34. Pirra parte 1
~-~Especial~-~
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A grande desordem manifestava-se com dentes podres, prontos para abocanhar três coisas perdidas no tumulto: um gatilho, um estampido e um cadáver. Essas, esperando pelo tombo de Kaimbe, seguido pelos demais, tais expectativas caíram antes de Eldric estremecer e experimentar sua própria dor insuportável. Um buraco de bala floresceu em seu peito, e seus olhos se encheram de desespero. No apogeu do espetáculo, o líder da Seita teve sua vida encerrada, encontrando-se com o solo e seu fim perpétuo. Ainda com o braço erguido, escondido pelo caos que se formou, o cano de uma pistola exalava calor. E no meio do tumulto, a autora se revelou, consumida pelo ódio e satisfação de sua ação: Pirra, a viúva de Deucalião.
Ela assistia a morte de Eldric como uma vitória contra o homem que lhe havia tirado tudo, não aplacava o vazio deixado pela perda de seu homem. Enquanto o mundo caia em sangue, seu corpo suava ao notar que o mundo chegava em seu fim anunciado, e nada mais justo do que... "Começar a purificação."
Dias antes, enquanto a água começava a jorrar, engolindo o chão do túnel do armazém, o detetive gritava em resposta:
— Não existe purificação! Isso vai nos matar!
"Mas isso não seria a máxima expressão da seleção natural? Uma espécie de corrida olímpica com apostas altas, onde apenas os mais rápidos, os mais espertos, ou talvez os mais insanos, ganham o direito de respirar mais um dia." Contribuindo para o pensamento replicou:
— Não se você correr rápido o suficiente.
"Corra, corra, corra", sussurra o vento, ou talvez as vozes estejam ordenando. Elas sabem que a sobrevivência é uma arte, e a arte é a mais pura forma de loucura.
Pirra, a moderna encarnação da antiga heroína grega, orquestrava seu próprio épico. E no fim do corredor, a mesma sobe pela escada, abrindo a escotilha de sua prisão. Por fim, chegando no limiar de um novo mundo com seus animais - os bichos eleitos como sobreviventes da purga divina, celebravam sua recém-descoberta liberdade. Cães latiam, gatos ronronavam, e as aves cantavam louvores as paredes ao redor. Eram sobreviventes do dilúvio, salvos pela reencarnada Pirra.
— Silêncio! — ela suplicava — Nossos inimigos podem nos ouvir.
Mas a algazarra apenas crescia, uma celebração da vida que não conhecia limites nem medo.
— Livres, livres, livres, livres! — repetia uma coelha em excitação, fazendo o lugar assemelhar-se a um festival que se recusava a ser contido.
— Parem! — Pirra insistia, mas os animais apenas respondiam com mais alegria.
— Festeje conosssco! — celebrava a cobra chamada Sissi, arrastando-se entre as pernas dela. — Por que quer que paremoss?
— Alguém aqui? — Uma voz indistinta sobressaiu-se
[...]
— Ora, quem disse issso? — Pergunta a cobra.
— Parece o homem pantera! — desesperou-se o gato.
Sussurrando, Pirra ordena — Não deixem que lhes vejam, se escondam sem fazer barulho.
Com a fala, os animais reagiram em pânico coletivo com a velocidade de um incêndio na savana seca.
— O homem-pantera está vindo! — exclamou um papagaio histericamente.
— Ai não! Ele vai nos transformar em cachecóis de pele e usar nossas orelhas como brincos! — diz um hamster, com uma voz incrivelmente fofa colocando as patinhas para correr.
Os animais espalharam-se desordenadamente, uma bagunça de penas, peles e pelos. Pirra, surpresa, tentava acalmá-los:
— Não, não, acalmem-se já!
— Que calma o que! Eles vão nos capturar de novo! — A Sra. Coelho estava a ponto de um colapso nervoso.
Pirra guardou suas armas nas vestes e segurou a coelha nas mãos, tentando contê-la. Mas o animal se debatia, a segurança recém-encontrada pulsando em seu pequeno coração. — O que está fazendo? Me solte?!
— Psssst, pare de gritar, vai nos delatar! — A cobra, deslizando, sibilou com um ar de autoridade.
— Precisamos nos esconder, Sissi. — disse Pirra, estendendo a mão para a cobra.
— Ssim sssenhorita. — A cobra deslizou elegantemente até o braço, enrolando-se por completo em torno dele.
E então, os passos se tornaram mais apressados. Pirra, com a coelha e serpente, se moveram por entre as caixas até encontrarem uma pilha alta o suficiente. Em uma delas, se aconchegaram, a coelha e a cobra apertadas contra seu peito, o mesmo batia como se fosse escapar.
