35. Pirra parte 2
~-~Especial~-~
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A sobrevivência não é um direito, é uma conquista, arrancada das garras da morte com astúcia e vigor. A lei do mais forte prevalece nos tribunais da selva, ela aplica sua própria justiça e prende a todos em sua cadeia alimentar. Uma mulher, agindo de maneira primitiva, lutando para além de seus sonhos, pela mais básica das necessidades – a vida.
O veneno que é seu medo, percorre as veias, tão letal quanto o que corre nas da cobra que carrega; e o coração tão acelerado quanto os saltos da coelha em seu regaço. Seu sangue é precioso e escorre feito joias no verde, desperdiçando seu valor em uma escuridão tão valorosa quanto, pois essa os mantinha ocultos, e os seres ocultos eram um dos sobreviventes mais pacientes do mundo.
Não cruzando o caminho de seus inimigos em sã furtividade, a mulher mirava aos arredores, tendo sua visão distorcida entre o que sentia no presente e o que via no passado. E entre rápidas piscadelas, e com a dor de suas feridas abertas, se viu em um ambiente nada novo e tão pouco atraente.
Ao fundo, distante, mas impossível de ignorar, estava Silvia em uma sala de aula. A garota odiosa, uma visita temporária e indesejada que chegou com sua mãe Joana. Essas, haviam se infiltrado na vida de Pirra e sua naturalizada família, colocando as palavras passadas de seu pai como uma falsa mentira: Joana e Slivia passaram alguns dias conosco. "Que desfigurada noção de tempo". Uma falsidade tão a mostra quanto o sol que banha as manhãs e foge antes do reflexo. Pelo menos, com agradável brilho, Silvia sorriu educadamente em seu canto, esperando o professor sair por de trás de sua mesa, apontando seu bigode com os dedos.
— Vamos ver. — Ele segurou o livro escolar, de frente para os estudantes folheando-o — Dizíamos que a República foi o resultado de várias tensões políticas em nosso país. As elites militares e agrárias viram que o sistema imperial não mais atendia às demandas políticas e econômicas do Brasil e...
Pirra pegou seu caderno de anotações. O professor não costumava escrever no quadro, e isso lhe fazia interpretar as palavras entre as folhas. A ponta rabiscou o papel em ranhuras de caligrafia não visualmente atraentes, todavia decifráveis.
Ao escrever um nome relativamente difícil, a ponta de seu lápis virou e no instante sentiu algo duro atingir-lhe a cabeça. Uma batida opaca - e uma borracha suja caiu sobre seu caderno. Pirra levantou o pescoço conduzida por alguns sorrisos suprimidos. Tentou manter a paciência, então voltou sua atenção para frente, porém em menos de um minuto uma bolinha de papel a atingiu, desfazendo-se ao tocar seu cabelo. Ela olhou de novo para cara do culpado, tentando identificá-lo, mas encontrou faces indiferentes e olhares evasivos. Com um contido suspiro, ela recolheu o papel amassado, que no momento repousava em seu caderno. Ela o desdobrou discretamente sob a mesa para ler a mensagem escrita de forma descuidada: "para a mais feia e pirrada de nossa classe" Apertando o papel entre os dedos, ela o jogou contra o chão.
O movimento despertou um reflexo do professor, que quase virado, fez questão de tornar-se de frente para turma, e ainda seguir os olhos até a origem do som leve que bateu contra o piso.
— Olha!... — indagou impaciente, abaixando-se para pegar o pedaço de folha amassada, e desdobrando-o para ler com uma rápida olhada. — Acham que está certo escrever algo assim? — levantou o recado nos dedos, notando que a sala ficara em silêncio. — Não é isto que eu esperava de vós. Isso sendo bem sincero é grosseria e acima de tudo, ignorância.
