28. Submerso em Duas Almas
A brisa do vento bateu suave em um pequeno barco de madeira. O céu, um véu dourado com feixes de luzes sobre as ondas. A figura embarcada olhou para baixo e suas roupas estavam secas. Confuso, buscou ao redor, tentando entender onde estava.
— Arthur?
Ele virou-se, e em suas costas viu Sr. Antônio, em uma postura relaxada e serena remando.
— Vô?
— Está tudo bem, filho?
— Eu... Eu não...
— Não? Achei que estivesse animado com nosso passeio...
— ... Eu não estou entendendo. — Ele tocou na borda do barco — O que é isso? Não era para eu estar...
— Não era para você ter estado em muitos lugares, Arthur. Mas você está aqui agora, e isso é o que importa.
O jovem marinheiro balançou a cabeça freneticamente, — Não, não. Eu estava em outro lugar agora mesmo!
— Eu sei. — Antônio falou calmamente — Parece que você viveu muitos anos em pouquíssimo tempo.
— Vô... Eu literalmente vivi anos em pouquíssimo tempo. Em outro tempo, parece que eu envelheci sem realmente viver. Não sei se vai me entender.
— É claro que entendo — Antônio inclinou a cabeça, interessado. — Do que você se lembra?
— Eu me lembro... de uma sala inundada. Tinha um homem... ele estava tentando me afogar. Mas quem estava se afogando não era exatamente eu. — Arthur se sentia perturbado.
— Você acha que... — Antônio fez uma pequena pausa enquanto escolhia o que falar. — Você acha que essa outra pessoa...
— Sérgio Mendes — Arthur corrigiu.
— Certo. Você acha que Sérgio Mendes está em perigo?
Arthur acenou afirmativamente, incapaz de verbalizar, mas Antônio o fez.
— Parece que você está carregando um fardo pesado.
— Eu... eu... vô. Eu não... — O jovem abaixou a cabeça — Está... tudo dando errado. Eu quero... voltar para casa.
As ondas começaram a se agitar, o céu a ficar escuro, coberto por nuvens prateadas. O barco iniciou um balanço mais violento sobre as águas.
— Hey, hey, Arthur. Olha para mim.
O garoto ergueu os olhos, vermelhos, para encontrar o rosto calmo de seu avô.
— Não se perca na sua tempestade.
— Eu não aguento mais isso. — Ele cobriu a cara com uma mão — de-esculpa... droga! Eu nem sei se o senhor é real, se isso é outra época, ou se... — ele olhou para o cenário sombrio que se formou ao redor — É muito ruim se sentir perdido.
— É mesmo, não é? — os dois encararam juntos as nuvens cinzas, seguidas da névoa que começava a se formar — Comece por aceitar onde está agora, mesmo que pareça um lugar assustador.
Antônio estendeu a mão, tocando gentilmente o braço dele. — Aceitação não é resignação, entenda isso para entender a sua trajetória.
— E se eu não gostar do que encontrar ou não puder mudar o caminho?
— Aí você usa o leme. — Ele apontou para o pequeno leme na popa do barco. — Você pode não controlar o vento, nem a correnteza, certo? Mas o leme... o leme está nas suas mãos. Você decide a direção.
— E o que isso significa?
Antônio deu um sorriso. — É melhor que você veja. Sente-se onde eu estava.
O neto desviou a visão das águas tumultuadas ao redor para o leme. Com uma leve interrogação, assentiu. E cuidadosamente, levantou-se, com o barco oscilando. Segurando-se na borda, ele foi brevemente até onde seu avô havia se sentado. Nesse curto trajeto, identificou de relance a ranhura onde o símbolo dos guardiões do tempo foi cravada. Era no interior de uma das bordas do veículo marinho. Para ele, aquela espiral já havia causado problemas de mais para... um período complexo demais para ser mensurado.
— Está pronto? — Perguntou Antônio.
— Está difícil de enxergar.
— Não tem problema. Vá aonde a sua intuição mandar.
— Isso não parece preciso.
— Pode confiar.
— huh, vou tentar.
fixado no horizonte enevoado, o jovem ajustou o leme, guiando o barco aos poucos através das águas incertas, enquanto Sr. Antônio via seu neto descobrir o próprio caminho daquele trajeto metafórico e literal.