O Perpétuno, que vagava pelo armazém, transportava-se como um caçador em seu território. Os sapatos batiam iguais aos corações agonizados daqueles que estavam ocultos.
— O que é isso? — Lentamente o andar parou, igual a respiração de Pirra e dos animais.
— Se tiver alguém aqui, fale logo. — Ele começou a mover-se novamente, desta vez com mais cautela para não alertar aqueles seres invisíveis que buscava.
Pirra segurava os bichos com moderada força. Seus olhos nas sombras que se moviam ao redor, tentando antecipar o próximo movimento do homem. Em sua mente, uma avalanche de planos. "Esse armazém é escuro de mais, seria perfeito para acertá-lo com algo." Essa ideia era a única coisa que passava por sua cabeça, visto que ali não era um bom lugar para usar suas armas roubadas.
O Perpétuno caminhou em direção a uma pilha de caixas mal empilhadas. Ele levantou o braço, e o movimento fez sua manga cair, revelando de dentro dela, uma lâmina com detalhes de prata cravado no couro do cabo.
Chegando mais próximo a pilha, ele puxou a caixa que acreditava esconder seja lá o que fosse, somente para que no segundo seguinte, um pombo assustado, irrompesse em voo direto em sua direção. O pássaro, em agitação de asas, fez o homem recuar instintivamente.
Na surpresa, a pilha de caixas balançou e vieram abaixo com um estrondo alto, lançando objetos e poeira para todos os lados. Vários animais saíram de suas sombras e correram por todos os cantos. O homem, irritado, vociferou impropérios contra os bichos que desapareciam e a poeira que subia.
Através das frestas de outra pilha de caixas, Pirra via o homem caminhar para outro lado do armazém. Ela retirou o corpo inteiro de trás das caixas para poder ter uma visão melhor.
— Onde está indo? — questiona a coelha que foi recebida com um "shh" da mulher.
O perpétuno no mesmo instante olhou para trás, fazendo Pirra abaixar-se. Ali, tentou manter-se ao máximo invisível, ficou nessa mesma posição até que sua curiosidade aguçasse o suficiente e percebesse a prevalência do silêncio. Esse instinto a fez retirar a cabeça de trás das caixas, obtendo na mesma hora a visão do Perpétuno se agachado de costas há metros de distância. Pirra retirou uma de suas armas das vestes e se aproximou com passos lerdos para ver o que ele fazia.
— Ah não, que porcaria fizeram lá embaixo? — O homem continuava de joelhos, observando o chão que Pirra notara se tratar da escotilha.
"O Perpétuno já desconfia de nós." ela se perguntava se seria a melhor hora para atirar nele, apontou a arma umas três vezes, até que aceitou estar com medo de alarmar o resto dos inimigos com o barulho.
O homem, após inspecionar a escuridão abaixo pela escotilha, começou a se erguer. No entanto, enquanto ainda se ajustava à posição ereta, mal tendo tempo de registrar a mudança no ambiente ao seu redor, sentiu uma força súbita contra seu corpo. Não houve aviso, nenhum som premonitório que pudesse prepará-lo para o impacto que estava por vir.
Pirra havia se lançado contra ele com toda a força que seu corpo permitia. O choque o desestabilizou e desequilibrou o Perpétuno, que em uma tentativa vã de recuperar a estabilidade, acabou por tropeçar de lado. Quando seu corpo começou a tombar, ele já havia a subestimado, e o preço dessa falha estava prestes a ser pago.
A cabeça dele atingiu a quina da escotilha com força suficiente para silenciar qualquer pensamento, qualquer plano de ação que pudesse usar para revidar. A dor foi o último registro consciente antes de seu corpo ficar pendurado de maneira grotesca, meio dentro, meio fora do buraco, com uma mancha de sangue no ponto de impacto.
— O-o... matou sssenhorita!
Ela havia matado de fato, tinha essa consciência clara enquanto fitava a escotilha que a levava a um profundo túnel do passado, ela só não saberia dizer se a história que passava feito filme em sua cabeça era real ou uma peça criada. De qualquer maneira, lá estava ela, onde um único disparo era inocentemente praticado, vindo do boneco, "Sr. Bravo". O brinquedo tinha cabelos de lã negra emaranhados, e olhos de botão azul que brilhavam. Seu traje era de colagem de retalhos coloridos. E em sua mão, uma espada feita de um palito de picolé, manchado de tinta prateada para simular aço.
— Precisou terminar desse jeito Lady Solace, já que não aceitou se casar com o Sr. Bravo, então ele não teve escolha a não ser... você sabe... te matar — Sua irmã Lara, estremeceu no final.