Ele caminhou entre rostos que ficaram instantaneamente obedientes, — Antes de qualquer coisa, o respeito. Brincar com isso pode parecer inofensivo para alguns, mas também, pode ferir. O nome "Pirra", como ignorais, remete à outra coisa. Se tivessem o interesse, descobririam que pode fazer até referência a mitologia grega.
Nem a própria dona da coincidência conhecia tal informação, e duvidou que seus pais tivessem pensado nisso, mas já que o professor estava ao seu lado, não ousou questionar. O restante da sala compartilhava da mesma ignorância e o educador explicou a história de Pirra e Deucalião e em como sobreviveram a um dilúvio enviado pelos deuses para purificar o mundo da maldade "que bobagem". Depois informou que a nova humanidade veio, com pedras lançadas por eles que se transformavam em gente.
No fundo da sala o professor parou o andar, colocando a bolinha de papel sobre a mesa de um aluno a esquerda de Silvia. Supunha-se que este tivesse praticado o lançamento, pois o mesmo abaixou o olhar e apertou as próprias unhas quando o professor tomou a fala.
— A Pirra da lenda que ouviram já superava diversas provocações na história, assim como a nossa de agora — disse, acenando sutilmente na direção da menina — Só que para esses colegas que o fazem, só digo que antes de lançardes gracejos sobre o nome de alguém, recordai-vos da importância que eles o têm.
Pirra tentou diminuir-se em sua cadeira, a fim de não se sentir o foco de atenções por comparações importunas. Enquanto a certa distância, Silvia notava o desconforto e disfarçou o divertimento cochichando algo para o menino de cabeça baixa, talvez estivesse encorajando-o, independente do que fora incitou uma cadeia de risinhos dos que estavam ao redor. Pirra desejava ardentemente xingá-la por isso. E como se não percebesse o que ocorria ao redor pela empolgação do tema, o professor continuava:
— Já que mudamos de assunto, alguém arrisca dizer com o que essa história de Pirra nos lembra? — O pescoço dele girou quase como uma coruja — Alguêm?
As bocas ficaram caladas e segundos com a questão carecendo de proatividade, seu dedo apontou para a recém-atormentada. — Pirra, por favor... você mesmo.
Com os ombros baixos que torciam por anonimato, ela levanta as pálpebras, focando no professor frustrada, dizendo quase inaudível — me escolheu só porque temos o mesmo nome?
— É bastante coincidência. Mas te escolhi porque ninguém se esconde nas histórias que estudamos aqui. Então, diga o que acha.
Encurralada pela expectativa do professor e dos colegas, ela respirou, reunindo coragem para falar mais alto desta vez. — Me lembra a Arca de Noé... Mas... sem os animais.
— Arca de Noé. Certo! E... o que você acha disso?
— Eu... eu acho... errado.
Mais risos se espalharam com suavidade e rapidez. Silvia não perdeu a chance de fazer um olhar provocativo quando essa a olhou de soslaio.
— Por que você diz que é "errado"?
— Porque a história não fala... dos animais... parece que não se importam.
— É um bom ponto. Vejam... — ele chamou a todos — Os mitos também nos mostram mais das épocas e os animais nesses relatos varia muito. Mas faz sentido pensarmos nisso, até porque já conhecemos outras histórias parecidas como a arca de Noé e...
O professor prosseguia com sua explanação, e ainda assim, Pirra se afundava no questionamento sobre o destino dos seres menos falados, aqueles esquecidos nas narrativas de catástrofes e renovações. "Onde se protegeram e como sobreviveram?"
Perguntas curiosas, vindas automaticamente pedindo por respostas fora das falas proferidas do professor. E imergindo nesse vazio de sua mente, a sala de aula de repente pareceu também escurecer suas luzes, apagando qualquer aluno, professor ou estruturas. A falta de cor lhe arrepiou e na solidão desse diálogo unilateral, virou-se repentinamente, esperando encontrar alguém naquelas trevas da mente. De maneira impactante, seus olhos encontraram algo - ou de fato alguém - inesperado: uma silhueta sombria e indistinguível.
