30. Corrida dos vultos
— MAIS RÁPIDO!
Mendes fitou por sobre o ombro. Os vultos dos Perpétunos ganhavam terreno, em figuras negras montadas em cavalos que pareciam cuspir fogo e fúria. O vento, os seguia na selvageria, batendo nos rostos dos quatro, com seu hálito frio e o toque do perigo. As mechas balançavam ao ritmo do hino composto pelo medo. E entre as pernas, os cavalos, ganhavam velocidade por essas vidas, seus rabos ao vento como estandartes de uma batalha da qual não queriam fazer parte.
A paisagem borrava-se em tons de verde escurecido, com a lua velada por uma névoa traiçoeira. Mesmo sob os galopes, Isadora não desenlaçava os braços da própria vida, enquanto Kaimbe, representava o foco do homem que tomava as rédeas a sua frente.
Mendes, com as mãos doloridas e o olhar ferozmente fixo à frente, conduzia seu cavalo sobre o labirinto das árvores que mal enxergava. Os cascos retumbavam imparáveis, não podiam parar.
— Atrás de vocês! — Na cacofonia, Kaimbe alertou enquanto os Perpétunos, na escuridão, avançavam com um vigor infernal.
O ar estalou com os sons de caçadoras em disparo. Os segundo esticaram-se em infinitos cortes no ar. Mendes, esqueceu da própria dor ao assistir incapaz quando um dos projéteis encontrou seu alvo.
— Isadora! — Um estouro de pânico e a flecha já estava cravada. Seu corpo estremeceu, um grito agudo, e milagrosamente a mulher atingida não caiu.
— Separem-se! — Paulo gritou. Os dois cavalos, como se compreendendo a ordem, dividiram-se em direções distintas, quebrando a unidade do grupo.
— Não... Isadora — Kaimbe protestou, ao se perder ante os galhos.
Mendes sentiu o agarrar da mulher mais fortes, virou seu cavalo para a esquerda, adentrando uma trilha menos densa. A moça, ofegava como se fosse a qualquer momento desligar.
Atrás deles, o som dos inimigos, em um número reduzido, se dissipava em um jogo de gato e rato. O detetive, cujos olhos faiscavam com a sobrevivência do caçado, sabia que a pura velocidade não os salvaria. Ele precisava ser astuto, como os heróis das lendas que seu avô já lhe contou.
Então por sorte, ou talvez destino, eles encontraram ao longe um pequeno riacho coberto pela trilha esverdeada. Foi essa direção que tomaram. Com os pontos do trajeto encurtados, via-se as águas correndo, indiferentes ao drama humano, e Mendes enxergou ali uma chance de confundir seus perseguidores. Ele conduziu o cavalo para dentro da fraca correnteza, esperando que a água apagasse seus rastros. Gemendo de dor, Isadora mantinha-se alerta, escaneando as sombras.
Eles atravessaram o riacho, com o cavalo desenhando um caminho na água que logo se desfazia, e assim, a própria natureza conspirou para sua fuga. A sinfonia, gradualmente se tornou distantes, até que o som do riacho e o sopro do vento foram os únicos sonidos que restaram. O plano, por um fio de esperança e astúcia, funcionou. E os Perpétunos, por fim, sumiram de vista. A vitória ficou agridoce quando Isadora enfraqueceu seus dedos na cintura do guia. A lua, ficou clara no céu, como um olhar pálido sobre eles, iluminando o caminho à frente.
Ambos foram em galopes até o coração pulsante de Várzea. A cidade, surgia adormecida na sua falta de iluminação. As ruas desertas, logo seriam aglomeradas.
A silhueta dos dois, delineada contra o céu clareando, parecia uma visão saída de um conto antigo – um desespero uma bravura, movendo-se como sombras fugidias pela cidade. Os cascos que batiam, se tornavam mais altos na solidão.
Mendes, pela direita, avistou em uma rua mais larga que as demais, encontrando um hospital de tamanho mediano, maior que os comércios fechados ao redor. A quietude se impôs. O detetive desmontou veloz, apanhando Isadora letárgica. A dor arrancou dela um gemido abafado, sua força vacilante ainda presente em seus olhos.
— Por favor, ajuda! — Mendes gritou ao entrar no hospital, chamando a atenção de uma enfermeira que se apressou em sua direção. — Rápido, por favor! Ela se feriu.
— O-o que aconteceu aqui? — os olhos da enfermeira se abriram ao ver a flecha.
— Um acidente... ela precisa de ajuda!
— Certo. Levem ela para a emergência! — A enfermeira chamou dois atendentes, que pareciam hesitar em colocar Isadora em uma maca.
— E você? Está ferido também! — Ela notou os cortes e contusões em Mendes.
— Estou bem. Cuidem dela primeiro! — Mendes respondeu, seguindo a maca.
— O senhor tem plano de saúde?
— Plano de saúde? Ah, sim, eu... eu tenho. Mas ela... ela não tem. Por favor, só... vão.
— Precisaremos de alguns documentos e há custos associados ao tratamento dela.