Pirra olhou para Lady, a boneca em suas mãos com vestidos de seda e cabelos de sol, e com um movimento suave, colocou Lady Solace no chão, simulando sua morte. — Agora é sua vez, Lara.
— Mas, Lady Solace já está morta.
Pirra sorriu, agarrando outra boneca. — Mas a Rainha Zira ainda está viva, e ela jura vingar Lady Solace.
— Espera, mas não é assim a brincadeira...
A porta da casa se abriu com arrogância, e o som do vento forte lá fora trouxe a voz grave de seu pai. Ele parou na entrada, passando os olhos rapidamente pelas filhas antes de anunciar, com uma animação não característica:
— Temos visitas, — ele falou dando espaço na porta, como alguém que espera damas descerem de carruagens. — Espero que se comportem.
Aquilo não era algo comum de se acontecer. Pirra estranhou subitamente a maneira como a palavra "visitas" foi entonada e em como o contentamento nos lábios de seu pai, beirou um olhar ameaçador. O homem, era geralmente reservado, não tinha o hábito de trazer visitas para casa, muito menos sem qualquer aviso prévio.
Pela porta, Pirra observou curiosa uma mulher adulta com cabelos claros adentrar, e seguida dela, uma menina com cabelos tão claros quanto os dela. A garota parecia ter a idade aproximada de Pirra e sua irmã. Com timidez, a mulher, que devia ser a mãe se apresentou como Joana, e a menina, com uma educação impecável, disse se chamar Silvia. Ao ver os brinquedos espalhados pelo chão, ela indagou:
— Estão brincando do que?
Pirra só movimentou o pescoço para olhar sua irmã, Lara que também não respondeu de imediato, mas assim que explica, o pai sugere:
— Podem brincar juntas.
A nova garota, animada, verbalizou um "sim senhor" e saltitou até se aproximar do chão ao lado de Pirra e Lara, que acompanharam com a cabeça enquanto essa sentava-se cruzando as pernas ao lado das irmãs. O pai aproveitou a suposta sintonia das meninas para dizer que as visitas que trouxera passariam alguns dias com eles, e se ofereceu para mostrar a casa a Joana. As filhas pareceram meio assustadas, mas acabaram por concordar com a cabeça para não serem punidas posteriormente.
Quando os adultos saíram da sala, Pirra sentiu ressentimento. Ela pegou a boneca Rainha Zira nas mãos, a escondendo entre os dedos, junto dos pensamentos que desgovernadamente escondiam-se em sua cabeça: Joana poderia se tornar sua nova mãe? Silvia, sua nova irmã? Ela reconhecia essa possibilidade e tudo aquilo lhe trazia uma surda inconformidade. A lembrança da mãe verdadeira era delicada e dolorosa ainda para ela.
Sua mãe no passado, havia enfrentado problemas mentais graves. Havia dias em que ela se recusava a tomar os remédios, deixando-se afundar em um abismo de confusão e raiva. Um dia, em particular sua mãe surtou, começando a quebrar as mobilhas e decorações da casa enquanto falava e gritava sozinha.
Seu pai, tentando controlá-la desesperado, a trancou no quarto de Pirra. no segundo andar enquanto buscava por ajuda. Aquele quarto era um espaço onde a filha estava acostumada a passar a maior parte do seu dia, seja por bem ou por mal, já que ele também costumava usar aquele ambiente para castigá-la, trancando-a lá e cobrindo as janelas para que ela não pudesse ver a luz do dia.
Naquela fatídica tarde, os sons das batidas de sua mãe contra a porta e as paredes eram assustadoramente desagradáveis. O pai de Pirra dizia apenas para ignorarem os gritos e chutes enquanto chamava por ajuda. Mas, após muitos minutos tentando contatar alguém, subitamente, o barulho cessou, o que imaginaram se tratar de um ganho de tempo sem poluição sonora devido a fadiga da mãe, mas não era somente o que aparentava.
Só bastou um barulho para que o coração da pequena Pirra gritasse, só um barulho para que sua vida inteira mudasse. Então, querendo ver o que produziu o ruído, foram até o quarto. Por infortúnio daquela fatídica tarde seu pai havia se esquecido de uma única coisa, uma das que considerava mais importantes nos seus métodos de punição: Cobrir as janelas.
Esses pensamentos eram ruins, mas foram temporariamente bloqueados por ela quando Lara, querendo ser generosa, estendeu uma de suas bonecas para Silvia. — Pode brincar com essa aqui.