O coração acelerou, e seus olhos tentavam decifrar a ameaça que se formava a frente. A figura parecia pulsar com uma malevolência própria, um presságio de morte que fazia seu sangue gelar, quando estava prestes a se afastar, uma nuvem como se movesse para revelar a lua numa noite tempestuosa, fez a visão clarear. E a forma ameaçadora desmanchava-se no ar, substituindo-a por Silvia que a olhava com malicia.
— Aie! — A dor a fez ofegar, uma pontada remetendo-a das feridas que sangram. Rapidamente, ela colocou a mão sobre o corte feito pelo vidro, sentindo o latejar da pele danificada sob seus dedos enquanto afastava a névoa de pensamentos do passado.
Na mata, olhou as seguidoras, a coelha e a cobra, que perceberam sua inquietude, mas não se apressaram a perguntar o que aconteceu, ao invés disso, Pirra já se adiantava com suas próprias preocupações:
— Vocês acham... Que os outros bichos, vão sobreviver?
— Não deveria perguntar isso — A coelha, moveu as orelhas num gesto que Pirra interpretava como afirmação. — Eles irão.
— Não sei. Nós tivemos ssorte, muita ssorte. E sse não encontrarem uma ssaída Sra. Coelho? — A cobra pensativa, sibilou sua discordância.
— Sissi, a vontade de viver importa mais do que a sorte! — A coelha disse.
— Vontade de viver? — Zombou a cobra. — Esstá ssonhando acordada.
— Melhor do que ficar enrolada no próprio pessimismo!
— Vamos parar! — interrompe Pirra — Não discutam aqui.
— Precisamoss voltar — disse a cobra, sua língua vibrando rapidamente no ar. — Ossss que ficaram para tráss... Não deveríamos ir sem elesss.
— Precisamos continuar. — Rebateu a coelha — Não podemos voltar mais agora, nós...
Barulhos de cascos bateram no chão. Com um movimento veloz, Pirra instou todos a se silenciarem, e as três vidas se abaixaram entre as copas. Com olhos aguçados, espreitaram pelo emaranhado de folhas, enquanto uma comitiva de cavalos corria pelo terreno, quase fantasmagórica montados por homens com feições escondidas e vestes negras. Os dedos, atiravam flechas de caçadoras e balas de revólveres.
— Estão nos... procurando?! — ofegou a coelha antes de um alto disparo. — Ah! estão atirando!
— Sssenhorita! Esstão atirando por quê?
Pirra observava os cavalos desaparecerem a distância, o diafragma se contraindo, mostrando que a discussão entre a coelha e a cobra, por ora, era o de menos. O correr dos cavalos tão próximos a elas significava uma coisa: ainda não estavam seguras.
— Não importa! Quase nos viram. Vamos, vamos!
— É-é apavorante. — A sra. Coelho começou a, de repente, bater os pés traseiros no solo em descontrole. — E se ficarmos paradas?... ouvi em algum lugar que não podem nos ver assim.
— sssenhorita — a serpente sibila — podemos deixa-la para trásss?
— Não. — Ela mudou o foco — Já terminou, Sra. Coelho?
— É só... eu parar... de tremer! — A coelha encheu tanto as bochechas que quase parecia que explodiria a própria cabeça.
— Olha... chega disso, sobe em mim, e vamos embora! — Pirra estendeu a mão para que o animal pulasse em seus dedos.
Soprando o ar pressionado das bochechas e com um leve tom de indignação, o salto é praticado com a coelha caindo direto na mão de Pirra. Essa, já pendia a cobra enroscada no outro braço, descurvou as costas, e dessa maneira, moveu-se como parte das folhas, cuidando para se manterem o mais invisível possível.