— Eu assumo os custos. Apenas ajudem!
Na sala de emergência, um médico mais velho se aproximou, aparentando uma ponta de desdém ao olhar para Isadora.
— Vamos remover essa flecha. — Ele disse, instruindo a equipe com uma voz relutante. — Preparem tudo.
— Ela vai ficar bem?
— Desculpe, preciso que o senhor se afaste.
Alguém o barrou com o braço, e resistindo, foi conduzido para trás, obrigado aguardar na sala de espera. Naquele poço de ansiedade, onde notava olhares e sussurros dos outros pacientes e funcionários. Alguns debatiam sobre a moça ter se envolvido em uma briga com outros indígenas e as demais apenas o encaravam, assistindo-o sangrar e sujar o chão.
Os pacientes ou parentes de enfermos, sentavam-se em cadeiras alinhadas como ele, ora em silêncio, ora cochichando. No teto, uma lâmpada fluorescente piscava sem parar e no canto, um rádio antigo, com uma carcaça de madeira e botões perdendo sua cor, estava sintonizado em uma estação de notícias.
— "Últimas notícias da frente de guerra na Europa. As forças Aliadas continuam avançando contra os alemães. Relatos de intensos combates na África do Norte e na Rússia chegam a cada momento. Em Londres, o Primeiro-Ministro Winston Churchill reiterou seu compromisso com a derrota do Eixo..."
Na Europa as nações lutavam uma guerra em escala global, ele, em Várzea, lutava contra forças que muitos nem acreditavam. Era como se os grandes eventos mundiais obscurecessem as suas lutas pessoais e locais, mas isso não as tornavam menos significativas. A voz do locutor continuava:
— "...no Brasil, o Presidente Getúlio Vargas reafirmou a posição de neutralidade do país, embora haja crescente pressão internacional para que o Brasil se junte aos Aliados. Em notícias locais..."
Ele continuou ouvindo com a mente girando em torno de Isadora e dos eventos recentes. A voz do locutor foi substituída pela música "Feitiço da Vila de Noel Rosa", pausando a transmissão. Ele encostou a cabeça na parede velha, desviando os olhos do chão de azulejos.
Fechando os olhos, tentou descansar, mas era inútil. A ansiedade mantinha sua mente acelerada. Levantando-se, ele se aproximou do balcão de atendimento, onde um atendente escrevia algo em um caderno de registros.
— Com licença, posso fazer uma ligação? — perguntou Mendes, notando o telefone antigo sobre o balcão.
O atendente ergueu o olhar, avaliando Mendes de cima a baixo. — Desculpe, senhor, mas o telefone está quebrado.
No exato momento em que terminou de falar, o telefone tocou alto pela sala de espera. O atendente, surpreso, travou antes de atender.
— Hospital Várzea, bom dia. — disse envergonhado.
Mendes suspirou em frustração, cansaço e com falta dos celulares que ainda não existiam. Ele virou-se para voltar ao seu assento, mas parou, chamando a atenção do atendente novamente.
— Só... me avise quando a moça que veio comigo estiver pronta.
— Sim, sim. Vamos informá-lo. — disse o atendente, antes de voltar a atenção para o humano do outro lado da linha.
Mendes se afastou, mas antes que pudesse voltar ao seu assento, uma enfermeira se aproximou com uma prancheta em mãos.
— Senhor? Precisamos que preencha alguns formulários para a internação da sua amiga.
— Formulário? Tudo bem.
Ele aceitou a prancheta e a caneta, mas enquanto lia as perguntas, percebeu que havia muitas informações sobre Isadora que ele simplesmente não sabia. Nome completo, data de nascimento, endereço... ele olhou para a enfermeira confuso.
— Eu... na verdade, não sei muitas dessas informações. — Admitiu.
— Bem, preencha o que puder então. Podemos atualizar os dados mais tarde.
Mendes agradeceu, preenchendo as poucas informações conhecidas. A vista embaçava na escrita, com a sensação de que, se fosse sobre Helena, aquele formulário estaria praticamente completo.
Fixando as letras nos últimos espaços, o homem devolveu a prancheta. A enfermeira saiu em passos largos, postura decidida quase endurecida, desfeita unicamente pelo pescoço ao mirar a porta aberta donde o relincho entrou.
O som abriu as cortinas da preocupação onde Mendes enxergou a necessidade de afastar o cavalo dali. A última coisa que queria era que a marca dos Guardiões do Tempo, estampada no animal, fosse reconhecida. Então, discretamente, ele saiu do hospital, onde a manhã aparecia, e guiou o cavalo para um beco próximo, amarrando-o a uma estrutura resistente.
Ao retornar junto à atenção dos que o miravam, não notou nenhum tipo de movimento distinto. A espera seria longa e, consciente disso e de suas feridas, decidiu buscar atendimento para si. Aproximando-se do balcão, assinou novos papéis para que fosse atendido. Como o local não estava cheio, não tardou para que fizessem os cuidados, limpando e enfaixando cortes menores. Uma de suas mãos, foi cuidadosamente avaliada por um médico que diagnosticou uma forte torção no pulso e pediu para que engessassem a área. Com o pulso imobilizado, ele caminhou devagar para a sala de espera, mal a alcançando quando a voz do atendente o chamou.
