31. Herdeiros do Mar
A lenda de Capitão Antônio Soares, muito antes de sua efígie se erguer na praça central, como um ponto do desígnio que a transformaram. Chegou ele, trazido pela alígera brisa marinha e acompanhado de sua luminária de sonhos, a um conjunto esparso de lavradores e pescadores, cujos dias se desenrolavam ao sabor do sol e das luas.
Armado de visões e riqueza, descortinou nas terras e nas águas que beijavam um potencial inaudito. Apostou em melhoramentos que, aos olhos daqueles habitantes, pareciam desvarios. Sob seu comando, um farol, que seria futuro vigia, alçou-se majestoso em novos alvores.
Mas o Capitão não se detivera em sua obra. Perscrutando mais além da importância do salso elemento como manancial de sustento, percebeu potencial para o comércio e a descoberta, e promoveu a ereção de pequenos ancoradouros. Essas construções aliviaram o labor dos pescadores, e também instigaram muitos a desbravar além do horizonte já conhecidos, a se fazerem mareantes sob a imensidão celeste.
À mercê de sua influência, Orla dos Ventos desabrochou. A urbe se alargou, chamando a si novos habitantes com a fala de dias venturosos. A estátua de Soares, no povoado, simbolizou o prenuncio perene de seu papel fundador e propulsor da cidade.
Todavia, como ocorre aos precursores e visionários, o fardo dos mundos pesava-lhe os ombros. O encargo de sustentar a prosperidade da cidade, de arrostar empecilhos logísticos e políticos, e, quiçá, seus íntimos espectros, começou a oprimir-lhe. Murmurava-se, entre a população, acerca das extensas vigílias que o Capitão mantinha-se no farol, fitando o mar embravecido.
Veio, então, a alva em que se espalhou a nova de seu salto do farol. Um ato enigmático que selou seu destino e mergulhou Orla dos Ventos em um mistério que perdura. Quais razões levariam um homem, que tanto dedicara à cidade, a abandoná-la de tal guisa? As conjecturas eram variadas, mas nenhuma se comprovou. Uns atribuíam à desventura amorosa; outros, ao insuportável peso de suas cargas. E havia ainda os que suspeitavam de que alguém lhe roubara a vida.
Orla dos Ventos acolheu sua história, junto às crônicas que a envolvem. Mestres, pais, todos transmitiram saberes, gerando gerações até que chegassem a Arthur, coberto pela casca de Mendes, figura rodeada naquele momento pelo vermelho sangue de sua sala de fotos. Mesmo lá, não havia fotos para revelar. A revelação seria após o telefone de sua mesa tocar, será que alguma voz iria soar? Estava pensando em Isadora, a garota que foi deixada no hospital para se recuperar, não aconteceria nada, talvez. Que medo era aquele do telefone tocar? De receber a notícia infortuna de Paulo ou Kaimbe? Como Isadora iria ficar? Não dava para esperar, recuperou a sanidade junto ao objeto para confirmar se esses fugitivos estavam lá. Ouviu o telefone chamar. "atende". Que medo era aquele do telefone tocar?
— ... — Seu coração eram trovões barulhentos no silêncio. A ausência de resposta lhe vibrava o espírito. "E se algo nefasto tivesse ocorrido? E se os Perpétunos tivessem alcançado seu objetivo?"
— A-alô — chiado — alguém!
Ninguém.
Com essa confusão, Mendes recolocou o aparelho no gancho, pronto a não se deixar consumir pela inércia do nervoso. Era mister despir-se de qualquer indício que o ligasse à Seita, para assim mergulhar na anonimidade. No recôndito de seu aposento, trocou as vestes atuais por trajes que o fizessem assemelhar-se a qualquer outro cidadão, uma pele nova. Calças de tecido grosso e uma camisa simples de botões, cobrindo-se com um sobretudo.
Na alma, a premência de certificar-se da segurança de Paulo incendiava-lhe. A despeito dos pavores que o mutismo telefônico lhe semeava, um tênue raio de esperança ainda brilhava, acalentando a possibilidade de que Paulo, por algum infortúnio menor, se visse impossibilitado de atender. " Talvez esteja a salvo...", aquietava-se, enquanto repelia os pensamentos lúgubres que sitiavam seu íntimo com vigoroso assalto.
