida dos sonhos. Estou me sentindo cumplice por concordar em simplesmente devolver a eles.
— Eu também não confio nenhum pouco neles, mas isso também interferiria de mais na linha do tempo.
— E se eu ficar com ela? Nada disso precisaria ter acontecido. Você nunca teria ouvido falar da ampulheta. Não teria mais volta no tempo e não teríamos morrido em outra vida.
— Ou vocês criam uma situação ainda pior. — Antônio andou para perto dela. — Está na cara que você se quer, sabe o que fazer com ela, então é melhor devolver isso, ou eu a tiro de você a força!
— Você não fará nada! — Kaimbe se aproxima igual.
— É só sair da minha frente e verá seu animal estúpido!
E tão rápido quanto a fala, o soco de Kaimbe o atingiu com tamanha força, que Aurélia gritou antes da queda do marido. Antônio tentou se levantar com o rosto avermelhado enquanto Aurélia, vendo a dificuldade correu para socorrê-lo, mas esse, recusa a gentileza e se levanta sozinho, mirando Kaimbe com o rosto aquecendo.
— De que jaula tiraram você! — Antônio falou cuspindo sangue.
— Kaimbe! — gritou Mendes. — Não faça nada.
Antônio se levantou, mas Kaimbe foi em sua direção e o agarrou pela gola da camisa.
— Me solta! — Antônio grita, quando é erguido do chão. — Se arrependerá!
— Não antes de você. — Kaimbe o empurrou contra a parede da cabine, que estalou por cima do gemido do homem.
Antes que ele pudesse se recompor, Kaimbe o socou, desta vez no estômago, fazendo-o dobrar-se. Aurélia gritou mais alto e foi até Kaimbe para afastá-lo, mas era como ver uma criança mover uma rocha. Sua ação foi inútil, tanto que a única coisa que Kaimbe sentiu, foi a pele das mãos perturbarem os ossos do crânio do Soares.
— Solta ele! — gritou Aurélia paralisada, com os olhos de lágrimas.
— Kaimbe, chega! — implorou Isadora quando a boca de Soares sofre um corte. — Aurélia vai ter o bebê!
Se fora a fala ou a combinação das súplicas com a exaustão física que incentivaram Kaimbe a parar de socar, seria um mistério. O homem com porte de guerra respirou forte como seus músculos, e percebendo que suas mãos ainda seguravam Antônio pelo colarinho, finalmente o solta, derrubando o peso, que gemeu em sua própria pintura de gotas vermelhas.
Aurélia choca-se perante a vista, exclamando horror em suas falas. Os olhos dela ficaram vermelhos e seu choro se avivou. — Meu Deus... meu Deus! — ela soluçou, as mãos tremeram e ela se agachou ao lado de Antônio.
— Aurélia... — Isadora andou apressada até eles. — Eu o ajudo, eu...
— Cale-se, sua... — Aurélia olhou para Isadora furiosa, iniciando uma cadeia de xingos a ela. No entanto, seu rosto se contorceu de dor e sua mão se moveu rapidamente para o abdômen fazendo Isadora indagar o que fora.
— Ah! Eu... acho que algo está errado... — Aurélia arfou, e um líquido se espalhou ao redor de seus pés, misturando-se ao sangue que ainda pingava do rosto de Antônio.
— A-a bolsa...! — Isadora olhou de Mendes a Kaimbe parecendo apavorada.
— Ela vai ter o filho agora?! Vai demorar para voltarmos com o barco. — Mendes deu três passos à frente, notando que Antônio havia ficado inconsciente no chão.
— Eu sei... isso não podia acontecer agora! — Isadora diz em pânico.
— O que vai fazer?
— Um parto!
— Consegue fazer um?
— Uma vez fiz com ajuda do meu pai e teve outra que...! — a voz dela tremeu.
— Deu errado? Está bem. Você vai ter a nossa ajuda.
Isadora fez uma careta de puro pavor e Aurélia soltou um gemido alto, agarrando o abdômen com força.
— Vamos ver... A-aurélia... preciso que você abra as pernas — Isadora tentou passar confiança.
Mendes observou Aurélia com o rosto contorcido de dor, afastando as pernas o máximo que conseguia. Isadora fechou os lábios e se agachou de frente para ela. Mendes prendeu a respiração vendo a expressão de Isadora mudar ao olhar mais de perto.
— O que foi? — Mendes indagou.