A menina aceitou com um aceno. Após tê-la em mãos, examinou-a com devida atenção, virando-a de cabeça para baixo, com os dedos traçando as bordas dos tecidos e as linhas do rosto pintado.
De repente, Silvia mudou sua aura formal, para algo que não lhe atribuía devida educação, e com rapidez, ela agarrou a saia da boneca, e a rasgou com força. O som do tecido se partindo foi uma violência contra as irmãs.
Lara recuou, sua boca formando um perfeito "O" de horror. — Pare com isso! Me devolva!
A garota sorriu e Pirra, chocada questionou:
— Por que fez isso?... a boneca não é sua!
Silvia descartou o brinquedo rasgado com desprezo e respondeu: — Não quero essas bonecas. Eu sei que posso ganhar uma muito melhor do que essa velharia.
Lara, chateada, pegou a boneca jogada enquanto os pais voltavam para o cômodo, alarmados com a altercação de volume de voz das filhas. Antes que as irmãs pudessem se explicar, Silvia o fez:
— Elas não me deixaram brincar com as bonecas!
Lara e Pirra trocaram olhares incrédulas, antes de Pirra tomar a palavra, tentando corrigir a narrativa injusta que Silvia apresentava.
— Não é verdade, nós emprestamos uma para ela! Ela que rasgou a roupa da...
— Parem de gritar! — o pai cortou qualquer tentativa de defesa. — Estão destratando a visita.
Lara tentou argumentar com a própria versão, mas a culpada fez uma cara de choro convincente o suficiente para que a situação saísse do controle e seu pai ordenasse:
— Vão para o quarto!
Ele as levou para cima das escadas aos empurrões e as trancou com a luz acesa, já que não teriam a luz do dia. Silvia ficou sozinha no salão com os brinquedos espalhados. Foi um dos dias em que Pirra mais se sentiu injustiçada, se controlando para não chorar de raiva.
Dias depois, o próprio pai de Pirra e Lara trouxe para casa uma boneca linda, um presente de um colega de trabalho. Ele esticou o braço para as três meninas reunidas entorno dele e disse:
— Esta é da Silvia. E vocês duas estão proibidas de brincar com ela.
Esse episódio pontuou o início de uma mudança no dinamismo familiar. Com a chegada de Joana e a filha, além de introduzir novos membros na família, trouxeram à tona sentimentos de ressentimento, ciúme e a dolorosa sensação de serem substituídas.
Anos depois, ela estaria em um armazém, olhando para uma cobra, depois para uma coelha, e finalmente para o cadáver, cujo corpo ainda pendia na borda da escotilha. Ela não tinha o que dizer; a rapidez dos eventos havia deixado pouco espaço para intenções claras. Com a raiva que se materializou em seus pensamentos, ela empurrou o corpo do homem com o pé, movendo-o por inteiro para dentro da escotilha. Quando ele caiu, fez um barulho de algo pesado batendo na água. Após a queda, ela agachou-se para esconder sua ação, e assim, selou a escotilha empoeirada.
— Vamos, amores, precisamos encontrar a saída. — disse ela com doçura.
— Nos salvou de novo — murmurou a Sra. Coelho parecendo grata e feliz. — Por que você não... você sabe, acaba com todos eles? Você poderia nos proteger para sempre.
Sissi, a cobra, repreendeu-a. — Ela ssó fez o que precissava, sssenhora Coelho. Pirra não mataria ssem maiss nem menos.
— Sei disso, a purificação é o motivo.
— Talvez Ssim. Mass creio que seja vingançça.
— A vingança nasce, bichinhos, — Pirra intervém, ouvindo seus companheiros não humanos. — Quando o mundo tem as cores do nosso sofrimento, e quando sentimos o que nos foi arrancado.
— Não pinte o mundo com essas coresss, sssenhorita, ou manchará sseu próprio coração.
— Não estamos aqui para filosofar sobre tintas e pincéis! — Pirra sem resposta melhor, mudou o assunto. — Vamos checar aquela saída no canto. Se for segura, podemos dar o fora daqui antes que mais alguém decida pintar a gente de vermelho.
Os animais balançaram a cabeça em concordância enquanto Pirra se aproximava da porta para checar se estava segura, porém rapidamente descobriria que não. A mulher notou vozes do outro lado da passagem entreaberta. Havia dois Perpétunos falando baixo. Fazendo Pirra, em curiosidade, ficar e ouvir as semânticas dos sons que soavam tanto sinistros quanto intrigantes.
— ... Ainda não tenho certeza — disse um dos Perpétunos. — Se passar por segurança parece fácil agora, mas, e lá na hora?
— Eles estão desesperados, precisando de gente. Nossos documentos são bons, ninguém vai duvidar.