Arthur se voltou a sua intuição, aquela voz interior frequentemente abafada pelo estrondoso clamor da razão e do mundo externo, era o único farol visível. Isso lhe trouxe a reflexão "Na busca por terra firme, naveguei direto para o coração da tempestade. E agora, no meio da névoa, é a voz que eu não escutei que promete me guiar para casa."
O barco avançava, suavizando as águas que se tornavam mais calmas, cortando-a como um lençol recém-alisado. As nuvens prateadas começaram a se dispersar, revelando novamente a cor dourada do véu. Sob este manto celestial, o barco corria suavemente em harmonia com o mar a brisa e o céu
— A neblina sumiu. — Mencionou Arthur.
— Assim como a sua.
O coração do garoto desacelerou. E a calmaria trouxe consigo um questionamento. Arthur olhou para o seu avô. — O senhor... é real? Ou isso é tudo parte da minha cabeça?
— Arthur... eu estou apenas em sua cabeça, e acho que você já está acostumado a dividi-la com mais alguém.
— É... talvez eu esteja mesmo. — Arthur murmurou, esboçando um sorriso curto.
Antônio deslizou a mão sobre o remo. — Olha filho. Preciso te contar uma coisa.
— Há, eu sei. Vai me dizer... que não tem como voltar para casa.
Antônio juntou as mãos, isso lhe atribuiu um ar mais sério que o preocupou. — Não é exatamente isso. Eu queria falar sobre o seu eu do passado, Sérgio Mendes.
— O que tem ele?
— Arthur... ele... ele se afogou de fato. Sérgio não respira mais. Eu não queria ter que te dizer isso, mas aconteceu.
Foi como um acidente inesperado. Arthur permitiu-se paralisar até finalmente confirmar. — Sérgio... ele... — abriu a boca mais duas vezes para falar até que na terceira emitiu um som estranho junto a sua fala. — Não, não... não vô. E a Isadora, o Kaimbe, Paulo, a ampulheta... os Perpétunos? Sérgio não pode morrer e deixar tudo isso. O senhor está enganado!
— Eu não me enganei. — Ele se aproximou do neto — E é por isso que pedi para que seguisse a sua intuição. Ela te trouxe para cá, exatamente onde ele está.
Arthur enrugou as sobrancelhas — Não vejo ninguém.
— Verá, se olhar mais atentamente. — Antônio apontou para a lateral do barco.
Arthur seguiu a direção do dedo, girando lentamente, com o calafrio acompanhando seu movimento, seus olhos buscavam, hesitantes, o lado esquerdo do barco. O que se revelou nas profundezas límpidas foi suficiente para lhe chocar. Lá, submerso no azul, jazia Sérgio Mendes, suspenso no tempo como uma memória adormecida. Flutuando em sua calma etérea, os olhos serenamente fechados. Os cabelos escuros espalhavam-se em volta de sua cabeça como algas delicadamente balançando ao sabor do mar.
— Não... isso... isso não... Vô... esse não deveria ser o fim pra ele. — Arthur gaguejou, virando-se, encontrou Antônio ao seu lado, surgindo feito o sol que rompe das nuvens. — Isso é injusto. Ele dava o melhor dele. Achava que era tudo perda de tempo e que não tinha conquistado nada, mesmo assim ele não parava de fazer o que acreditava. Eu não gostava daquela sensação, era de esforço sem valorização.
— Ele parecia corajoso.
— Nem sempre. — Arthur tirou os olhos da água mirando o horizonte. — Ele tinha medo de cães desde pequeno, sabia?
— Que história é essa?
— Teve uma vez, em que ele estava andando de bicicleta sozinho, e um cachorro preto correu atrás dele depois de ver a bicicleta na rua. Na hora ele tentou fugir. E acabou indo tão longe que se perdeu, caiu e ficou todo ralado. Sabe o que o cachorro fez?
— Hm!
— Ficou só olhando para ele sem entender nada. Parecia até que ia pedir desculpas. — Arthur soltou uma risada abafada e o avô o acompanhou, até que seus olhos perderam o brilho automaticamente para contar o final. — Depois que o cachorro saiu ele teve que achar o caminho de volta sozinho. Era importante voltar porque a mãe dele tinha... ela tinha câncer. — Os olhos marejaram. — Quando ela morreu, ele parecia ainda mais solitário. E esse era o verdadeiro medo dele... ele achava que eram os cães, mas ficar sozinho... Isso era pior. Acho que nisso erámos até iguais.