Isadora levantou um olhar. — O bebê ainda não está na posição correta.
— Do que você está falando? Por que ainda?
— Precisamos fazer um corte na barriga. Não vai dar para tirar assim. — Isadora sussurrou. — A bolsa estourou, mas o bebê não está descendo do jeito certo.
De soslaio, ele olhou preocupado para Kaimbe. Na mente, imaginava uma cesariana sem os equipamentos adequados. Isso seria extremamente arriscado e se desse algo errado, seu avô morreria e nem seu pai ou Arthur existiriam. Infelizmente não havia tempo para buscar alternativas. Aurélia estava em trabalho de parto, e o bebê precisava sair logo.
— Acha que vai conseguir? — Dirigiu-se a Isadora, mas essa parecia mais concentrada nos próprios pensamentos e sem responder, chamou a atenção da mulher grávida:
— Aurélia, aqui tem algum kit de primeiros socorros?
Gemendo de dor, ela balançou a cabeça. — Sim... na cabine maior... no armário... — ela arfou, apertando os olhos.
As pernas de Mendes não se deixaram formigar, e ele imediatamente agiu, correndo para o convés inferior em busca do kit de primeiros socorros. Chegando na cabine maior, ele abriu o armário embutido e começou a revirar o conteúdo freneticamente, até encontrar uma pequena caixa branca com uma cruz vermelha. Ele a pegou e voltou rapidamente para onde as mulheres estavam.
Isadora abriu o kit, examinando o conteúdo. Havia gaze, álcool, alguns instrumentos básicos e uma tesoura cirúrgica. Não era muito, mas teria que servir.
— Aurélia, respire... e tenta se acalmar. Vamos fazer uma cesariana, porque não temos outra escolha.
Na mesma hora Aurélia soltou um grito de dor e medo. Tais sentimentos logo se transformaram em um surto e, Subitamente, Aurélia acabou por esticar o braço e com força acertar um tapa no rosto de Isadora que deixou todos momentaneamente paralisados.
— NÃO... POR FA-AVOR!
Isadora acariciou o próprio rosto e Kaimbe se agachou, agarrando os braços de Aurélia, tentando imobilizá-la sem machucá-la mais. Ela começou a espernear e Mendes segurou suas pernas, mantendo-a o mais imóvel possível.
— Fique parada! — Mendes cerrou os dentes.
Aurélia continuava a resistir com os olhos lacrimejando, e no meio de seus soluços, Antônio abriu os olhos, gemendo de dor. Ao ver sua esposa gritando e se debatendo, ele tentou alcançá-la, murmurando palavras que não eram compreensíveis devido aos sangramentos na boca.
Ele parecia querer ignorar a agonia, tentando se mover. E em uma das tentativas empurrou o chão com as mãos para levantar o corpo pesado e dolorido. Mas, assim que fez isso, um grito estrangulado escapou de sua garganta. Antônio colocou a mão no lado direito do peito, e em seguida começou a massagear as costelas. Com movimentos desajeitados e espasmódicos, as tentativas de se levantar foram frustradas pela dor excruciante que o dominava. Mendes olhando a cólera, imaginou que Antônio talvez tivesse quebrado algumas costelas na briga.
A cena era caótica: Aurélia gritando e lutando, Kaimbe e Mendes tentando imobilizá-la, e Antônio, quebrado e ensanguentado, tentando inutilmente alcançar sua esposa. Mendes cruzou o olhar com Isadora, que já havia se recomposto e estava preparando os instrumentos do kit de primeiros socorros. O suor escorria pelo corpo de todos e Isadora se inclinou sobre o abdômen de Aurélia, desinfetando a área com o álcool.
— Isso vai doer, Aurélia. Eu sinto muito. — Isadora pegou a tesoura cirúrgica.
O corte inicial aconteceu, mas foi apenas o começo do horror. O sangue de Aurélia começou a escorrer pela pele, misturando-se com o líquido amniótico que já havia se espalhado pelo chão, em uma poça de náuseas. Mendes sentiu a bile subir à garganta, mas a engoliu de volta. Segurando as pernas de Aurélia, sentia os espasmos de dor que atravessavam seu corpo, enquanto expressava seu horror de várias maneiras. Ela implorava por sua vida e, em seu desespero, também pedia para que salvassem sua vida ao em vez do bebê.
— Matem... ma-atem ele... por favor!