Queria partir e eliminar o tormento, por isso concedeu à sua morada um último olhar derradeiro, assegurando-se de que nenhum vestígio traísse sua recente associação com a Seita. Envolveu-se em perturbação, tangido por um sentimento indefinível, e, com uma mão enfaixada e a outra rigidamente engessada, cerrou a porta às suas costas. Seu corcel hidratado, não se agitava em seu esconderijo entre a casa vizinha e a dele. Resoluto, decidiu por abandoná-lo, optando pelo trajeto a pé até o reduto de Paulo, impelido pela esperança de esquivar-se de qualquer mirada que lhe fosse imposta por indevida curiosidade.
Acelerando o passo, Mendes buscava escapar da vulnerabilidade imposta pela rua, no ímpeto de alcançar seu amigo. Ao desembarcar na morada de Paulo, o homem permitiu-se contemplar o silêncio sepulcral que dela exalava. Nenhum feixe trespassava as frestas a denotar vida atrás do muro; a habitação mostrava-se tão erma quanto os escaninhos de seu interior.
Subitamente, a ampla portal, limiar entre a moradia e o vasto mundo externo, desvelou-se, desvendando Paulo que antes mantivera-se coberto pela sua mureta. No rosto, havia arranhões, e seu traje, atípico ao habitual, denotava as vestes tecidas no tear de uma fuga empreendida.
— Sérgio? SÉRGIO! Seu... Por que não me atendia?! — puxou-lhe para dentro trancando a porta logo atrás.
— Se me ligou, eu não sei. Mas te liguei várias vezes. — Mendes avistou o cavalo que Paulo montara preso do lado de dentro. — Talvez você tenha chegado antes de mim. É que antes de passar em casa, precisei levar a minha... colega no hospital.
— A moça? como ela está? — Paulo sussurrou.
— Se não pegar uma infecção, pode ser que fique bem. — Mendes respondeu ao mesmo volume baixo.
— Que bom então... talvez.
Mendes questionou — Como fugiram?
— Com minha habilidade de controlar cavalos, é claro. Mas também porque chegamos em uma área aberta. Eles simplesmente não quiseram passar de lá, talvez tenham se cansado.
— Ou quiseram manter o disfarce.
— Mais provável. De qualquer forma agora o cavalo deles está comigo. Aliás onde deixou o seu?
— Amarrado ao lado de casa.
— Está louco. Quer que a queimem.
— Eu ia deixá-lo na sua na verdade, já que você tem espaço suficiente.
— É mais discreto. Deveria ter feito isso.
— E se me vissem? — questionou Mendes.
[...]
— Tem razão, mantenha-o com você.
A área espaçosa do lado de dentro daqueles muros davam vista para a casa de Paulo de coloração amarelada com traços pintados em azul marinho. Fintando-a, Mendes se perguntou quem mais estaria por lá. Então indagou:
— O homem que veio com você, como ele está?
Paulo olhou a casa e retomou os olhos para o mesmo ponto. — Devorando a comida da minha geladeira, é claro.
O coração pesado de Mendes o censurava quanto a ter atitudes humoradas naquele momento.
— Antes de entrarmos — começou Mendes — quero falar uma coisa para você.
— É... eu acho que já até sei sobre o que vai falar.
Mas ele não tinha ideia, a decisão de Mendes em contar a verdade pressionava-lhe os ossos. Ele sabia que o que estava prestes a revelar poderia soar mais fantástico e inacreditável do que qualquer conto de fadas ou mitologia.
Mas isso não lhe impedira, e logo mais, ele falou sobre a ampulheta e da experiência sobrenatural de ver sua consciência desdobrar-se através do tempo, um arcano que ele, até então, resguardara no mais recôndito de seu ser, oscilando o temor reverente e o pasmo. Detalhou o fato de que, de alguma forma, essa ampulheta permitia-lhe compartilhar sua consciência com seu eu do futuro.
Paulo, por outro lado, recebeu a notícia com um ceticismo. A ideia parecia arrancada das páginas de uma obra de ficção. — Então é por isso que demorou tanto para me contar?
— Si-im.
— Então, você não devia acreditar que eu pudesse aceitar algo tão... inacreditável.
— Exatamente...
— Então mais uma vez, você estava certo. — disse Paulo apressado fazendo Mendes sentir-se envergonhado — Mas sabe de uma coisa? Depois de tudo que vi... Talvez minha mente tenha se aberto para aceitar o impossível. — Mendes, capturava o olhar de seu amigo em alívio ao perceber a aceitação.