— Mas e os antecedentes? Digo... E se eles decidirem verificar? — insistiu o primeiro, incapaz de esconder o nervosismo.
— Você está preocupando demais. A F.U.I está num aperto, querendo proteger a demolição a todo custo. Eles precisam de quantidade, não estão no luxo de escolher qualidade agora. — O segundo tentou infundir alguma de sua certeza no companheiro. — Daqui três dias, ninguém vai notar a gente se aproximando dos portadores da areia. Vai por mim, vamos estar invisíveis.
Escutando os murmúrios, a cabeça de moça, havia virado labirinto de abismos. "Seguranças para a areia? Estariam se referindo a areia do apocalipse? Ah, a ironia!" A ideia em si não era ruim, na verdade, era até brilhante. Uma relíquia daquele calibre merecia um batalhão de guarda-costas, cada um armado até os dentes com... com... ahn, granadas, talvez?
"não sei". Independentemente do que seja, a ideia de eles, os monstros sem pena, serem os guardiões da areia... isso sim era um absurdo! Como ela poderia permitir que a mesma escória que lhe fez tanto mal ficasse encarregada de proteger algo tão poderoso? Não, não, isso seria como deixar um gato (não o Sr. Bigodes, ele era um gato excepcional) vigiar um aquário sozinho.
E com uma lógica que só fazia sentido no vasto universo de sua mente, não importava o que queriam, sua briga era por Deucalião e os doces sabores da revanche e da responsabilidade, misturados numa receita que só ela saberia cozinhar.
— Por que ele não voltou mais? — um dos Perpétunos questionou.
— Sei lá, deve ter ido... Eu não sei.
A mulher sentiu-se nervosa ao notar que o assunto era o homem que ela acabara de esconder na escotilha. Percebendo apreensão, a coelha sussurrou:
— É hora de ir.
Pirra concordou, e na tentativa de se afastar da porta, acabou batendo em uma prateleira. O choque enviou uma cacofonia de pequenos objetos no salão. O silêncio seguinte do outro lado da porta foi tão repentino e denso que fez o coração dela acelerar.
— Vamos logo, por favor! — A coelha desesperou-se.
A abertura do armazém rangeu, e Pirra não pensou duas vezes para começar a correr através do escuro. Seu coração tão louco quanto sua mente, que ouvia os sons de seus perseguidores. Eles a perseguindo ou não, a sensação era de estarem cada vez mais perto. Ela correu por corredores desordenados, ao mesmo tempo em que sentia o cheiro de metal enferrujado misturado ao aroma adocicado de madeira velha.
Tateando paredes e estantes, Pirra encontrou-se diante da porta do banheiro. Ela empurrou-a, deixando um ranger sair de forma sinistra. O banheiro materializou-se pela luz do céu noturno que atravessou uma janela posicionada a direita da pia.
O banheiro tinha um ar de abandono, com azulejos que já tiveram dias melhores, cobertos por camadas de poeira e teias de aranha no teto que balançavam ao menor sopro de vento. A pia, manchada, parecia segurar a última gota de água como a última lágrima dosolhos. Nesse lugar, Pirra descansou a coelha e a Sissi.
Com as mãos livres, ela encarou a pequena e fechada janela que dividia o banheiro da vegetação externa. Com resolução absorvida, ela bateu no vidro com os punhos. O vidro, estremeceu, porém, permaneceu imperturbável com sua integridade.
— Use as armass, sssenhorita. — A cobra sibilou.
Imediatamente a coelha protestou — Você está louca, Sissi! Isso vai nos deixar surdas!
— Mas é a forma maiss rápida, Sra. Coelho.
— Vai chamar atenção para cá. — A coelha olhou desesperadamente para Pirra, buscando apoio. — Não podemos usar algo menos... menos barulhento?
Pirra ainda procurava o "x" da equação quando descobriu a resposta de outra questão: os sons dos passos que ouvira eram reais, e vinham de um dos inimigos com máscara de ébano. A sequência de fatos após isso foi rápida e instintiva. A passagem foi preenchida por esse homem, e por um momento, tudo permaneceu imóvel, uma cena congelada pelo suspense.
Pirra levantou as armas com a destreza sem ter outra escolha. Ao avistá-la, o Perpétuno avançou, talvez subestimando-a. Foram necessários dois tiros. Era um som ensurdecedor, formou um zumbido forte. O Perpétuno caiu, o zumbido ficou, aumentou, e mais, afogou-a em distantes águas, a arrastando para longe do cemitério criado, para pouco antes da pré-adolescência, onde a menina apoiava-se contra o muro baixo de sua escola. Olhos rolando pela rua em busca do pai enquanto uma capa molhada figurativa, exacerbava-a pela espera. O dia fora cansativo e contribuindo ao preenchimento das insatisfações, Silvia, havia sido transferida a sua mesma classe, o que de perto, não agradou. Mesmo dentro de casa ou na escola, dividir ainda mais espaço com a menina só lhe trazia mais desgosto.