Antônio passou o braço ao redor de Arthur, apertando-o contra si. Ele respirou pela boca, olhando para as águas, com só mais uma coisa a dizer:
— Quando nossas mentes se uniram, muita coisa mudou. Eu não via Sérgio da maneira como ele se via. No tempo que fui ele, sentia orgulho de quem ele era. E de alguma forma. mesmo em outra vida, eu senti inspiração. Eu ficava feliz, sabendo quem eu era.
— Filho, me escuta.
Arthur balançou a cabeça e Antônio prosseguiu.
— Sérgio Mendes perdeu o ar, mas você ainda tem o seu. E mais, a consciência continua sendo dos dois. A sua e a dele. Vocês estão interligados de uma maneira única. Dentro de você, reside não apenas sua própria força, mas também as dele. E se você escolher, pode compartilhar seu fôlego com ele, revivendo-o dentro de si.
Arthur virou rápido para o avô — Compartilhar meu fôlego...
— É uma escolha que só você pode fazer. Sérgio faz parte da sua trajetória, assim como todos que você encontrou e encontrará.
Arthur olhou novamente para o mar, contemplando a imagem do detetive submerso. Ele se sentiu um pouco amedrontado e de certa forma incerto. Então ele fechou os olhos, sentindo o sol aquecer seu rosto.
— Então Arthur, o que será?
Quando abriu os olhos, já tinha sua resposta. — Se ele faz parte de mim, vô. Eu vou fazer isso por nós dois.
— Isso mesmo! — Antônio sorriu orgulhoso. — Então respire fundo, Arthur. E quando voltar, respire por Sérgio também. Vocês devem continuar, juntos.
O jovem encheu o peito. Quando os pulmões estavam prontos. Ele se levantou levemente, o barco balançando sob as ondas. Emoções subiram dentro dele ao ver seu reflexo na água sincronizando com o corpo que descansava.
Se equilibrando em uma das pernas, saltou, mergulhando de cabeça. O frio o engoliu para outra atmosfera. Abrindo os olhos, pode ver, a figura apagada de Sérgio a alguns metros de profundidade. Batendo os braços, ele foi em direção a ele mesmo com a pressão contra seu peito aumentando.
Quando o alcançou, estendeu a mão, tocando o seu ombro, que ainda voava no azul. Arthur o prendeu entre os braços, impulsionando ambos em direção à superfície.
O esforço para subir era mais difícil do que o esperado, os músculos das pernas e dos braços queimavam com o exercício. Mas havia algo mais - uma força interna, um impulso que parecia vir tanto de dentro quanto de fora. Ele sentia a presença de Sérgio.
E quando ambos tiraram a cabeça para fora, o único que saiu foi Mendes, ofegando por ar, o rosto contorcido em agonia enquanto a água saía de sua boca. Ele se debateu para encher os pulmões.
Seus olhos ardiam, seus ouvidos pressionados desentupiram, e ele começou a ouvir sons abafados de conflito. Sua vista embaçada, gradualmente focou-se no espaço, onde um combate acontecia entre o Perpétuno e Paulo totalmente desmascarado.
Socos e chutes; violência e desespero. Mais atrás Isadora e Kaimbe dentro das jaulas, a água chegando perigosamente perto de cobri-los. Isadora consumida pelo medo, soluçava, enquanto Kaimbe mantinha a cabeça acima do sufoco crescente.
Se recuperando do quase afogamento, Mendes tentou analisar. Com as chaves ainda descansando em cima da pequena prisão, ele forçou a água para trás, passando pelo combate, concentrando-se em libertar aqueles que estavam prestes a se afogar.
— Arthur! — chamou a Isadora em prantos.
Chegando à frente dela, ele agarra as chaves de onde deixara por último, sentindo nos dedos a ardência de seus ferimentos, logo iniciou as tentativas de abertura em ambas as fechaduras afim de descobrir qual abriria antes. Primeiro Isadora, depois Kaimbe; primeiro Isadora e depois Kaimbe; primeiro Isadora e depois...
— Mendes, pare! — Kaimbe gritou. — Salve Isadora primeiro, esqueça de mim!
Isadora recusou-se. — Não! Não faz isso, continua!
— Eu vou tirar vocês dois! — Mendes exclamou.
— Não vai dar tempo! — Kaimbe contestou, a água agora batendo em seu queixo. — Ti-ire... ela!
— Não, Arthur, po-or favor! Não de-eixa ele!
— Eu... Eu não sei — Mendes balbuciava, atormentado.