— Acha que estou mentindo ou que estou louco?
— Verdade ou não, louco ou não, eu vejo sinceridade em você agora. Se quiser, podemos entrar e discutimos isso mais tarde. E pode ficar tranquilo porque vou te ouvir.
Em meio às vicissitudes que a vida lhes reservara, a escolha dos companheiros de jornada não fora trivial; tratava-se de uma seleção feita não por conveniência, mas por um reconhecimento tácito de almas que, de alguma forma, cruzavam o mesmo caminho. Pensando nisso, Mendes cruzava a entrada dos aposentos com seu amigo. Enquanto cenário transformava-se, ambos foram recepcionados pelo felino Marlon, contemplando-os com um olhar indagador antes de deslizar com graça por entre as pernas de Paulo, para em seguida, dirigir-se ao exterior e acomodar-se no sol, ignorando o cavalo a poucos metros.
Enquanto à luz que penetrava as cortinas do lado interno, desvendava-se a silhueta de Kaimbe, entregue ao deleite de um bolo de chocolate, cuja expressão de satisfação era tal qual a de um navegante encontrando terra após longa jornada pelo mar bravio. Ao divisar Mendes, seus lábios desenharam um sorriso. — Detetive! — exclamou. — É bom te ver ainda vivo.
O coração de Mendes se aliviou ao testemunhar Kaimbe ali, são e salvo, mergulhado em tão simples contentamento, cumprimentou-o com um gesto de cabeça, até que Kaimbe, com uma mudança sutil em sua expressão, trouxe à tona uma questão. — E Isadora?
A inquietação tingiu de sombras essas palavras proferidas, desvelando a surpresa e o desassossego de Kaimbe pela ausência dela. Com prontidão e reconhecendo os meandros do coração humano, Paulo anteviu em acolhimento enquanto movia-se em direção a cozinha. — Vou preparar um café.
Hesitando, Mendes posicionou-se em uma cadeira próxima a Kaimbe, cuja atenção foi desviada do bolo diante de si. A pausa momentânea fez com que o talher lhe escorregasse dos dedos, repousando ao lado do prato.
— Não vou fazer mistério — disse Mendes, capturando a atenção plena de Kaimbe. — Ela está viva, mas por precaução, precisa ficar sob observação no hospital antes de receber alta.
Kaimbe suspirou aliviado, como se o ar que retinha fosse um fantasma das suas preocupações agora dispersado. — Obrigado... por ter cuidado dela.
— Não foi nada.
— Para mim foi. E tenho certeza de que para você também deve ter sido.
— Como disse? — A curiosidade tingiu-lhe de uma leve defensiva.
Kaimbe deslizou os dedos na lateral do prato, encarando-o com uma expressão séria, mas não acusatória.
— Percebi a maneira como você a trata. É diferente, como se já se conhecessem, ou como se... você gostasse dela de um jeito a mais.
Mendes ficou desconfortável com a observação. Desviou o olhar, encarando algum ponto indefinido da mesa. — É impressão sua.
Kaimbe, contudo, não parecia convencido. — Não, não é. E não precisa mentir, só quero entender. Além disso, por que Isadora te chamou de Arthur? É seu segundo nome? Quando ela descobriu isso?
— Não, não é bem assim... — Tentou explicar, sua voz traída por uma súbita insegurança. — Eu... gosto dela, sim. Quer dizer, não... Não é Isadora, exatamente. — Mendes gaguejou. Kaimbe levantou uma sobrancelha e Mendes finalmente confessou:
— Arthur era meu nome... quer dizer, vai ser no futuro. — disse atropelando as palavras. — Conheci uma garota chamada Helena. E, de alguma maneira, gostava dela. Arthur é um guardião do tempo, assim como Isadora...
Mendes continuou contando a história sobre como em outra vida, Helena e Arthur foram lançados ao passado. E que naquele momento, tanto Mendes quanto Arthur eram a mesma pessoa, assim como Isadora e Helena também eram.
— Eu gosto de Helena, mas não de Isadora, e essa é a confusão. — Mendes finalizou.
[...]
— Então, você está me dizendo que... você e Isadora estão ligados pelo tempo? Que ela é... o que, reencarnação de alguém que você amou em outra vida?
Mendes concordou com os olhos fixos na mesa entre eles. — É... é isso mesmo, difícil entender. E... eu não esperava sentir... Bem, é diferente com Isadora. Ela me lembra Helena, mas ao mesmo tempo, ela é única. E...