O rancor, justificava-se, quando a recém-chegada Silvia, parecia não fazer questão da proximidade da outra, tratando-a como uma estranha na presença de terceiros. Mais enervante ainda, era vê-la rir junto àqueles que faziam zombarias quanto a sua aparência despreocupada ou seu nome impopular. Os risos maliciosos direto repetiam-se: "Por que seu nome é estranho assim?"; "Talvez seja uma abreviação para pirralha". Tudo lhe aprofundava a sensação de estar eternamente fora de lugar.
E essa preocupação com a identidade tornava os dias escolares uma sequência de momentos que obrigavam-na a se encolher internamente. E com a chegada da filha de Joana, antecipava que seus esforços para se manter indetectável teriam que dobrar, pois a simples presença dela ampliava a sensação de isolamento, destacando-a ainda mais como alvo de críticas.
Lara era um ano mais nova que as outras duas, e por isso, pertencia a uma outra turma cheia de crianças barulhentas. A própria irmã já havia dito mal conseguir ouvir explicações por conta das brincadeiras e berros, embora ela pelo menos não tivesse tanta dificuldade em se enturmar o que já facilitaria seus próximos meses no ambiente.
Olhando para o fim da rua, avistou-se o pai enfim chegando, mesmo com meia hora de atraso. No momento em que o encontro entre o mais velho e as meninas acontece, o céu já queria perder um pouco de sua luz, alongando as sombras das construções. O pai, de frente para as três, pede para seguirem-no pelo trajeto. Assim, Pirra elege por manter sua voz somente consigo, não sendo essa a escolha da de cabelos claros, que envolve o mais velho com suas palavras.
— O senhor acredita em quantas coisas aprendi? A professora disse que nunca viu alguém pegar a matéria tão rápido!
— É porque você deve se esforçar bastante. — O homem ocasionalmente sorriu, dando-lhe atenção, havendo um rápido giro para as filhas que caminhavam logo atrás.
— Sim, e eu também ajudei alguns colegas. Vamos ter prova em duas semanas. Acho que poderia até ensinar Pirra algumas coisas, se ela quiser.
— Por quê? Pirra está tendo problemas na escola? — Virou-se para encará-la.
— Não pai, eu estou indo bem. Não estou tendo problemas.
— Mas se Silvia está oferecendo ajuda, você deveria considerar. Não custa nada aceitar ajuda de quem sabe mais do que a gente.
— É, não tem problema nenhum. — Silvia deu um sorriso cheirando a amigável, todavia, aos olhos de Pirra, escondia o prazer discreto em colocá-la em desconforto diante do pai.
— Obrigada então. — Ela controlou a respiração, interpretando que qualquer desacordo poderia ser visto como ingratidão ou rebeldia, sendo assim, finalizou com: — Vou te avisar se precisar de algo.
O pai transpareceu satisfazer-se com a resposta, continuando a caminhada no mesmo ritmo enquanto Lara, ao lado, murmurava baixo para a irmã:
— Ela está tentando fazer você parecer pior.
— Eu sei. Não fala nada.
Pois não dizendo, talvez evitasse o pai chamá-la de invejosa, e Pirra não daria esse gosto a Silvia. Como de costume, após quinze minutos chegaram em casa. Ao dar um alô ao lar, Pirra atravessou a passagem vendo que ao final do corredor pendiam preparativos sobre a pia que lhe extraíram a atenção para cozinha.
— Pai. O que tem de especial hoje?
— É para Joana. Ela teve um dia longo. — Ele tirou os sapatos.
— E nós? — perguntou Lara, mirando o corredor.
— Vocês? Já tem comida no fogão. Aqueçam e comam. — Disse o pai, enfático se encaminhando para a cozinha.
Silvia colocou seus materiais na poltrona próxima de uma janela amarelada e foi em direção a ele. Pirra aproveitou para murmurar seu descontentamento a irmã:
— Ele nunca fez isso por nós.
— E nem vai fazer. — respondeu Lara.
— Talvez deveríamos começar a cozinhar para nós mesmas. Assim não precisamos depender dele para nada.