— De-etetive... faz isso! — Kaimbe implorou antes da água cobrir sua boca.
Desconcertado, Sérgio virou-se para Isadora como solicitado e testou as chaves com as mãos escorregando ao mesmo tempo em que a água subia inexoravelmente.
— KA-AIMB...! NÃ...! — Engasgou ela.
O nariz do Perpétuno sangrava devido a uma cotovelada de Paulo. Quando o inimigo tentou atingi-lo de volta, ele lhe segurou as duas mãos e ambos começaram o que parecia ser uma queda de braço no ar.
Mesmo consciente da luta, Mendes não deixava que ela o distrai-se. Buscando freneticamente pela chave correta, enquanto Isadora tentava manter seu nariz para fora daquela sopa do dilúvio.
Já não havia tempo. Com um clique, o miolo se rendeu e a porta foi aberta pelo segredo correto. Isadora libertou-se, se agarrando com as unhas afundando no antebraço de seu salvador. De pé, virou-se para a outra jaula completamente coberta.
— Não!
Com o molho tremendo e a água submergindo a prisão e o prisioneiro. Mendes forçou a fechadura enferrujada, falhando em suas práticas, o que deixava principalmente Isadora aflita.
— Aguente mais um pouco! — gritou ele, percebendo bolhas de ar subindo à superfície.
Paulo acabara de dar um soco cortante na boca do Perpétuno, provavelmente presenteando-lhe com mais uma marca. Quando o inimigo vacilou, passando a mão ensanguentada sobre a boca e a outra nas costelas, Paulo o empurrou em direção à água. Com os dentes cerrados, pressionou o Perpétuno para baixo, a visão indo até Mendes em trabalho de resgate.
Nesse ínterim, as chaves mal obedeciam aos seus dedos. A fechadura, resistia obstinadamente. "quanto tempo ele duraria sem ar". Ar esse que ao redor parecia condensado de expectativa. "Rápido!" Isadora clamava, o rosto enxarcado de água e lágrimas.
Um estalo soturno, o pulso girou, a fechadura afrouxou sob o esforço exaustivo. Mendes puxou as grades contra a pressão. Ali, não havia mais bolhas só batidas de coração, enquanto estendia os dedos para Kaimbe. "Pegue a minha mão" desejou, sentindo calafrios. Isadora arregalava os olhos ao notar primeiro uma silhueta que se fez na água.
Um corpo flutuou inerte para a superfície, envolto em uma aura de finalidade sombria. Os olhos fechados, a expressão vazia, estava sem vida, a alma abandonada como um sopro que já não tinha, restando apenas de sua memória seu rosto cheio de cicatrizes.
Paulo, a distância, tirava as mãos do morto que boiava. Enquanto do outro lado, com um toque, seguido de um puxão significativo, Mendes sentiu uma mão segurar seu braço, e imediatamente ele reagiu, trazendo aquele peso para cima.
Isadora correu os olhos pela água que se rompeu com a saída do corpo do homem enfraquecidamente forte. Kaimbe cuspiu a água e Mendes, agarrou-o, buscando equilíbrio para colocá-lo sobre seu ombro direito. Isadora, perplexa intercalava entre o corpo do indígena vivo e o Perpétuno morto, e antes que dissesse algo, Mendes a colocou em seu ombro livre. A água gelada ardia os ossos. Paulo não tão longe ofegava com o líquido quase no peito.
— Sé-érgio. — Murmurou ele — Achei que... estivesse morto.
— Eu também achei. — Mendes tentou articular palavras chegando cada vez mais perto. — Por que voltou?
— Achei que não fosse hora para explicações. Vamos sair deste lugar, pode ser? Vou te ajudar. — disse, apesar da própria fadiga, auxiliando a aliviar o peso do amigo, guardando Isadora nos braços antes de saírem pela porta.
— Por aqui. — Paulo guiou o caminho.
— Encontrou uma saída? — Mendes perguntou.
— Digamos que sim.
— É muito longe? — A visão do corredor era perturbadora, submerso até a metade.
— Não tanto. Vamos para lá — Ele apontou para o corredor a esquerda.
O caminho estava mal iluminado, mas o amigo parecia conhecer as curvas daquele labirinto inundado. A água batendo no peito de Kaimbe e no pescoço de Mendes e Isadora, desaceleravam seus passos.
Mendes olhava para frente, tentando manter o queixo erguido, enquanto a água que colava suas vestes ameaçava ultrapassá-los. A respiração de Kaimbe era pesada, assim como seu braço escorado.