— E você sente algo por ela. Por Isadora. — Kaimbe interrompeu.
Mendes levantou os olhos. — Eu me importo com ela sim. Mas o que eu sinto por Helena... é só por ela.
O som da água fervendo se tornou o único barulho entre eles por um pequeno período.
— E o que isso faz com... nós? Com o que Isadora e eu temos? — Perguntou Kaimbe.
— Nada... nada precisa mudar. O que eu disse... sobre Arthur e Helena... é minha história. Não acho que define o que Isadora sente por você. Nem o que você sente por ela. Eu só espero que você não me culpe.
— Eu culpo você, detetive... — Kaimbe abaixou a voz. Mendes o olhou, preparado para uma reprimenda, talvez até uma acusação. Mas o que veio foi algo completamente diferente. — Eu o culpo por estarmos vivos, por ter voltado por nós. Por sua causa estamos aqui.
Mendes, surpreso pela direção da conversa, sentiu um calor inesperado subir por seu peito. Então movido por um impulso, alcançou seu sobretudo e retirou de lá o pequeno cavalo de madeira. O objeto, ganhava mais cor sob a luz difusa da sala. Ele o estendeu a Kaimbe, que o olhou com incredulidade.
— Se não fosse por este brinquedo que você deixou para trás, eu não teria os encontrado.
Kaimbe aceitou o cavalo de madeira, seus dedos tocando gentilmente a superfície esculpida. Ele levantou os olhos com uma umidade não característica.
— Eu não esperava... o ver de novo. O deixei no chão daquele lugar sem pensar, no desespero, e depois... me arrependi, porque não era só um brinquedo. Isadora me deu isso quando meu pai morreu. Significa muito para mim. — Confessou ele.
— Sei o que é não ter um pai, e sei a diferença que isso faz.
— O que aconteceu com o seu pai?
— Ele nos abandonou — Mendes travou o olhar em memórias do passado. — Deixou minha mãe doente e a mim para nos virarmos sozinhos.
A resposta chegou carregada de um ressentimento velado e uma dor não totalmente esquecida. Kaimbe respondeu com uma melancolia reflexiva.
— Em minha cultura, diz-se que as famílias devem crescer juntas como as árvores, com as raízes unidas... Não deveria ser assim, a separação.
Mendes concordou com a fala que servia para ambos. — Sinto muito pelo seu pai... e pelo seu irmão.
Ao mencionar Iaraú, Kaimbe mudou sua feição. — Ainda tento entender como Iaraú se tornou aquilo... tão repudiável. Nunca consegui resolver as coisas com ele.
— Acho que não havia mais o que você pudesse resolver — Mendes ofereceu, sua voz. — Ele trocou tudo pela raiva.
— Eu sei.
— Mas por que tanta raiva? Algo que não entendi era como Isadora viveu tantos anos com vocês, e ainda assim, ele parecia odiá-la.
— A raiva de Iaraú não era só por Isadora. Eu posso te contar, mas para você entender, preciso começar por Aritana.
— O que Aritana tem a ver com isso?
— Você vai entender. Aritana teve uma filha, com uma mulher que, infelizmente, não está mais entre nós. — A água fervendo parou e Mendes ouviu sons baixos de copos e talheres se chocando na cozinha ao fundo. — Quando a mulher dele ainda estava viva, tudo parecia normal, até que a filha dele desapareceu. Meu pai que era muito amigo de Aritana, organizou uma busca para encontrá-la. Ele próprio estava ajudando na busca. Por sorte, depois de muito tempo, eles a viram na divisa entre a nossa floresta e a cidade, ela estava bem, mas estava brincando com crianças da cidade. Disseram que quando chegaram perto elas fugiram, e meu pai conseguiu resgatar a filha de Aritana e a trouxe de volta para a aldeia.