Lara pareceu concordar com lentas balançadas de cabeça, enquanto Pirra suspeitava que aquela exibição do pai poderia ter sido o motivo do atraso. A barriga chamava sua fome e a cozinha chamava por ela, não pensando mais de uma vez, foi até o cômodo com a irmã. O lugar estocava um cheiro agradável da comida que seu pai preparava. Parando em frente ao fogão, Pirra abaixou-se para abri-lo, vendo uma panela em seu interior. Levantou a tampa para checar o que tinha dentro, ficou de frente para um arroz um tanto seco e o molho do dia anterior. Por um segundo, ficou decepcionada e sem perceber olhou para trás enxergando Silvia lavar suas mãos. Sem ânimo de aquecer, pôs a refeição direto sobre a mesa, que sob o peso rangeu fortemente despertando um comentário ao pai:
— Já está na hora de trocarmos essa mesa.
Focado nos legumes, esse replicou. — Troco a mesa quando trocar você por uma que não reclame tanto.
Silvia segurou um riso, caminhando até a mesa com seu prato. Ao se sentar, depositou-o com cuidado. As meninas, Pirra e Lara, se aproximaram da panela para se servirem, mas mesmo os leves toques pareciam provocar uma perturbação na velha mesa e até na paciência de seu pai.
— O que estão fazendo?!
— Não estamos fazendo nada. — Explica Lara — A mesa que está frouxa.
O pai, irritado, aproximou-se e colocou a mão na mesa a e balançou, com isso pode ver que Lara dizia a verdade. Ele xingou em voz baixa, e foi para fora de casa retornando rápido com um pedaço de pau.
— Afastem-se — ordenou ele, com um tom áspero.
As meninas recuaram enquanto ele manobrava o pedaço de madeira sob a perna do móvel, tentando nivelá-la. Com um empurrão firme, ele testou a estabilidade da mobilha, que agora balançava menos.
— Melhorou — disse ele, sem olhar para elas.
O pai colocou pratos, talheres e as travessas com comida com cheiros deliciosos sobre a mesa, ainda sendo claro seu descontentamento com o acontecimento, ele olhou para as meninas.
— Vou me trocar. Comam tudo e depois limpem os pratos. — Ordenou se dirigindo ao corredor até alcançar as escadas.
As meninas permaneceram quietas a comer, enquanto o cheiro da refeição proibida trazia alucinações a respeito do gosto que teria o prato de Joana. entre uma colherada e outra de suas comidas frias, Silvia começou a brincar, estendendo o dedo para cutucar o prato de Lara que estava a seu lado.
— Para com isso, Silvia.
A mesma ignorou e cutucou o arroz dela mais uma vez com um sorriso.
— Come... e me deixa em paz!
— Não quero.
— Silvia, vou contar para o pai assim que ele voltar se você não parar. — Pirra advertiu.
O dedo dela caiu para os joelhos, mostrando que a ameaça funcionou. Silvia parou imediatamente, mas não sem lançar um olhar feio para Lara. Brevemente, houve silêncio enquanto todas comiam com os talheres batendo contra os pratos. De repente, Lara fez uma careta de dor e falou um pouco mais alto:
— Para de chutar minha perna!
Pirra olhou para Silvia sem paciência. — O que você está fazendo agora?
— Intrometida você. — Silvia provocou. — Cuide de sua vida.
— O que disse?
— Para, Silvia! — Lara insistiu.
Mas com um sorriso cínico, a menina respondeu sem se abalar: — Não vou parar.
— Lara, senta aqui do meu lado então.
— Não, ela que tem que parar de me chutar!
— Mas eu não vou parar.
Nesse instante, Pirra olhou para a irmã que pareceu ter um espasmo da cintura para baixo indicando que essa não aguentara mais e devolveu o pontapé em Silvia. Porém assustadoramente ocorreu de a mesa estremecer com a ação, e a madeira que havia sido colocada nela se soltou. O peso das coisas que foram postas por seu pai inclinou a mesa para o lado, fazendo com que um dos pés dela entortassem e toda comida, pratos e talhes caíssem ao chão.
— O QUE FOI ISSO?! — O grito do pai veio apressada junto com seus passos.
— LARA DERRUBOU A MESA! — Silvia denunciou.
De repente o pai chegou, enquadrando as três meninas congeladas e uma mesa caída ao meio. O rosto dele mal tomou a fúria, e Lara já apressava-se com um pedido de "DESCULPA!"
Com lágrimas caindo pelos olhos, ela mirou com medo os cacos dos pratos quebrados aos seus pés. Quando levantou os olhos só houve tempo de receber o primeiro tapa. A mão dele atingiu-lhe o rosto em cheio. O lábio inferior dela sangrou na mesma hora, e seus olhos ficaram inchados e assustados.
— Não foi minha culpa! — Lara soluçava, tentando em vão se proteger.