— Senhor Mendes!
Ele virou-se rapidamente, apreensivo. — Sim?
— O médico precisa falar com o senhor. É sobre a paciente, Isadora. — O atendente apontou para a direção de um pequeno escritório, onde o médico o esperava. Seus órgãos compactaram-se, e ele assentiu. Girando e se dirigindo ao escritório.
— Obrigado por vir rápido. — O médico iniciou, quando ele sentou-se a sua frente. — Tenho algumas notícias sobre Isadora.
— Como ela está?
— Ela está estável, mas ainda em observação. Conseguimos remover a flecha e tratar o ferimento. No entanto, estamos preocupados com o risco de infecção.
— E... ela vai ficar bem?
— Ainda é cedo. Temos que esperar pelo menos vinte quatro horas.
— Posso vê-la? — a voz de Mendes quase falhou.
— Por um breve momento, sim. Mas ela ainda está sob o efeito dos sedativos. — O médico deu um aceno de cabeça, indicando que ele poderia entrar no quarto.
Mendes seguiu o médico pelo corredor. Ao alcançar o umbral do quarto onde Isadora estava deitada, aparentemente tranquila, apesar das circunstâncias. Cautelosamente, ele se aproximou, percorrendo o semblante adormecido da moça, sentindo alívio por vê-la, e preocupado pelo desconhecido que se estendiam sobre seu futuro. O mundo desvaneceu a esse instante de introspecção e quase paz. Mendes, delicadamente, a chamou algumas vezes até que a jovem despertou, piscando e focando na figura ao seu lado.
— Arthur? O-oi.
— Oi... — ele ainda sentia-se preocupado. — Como está se sentindo?
Ela piscou de novo, ajustando-se à luz suave do quarto. — Estranha. Eu me sinto... estranha.
— Vai passar, você acabou de acordar.
— Eu sei. Mas não é isso. É que... — Ela esfregou a mão esquerda nos olhos. — É que... eu pensei que morreria dessa vez — Mendes achou que ela fosse derrubar alguma lágrima, mas a mulher apenas voltou a apoiar a mão esquerda sobre o corpo — Eu ficava me lembrando daquele dia em que fomos... esfaqueados. Eu pensava naquilo o tempo todo, tentei aguentar a dor, eu dizia a mim mesma que morrer não era tão ruim assim. — a mão delicada escorregou para a borda da cama — Pensei em tantas coisas que uma hora eu não conseguia pensar em mais nada e só apaguei com os sedativos.
— Você passou por muita coisa.
— Nós passamos. E isso que eu te contei nem foi a parte mais estranha. Quero te falar sobre um sonho que tive depois disso.
— Um sonho? Foi algo ruim?
Não sei dizer — Ela enrugou a testa como se lembrando dos detalhes. — Eu... era Helena, no meu quarto, lendo um livro que contava a história da minha vida agora. E, no final, tinha uma nota, escrita por mim mesma, dizendo que ainda não era o fim da minha história. — A voz dela ainda estava rouca desde que acordara. — Era como se a Helena estivesse falando diretamente comigo. Eu... eu não sei o que isso significa, mas sinto que é importante.
— E talvez seja mesmo. Eu também estive tendo sonhos — Os dedos dele foram parar na borda da cama tocando sem perceber na mão de Isadora que não recuou — Eu tive outro ainda hoje, sonhei que era Arthur, em um barco com meu avô. Quando estávamos lá, eu lembro de ter me visto na água... era o corpo do Sérgio. — Ele calou-se com as próprias palavras — Percebe o quão estranho é falar de si mesmo na terceira pessoa.
— Continua. — Isadora o apressou sem piscar.
— Certo. — Continuou — No sonho, eu pulei no mar e me tirei de lá. Foi assim que respirei depois do afogamento embaixo do armazém. É como se eu e ele... as consciências, se fortalecessem juntas.
— Arthur, isso é... surreal.
— É, mas não importa mais. Vamos achar a ampulheta, separar as consciências e... tentar não estragar muito a linha do tempo.
— Não vai ser fácil encontrar a ampulheta agora, — disse Isadora — É por isso que nem os Perpétunos foram atrás dela ainda.
Mendes inclinou a cabeça, intrigado. — Por que não?
— Porque a ampulheta não está escondida com qualquer pessoa. Está com uma mulher, dona de uma construtora aqui na cidade, se chama F.U.I. Já ouviu falar?
— O que?! — Mendes assentiu em choque. — Como... Quem é ela?
Isadora deu um leve sorriso. — A mulher que está com a ampulheta se chama... Aurélia Santos Menezes, com certeza uma parente sua. — ele contraiu a garganta ao engolir a informação — Mas o que você não vai acreditar, é com quem ela se casou.
[...]
— Co-om... com quem?
— Arthur... o marido dela é Antônio Augusto Soares. O fundador de Orla dos Ventos.
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