Paulo surgiu da cozinha trazendo duas xicaras de café quentes, colocando-as em cima da mesa e arrastando uma cadeira para sentar-se junto aos homens, enquanto Kaimbe dava prosseguimento:
— Depois disso, todos na aldeia, incluindo eu, fomos proibidos de sair por um bom tempo. E daí começaram a acontecer várias coisas horríveis, a primeira delas foi que a mulher de Aritana adoeceu, começando a tossir sem descanso. Por algum motivo, Aritana ainda estava saudável, mas a doença foi cruel com ela. Disseram que ela foi atingida por uma praga dos homens, transmitida pela própria filha. Depois dela, outros na aldeia começassem a mostrar os mesmos sintomas. As pessoas começaram a se isolar, evitando os que tossiam. Meu pai e Aritana eram dos poucos que ainda cuidavam dos doentes. Ninguém sabia direito o que era, mas os sintomas não eram desconhecidos; já tínhamos ouvido falar de doenças assim antes. Sabíamos que não havia muito o que fazer. — Kaimbe suspirou — A mulher de Aritana foi a primeira a morrer, seguida por muitos outros. Meu pai acompanhou cada um dos enterros, aos quais só os doentes e nós estávamos. O último deles foi o da filha de Aritana, e com a morte dela, parecia que a praga tinha acabado. Mas não era verdade. Meu pai começou a tossir um dia depois. Eu lembro até hoje da cara que a minha mãe fez. O rosto dela quando se aproximou dele... Eu sabia que seriam os últimos dias do meu pai.
Mendes segurou a asa da xicara de café e soprou o vapor, antes de dar uma leve bicada na bebida, liberando passagem para a emoção que apertava sua garganta.
— Iaraú, isolou-se depois disso, eu sabia que ele chorava escondido. Por isso se afastava, me deixando lidar com aquilo sozinho. Quando o pai de Isadora chegou, dizendo ser médico, eu pensava ser um milagre. Ele cuidou do meu pai, que viveu mais do que esperávamos. Mas tivemos que aceitar que ele nunca ficaria completamente curado. Quando meu pai morreu, Isadora estava lá para mim, me dando este cavalo de madeira como consolo. — Ele olhou para a peça. — Continuamos juntos, eu e Isadora. Eu não a culpava pelo que aconteceu, mas Iaraú sim. Ele culpava ela e todos os de fora da aldeia por nossa perda. Mas, para mim, Isadora estava longe de ser culpada.
Kaimbe concluiu, olhando para Mendes e Paulo com tristeza. — Quando Isadora chegou na nossa terra, Aritana começou a tratá-la como se fosse a própria filha que havia perdido. Ele passava muito tempo com as crianças da aldeia, ensinando-as e contando histórias. Era tudo o que ele teria gostado de fazer com a própria filha, mas agora... a folha dele está sendo nutrida pela terra, junto da sua família.
Mendes e Kaimbe entreolharam-se, imersos no silêncio de emoções e de um entendimento tácito que só as almas em sintonia poderiam conceber. Ficaram nessa posição, até que Paulo, parecendo deslocado, fez um barulho de sucção com os lábios ao aspirar o café. O som trivial puxo-os de volta à realidade da sala acolhedora.
Kaimbe, talvez sentindo a necessidade de um momento sozinho ou simplesmente querendo respirar o ar fresco, levantou-se e pediu licença, abandonando sua xicara ainda cheia.
— Bom, — Paulo tirou os olhos da abertura que Kaimbe acabara de passar, voltando-se para Mendes — quer um pedaço de bolo?
Mendes, surpreso pela oferta, acenou positivamente. Paulo então pegou a faca ao lado do bolo e cortou uma fatia generosa para o amigo.
— Paulo, — começou Mendes recebendo o pedaço de bolo com uma colher limpa. — Eu acho que eu me culparia para sempre se algo tivesse acontecido a você lá no armazém.
Com um sorriso cansado, Paulo olhou para Mendes. — Preferia ter ido sozinho?
A verdade se desenhou em linhas inabaláveis: estar vivo, ali, naquele exato momento, devia-se em grande parte à coragem, ao sacrifício e à lealdade de seu amigo. A ideia de ter trilhado todo aquele caminho sozinho lhe invadiu, desdobrando-se em uma cascata de possibilidades e cenários hipotéticos.
— Não. — Revelou Mendes, com a resposta que não tinha desde que Joaquim morreu — Meu avô me disse, em um sonho, sobre as pessoas que cruzariam meu caminho... Algumas delas me ajudaram a chegar aqui. E você, Paulo, é uma delas.
Mendes, ao levar uma colher do doce chocolate aos lábios, não somente saciava a fome que o corpo reclamava, mas também nutria o espírito com a essência das experiências partilhadas e forjadas na fornalha das adversidades. Após engolir o pedaço Paulo disse:
— Sérgio, parece que você também está ficando velho e mole.
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