Não houve redenção para ela. Seu braço foi puxado com tal violência que ela caiu de joelhos em cima de um dos cacos que a fez gritar. O vestido rasgou, e quando ele a arrastou, fez seus cabelos emaranharem-se. Lara parecia uma boneca quebrada e o pai não se importava com seus soluços.
— Isso lhe ensinará a ser mais cuidadosa!
Pirra estava paralisada pelo medo e raiva, vendo o pai arrastá-la até a sala. A irmã não se conformava em ter de ouvir os protestos de Lara e tentava protegê-la com suas próprias súplicas. — Para pai, por favor! PARA...!
Ignorando-a, o homem sentou-se no sofá e colocou Lara em seu colo de costas, começando a dar fortes tapas em suas costas e nádegas. — Você quer destruir as minhas coisas, é?!
— NÃ-ÃO! — Lara soluçava. — PA-AI...
Dentro da tapeçaria de seu lar, Pirra encarava os pratos quebrados, cujos cacos jaziam espalhados pelo chão. Aqueles cacos estavam trazendo dor para dentro de sua casa, só que essa dor estava sendo sentida pela pessoa errada. Não havia como consertar o vidro quebrado, mas talvez houvesse esperança de mudar o curso dos acontecimentos, de proteger a si e a própria irmã das dores que seu pai lhes causava. Ela forçou-se a superar o medo que a paralisava. E em instinto, agarrou um caco de cerâmica do chão, seus próximos movimentos vinham com clareza momentânea e um propósito: ferir o...
— PAPAI! NÃ-ÃO... PA-ARA...
Pirra ignorou Silvia e passou pelo corredor marchando em direção a ele. O coração acelerado, ela chegou perto o suficiente e, desesperadamente, usou o caco para fazer um corte fundo no braço do pai.
O homem gritou, antes de se levantar derrubando Lara no chão. Ele balançou o membro e depois puxou o pedaço de cerâmica da pele fazendo uma careta de dor, assim, lançou um olhar de sangue para Pirra, que entendeu a própria falha: mirar no lugar menos mortal. Para ela tal falha lhe resultou em ser cruelmente agredida logo após isso. A única coisa positiva naquele dia, era que ao menos, apanharia no lugar de sua irmã, Lara.
Finalmente, arrancando-se do amontoado de memórias dolorosas, Pirra soltou uma risada engasgada que parou dois segundos depois quando fitou o corpo do Perpétuno morto. Seu rosto se contorceu em indiferença e se fixou na janela do banheiro, suja de poeira e teias de aranha escuras.
— Cobram os ouvidos. — Ela instruiu aos animais.
Apontando a arma para a janela, ela tampou um ouvido com a mão livre e puxou o gatilho. O disparo fez a estrutura frágil da janela estremecer e, com uma segunda batida, os cacos de vidro começaram a se desfazer, caindo como chuva ao chão.
Com a adrenalina correndo nas veias ela agia. O lado externo não esperaria, e os segundo no banheiro eram perigosos. O tiro havia sido alto o suficiente para chamar a atenção, então cada movimento subsequente precisava ser rápido.
Com cuidado, ela pegou a Sra. Coelho primeiro. Sua mão, tentava não desequilibrar, mas tremia levemente ao passá-la pela janela, prezando por uma aterrissagem suave. Sissi veio depois, a cobra acorrentada em seu braço, sendo guiada para fora.
Por último, era a vez de Pirra enfrentar a janela quebrada. Ela parou observando os cacos de vidro transparentes e perigosos como dentes afiados. Respirando e com impulso, ela avançou. O primeiro contato com os cacos foi um choque, ela se moveu com cuidado, mas os movimentos arrastavam a pele contra o vidro, desenhando cortes vermelhos de dor que ardiam com cada sopro do vento frio.
Quando finalmente se viu do lado de fora, as feridas ardiam como fogo, mas Pirra mal as notava. Sua atenção estava nos companheiros que a esperavam. Ela se permitiu apenas parar para avaliar os danos, as mãos tremendo enquanto gotas de sangue caíam na grama abaixo dela, antes de se recompor e dizer:
— Estão sentindo isso que está doendo em mim?
Os animais calados deixaram de olhar ao redor da mata para prestar atenção no que ela dizia acenaram que sim, e ela continuou enquanto arrancava um pedaço de caco da carne:
— Não... não sabem. — Ela apontou para o vidro que retirou — E vou dizer o porquê. Essa raiva que eu sinto, corta muito mais do que este vidro, e vou usar essa raiva para cortar a alma dos que fizeram mal a mim e ao meu marido.
Continua...
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