O terror de Isadora misturava-se com a chama que evitava a desconcentração. Ela cortou através das camadas de pele e músculo. O sangue quente jorrava, escorrendo por seus dedos e pingando no chão já manchado.
Aurélia estava quase inconsciente de dor, seu corpo tremendo violentamente, e com o tempo os seus gritos diminuíram gradativamente, até se tornarem gemidos baixos. Isadora tinha noção da própria respiração e tentava controlá-la assim que possível. Quando finalmente chegou ao útero, Isadora fez uma incisão que fez os olhos de Aurélia reviraram-se de dor extrema.
O corte no útero revelou o bebê, mas algo estava terrivelmente errado. O pequeno corpo estava enredado no cordão umbilical, e essa cena criou um cubo de gelo invisível que escorregou pela barriga de Isadora. Ela tentou puxar o bebê para fora, mas o cordão estava firmemente enrolado em torno do frágil pescoço.
— Não...
Isadora tentou desatar o cordão, suas mãos tremiam muito. Ela puxou o cordão e, ao mirar a delicadeza, acabou por apertá-lo ainda mais. O sangue começou a jorrar intensamente, um fluxo que ameaçava inundar a pequena abertura que ela havia feito.
Isadora tentou desesperadamente estancar o sangramento com derramar das lágrimas. Ela estava perdendo o controle, a mente dela processando a visão que tinha do bebê imóvel com seu corpo pequeno e pálido.
— Sua... culp... — Aurélia soltou um último gemido de dor antes de cair inconsciente, seu rosto coberto de suor.
Isadora mudou de cor, seus lábios ficaram trêmulos. O bebê foi retirado, mas não emitia nenhum som, seu corpo pequeno, estava inerte em seus braços.
— He-elena... — Mendes chamou preocupado.
— O cordão... estava... — Ela respirou outra vez. — Estava... muito apertado...
— Isso não está acontecendo! — Mendes exclamou. — Não! Não está...
Isadora olhou ao seu redor. Aurélia estava morrendo, o bebê estava morto e Antônio ensanguentado. Estavam perdidos, presos em um pesadelo, com a morte rondando, implacável e inexorável.
— Olha para mim... — Mendes a chamou. — Você pode usar a ampulheta... você pode usá-la e tentar de novo...
— Não, eu não posso... — ela iluminou seu rosto repleto de transparentes gotas. — É a segunda vez que vejo esse bebê morrer.
— O-o que você está dizendo?
— Da primeira vez... o bebê estava invertido e eu demorei muito para perceber. Ele morreu antes que eu pudesse fazer algo. Agora, quando fiz a cesariana, vi que o bebê estava se enforcando no cordão umbilical. Não consegui salvá-lo de novo. O que está acontecendo?
— Isso não faz sentido, não dá para mudar o tempo? — Kaimbe questionou.
— Eu só sei que eu falhei... falhei de novo.
— Meu Deus, Helena... — ele buscou por alternativas ou ideias que surgissem, até voltar a reconsiderar a fala anterior. — Presta atenção, precisamos tentar outra vez. Precisamos fazer isso funcionar.
A ampulheta havia sido deixada no chão alguns metros de distância e Isadora olhou para ela. — Eu não aguento fazer isso de novo!
— Você precisa aguentar! Não deixe as coisas assim. — Mendes insistiu.
— Não era para isso acontecer...
— Não é sua culpa, mas já que voltou no tempo uma vez. — Kaimbe mirou seus olhos. — Faça de novo.
— Não sei se...
— Helena... O meu vô precisa nascer.
Os pés dela ficaram grudados no piso do barco. Ouvindo Mendes falar, pensou nos momentos que passou junto de Arthur e nos outros em que seu avô os acompanhava. As lembranças boas que tinha de Orla dos Ventos apagavam de sua mente a imagem de um bebê morto em seus braços. Tentou banhar-se nessa calma, e com sucesso converteu-a em impulso, e dele brevemente veio sua determinação. A decisão chegou por último, fazendo-a esticar-se para o lado, agarrando a peça.
Mendes gesticulou positivo a ação, ao mesmo tempo que Isadora fitava Kaimbe antes de enfim, girar a ampulheta. A areia fluiu rápido, e depois de um tempo um brilho dourado envolvendo tudo e o tempo, pareceu desacelerar ao redor, enquanto a cena começou a se distorcer, desvanecer e retroceder.
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