Ocasionalmente mais a frente durante a caminhada, encontraram uma trilha, por onde veículos poderiam atravessar. Entretanto, Pirra achou melhor que se mantivessem afastadas dela. Os animais também concordaram, e juntos, ateram-se a ficar metros afastados dessa trilha, seguindo-a paralelamente em linha reta.
Se esvaíram preciosos minutos naquele percurso. O cansaço já caia sobre Pirra com a força de um rude castigo. Suas pernas lhe doíam, fazendo-a gemer sob a exaustão. Quando a resignação tornava-se carente de seu abraço, seus olhos, ainda lúcidos na observação cautelosa, divisaram a silhueta de um homem a cavalo patrulhando na trilha vazia da noite. Ele vestia roupas modestas, bem ajustadas ao corpo de estatura média, enquanto o cavalo era cinza e preto de crinas longas.
Esticando o corpo para ver, a cobra comentou — Ali! Ali, peça ajuda.
— Não... e se for como o homem pantera! — questionou a coelha, as orelhas eretas.
— Ssse for, então que sseja enterrado.
— Agora matar é aceitável? — A coelha surpreendeu-se fazendo um gesto de indiferença no final.
— Por que tenta entender uma cobra que o veneno coça? Se não sabe, sinto esse veneno mais forte ainda! asssim como o de minha... sssenhorita. — Os olhos se regularam para Pirra que segurava uma arma em cada mão. — Deixe-a essscolher.
A decisão final era dela, lançada para a mulher que mirava para os afinados olhos de percepção aterrorizada e aterrorizadora da cobra, e com esforço, nada encontrou, nada pensou, o cavalo aproximava-se e a voz em sua cabeça dizia. "o que faço, o que faço?". Ninguém respondia assertivamente a esse indago, nem mesmo os animais que falam tanto e dizem pouco. Porém, havia amontoados a se falar ou pensar, mas de tanto pensar, perdeu a oportunidade de agir, e finalmente, quando se deu conta, a cobra veio a falar:
— Deixou o homem passsar. Nem matou, nem pediu ajuda, no que pensssou?
— Não... eu... eu não pensei... — Pirra olhava incrédula para o veículo que partia. — Minha mente estava em branco.
— Não se lembra? Ou não quis escolher? — questionou a coelha.
— Eu me lembro... lembro de... não, não é isso.
— Então essstá confussa.
— Não! — ela colocou a cobra no chão. — Não estou confusa!
— Então eu quem estou confusa! — disse a coelha.
— Acontece que estou cansada, e estar machucada não me ajuda!
— Então durma... — a cobra esticou-se na grama onde foi deixada — durma sssenhorita. Ssse não parou a carruagem, amanhã teremos que andar maisss.
— Querem saber? Se eu não descansar vou acabar ficando maluca. — diz Pirra
A coelha pisca lentamente como se as pálpebras começassem a pesar assim que ouvira o verbo "descansar". — Então vamos parar?
— Por que a pergunta essstúpida? — A cobra usa o tom irritado.
— Há... mas que língua preta — Sra. Coelho boceja deixando seus dentinhos bem amostra. — Quer saber... não quero mais andar...
— Essstava sendo carregada até agora.
— Que seja! Está na hora de nanar, vou deitar e não me acordem ou serei uma coelha furiosa! — ao dizer, caiu de costas.
Com a subtração por meio do natural repouso, Pirra verbalizou para a única companheira que ainda resistia ao chamado de Morfeu, a serpente de olhos faiscantes.
— Sissi? vai dormir também?
— Dormir ssssim. — Balançando o rabo, o réptil começou a enroscar-se em uma espiral sobre a grama. — Mass fechar os olhosss, não.
Sua língua parou de flickar, e os olhos que não se fechavam, fixavam-se em algum lugar, talvez na escuridão que só ela podia ver. E desta cena, a chamada senhorita aconchegou-se no solo e cravou os próprios olhos, por meio das necessidades naturais com travesseiros confortáveis e imaginários.
Continua...
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