— Estamos chegando! — Paulo exclamou, apontando para o final do corredor que terminava em uma parede. — Esse é o caminho!
— Mas o lugar não tem saída. — disse Mendes.
— Não vamos sair por uma porta.
Isso o deixou pensativo e assustado, mesmo assim manteve-se em movimento até o fim, equilibrando-se na ponta dos pés. Quando chegaram, ele olhou confuso para Paulo. A parede à frente não oferecia nenhuma saída aparente.
— Como vamos sair então?
Ele apontou para o chão. — Há uma passagem aqui embaixo. Uma válvula a controla, mas está emperrada
— Onde exatamente? — Mendes tentou sondar com os pés, ainda segurando Kaimbe, que mal conseguia manter-se consciente.
— Aqui, pise onde estou. Sentirá. — Paulo guiou o pé de Mendes até o local. Após alguns segundos tateando sentiu algo metálico sob a superfície.
— Agora encontrei!
— Ótimo. Precisamos de força para puxá-la. — Paulo olhou para Isadora e Kaimbe. — Vocês conseguem se apoiar na parede?
Ambos acataram a sugestão, apoiando-se quase sem forças na pedra fria do corredor.
— Não posso te ajudar com isso. — Antecipou Mendes.
— Que conversa é essa? ouviu o que eu disse? Vamos ter que usar bastante força.
— É. Mas as minhas mãos... — Ele não completou, mostrando uma delas com a impiedosa mordida e a outra com um grande inchaço no pulso.
— Não é possível! — Paulo exclamou incrédulo enquanto a água batia em seu lábio inferior. — Não consegue mesmo puxar?
— Você acha que eu conseguiria? — Ele exibiu melhor as mãos feridas.
— Droga!
— Posso ajudar. — Kaimbe, desencostou da parede. — Eu não estou muito bem para nadar, mas acho que ainda tenho alguma força nos braços.
— Não está aguentando ficar de pé. — Isadora argumentou.
— Vai precisar de muita força para mover a roda — Paulo informou.
— Sei disso.
Mendes sugeriu — Podemos voltar para a escada.
— E andar com esses dois pelo armazém? — Paulo apontou para os recém-libertos. — Vamos morrer de todo jeito. Deixem-no tentar!
Todos se encararam até a água com sua ousadia da natureza erguê-los do chão. Esse alarme foi a resposta.
— Certo Kaimbe, Vai lá. — Mendes confirmou. — é melhor que consiga.
— É melhor mesmo! — Paulo olhou para o indígena, falando como se ele fosse uma criança — Vamos mergulhar e puxar juntos a válvula para o lado direito, tudo bem?
— Apenas isso? — falou Kaimbe.
— Diz ser pouca coisa...? — Paulo retorquiu com ironia. — Vamos logo com isso.
Kaimbe posicionou-se, ao mesmo tempo em que Paulo começava uma contagem breve que involuntariamente desvaneceu a memória de Pirra contando em outro contexto. Tal estranheza não tardou quando o número três foi pronunciado e ambos os homens mergulharam, seus braços mirando a válvula ao fundo. Mendes, com as mãos debilitadas, permaneceu na superfície, acompanhando ao lado de Isadora, cujo olhar acompanhava os movimentos da água escura.
No aglomerado de bolhas, eles encontravam vagamente as figuras desfocadas dos modestos mergulhadores em uma briga contra a roda. Enquanto seus batimentos estavam em sintonia com os esforços submersos.
Na primeira subida a superfície, eles informaram que a válvula mal se mexera, resistindo aos esforços combinados. Eles surgiram, sem ar, trocando a visão antes de descerem novamente.
— Vai ficar tudo bem. — Mendes disse suavemente para Isadora, percebendo que seus corpos foram empurrados mais para cima. A moça, olhando no vórtice de água, se apoiou com uma mão nele e outra na parede.
Na terceira tentativa, Paulo havia dito que a válvula havia cedido. Já Kaimbe, parecia ter piorado, exibindo um semblante de náusea.
— Eu não consigo mais. — ele finalmente falou.
Paulo retrucou. — Consegue sim. Vamos!
— Não... é... — Tossiu. — Não é tão fácil.
— Eu não ligo. Precisamos dessa válvula aberta!
— Espera aí Paulo! — Mendes sussurrou para ele. — Está pendendo a cabeça.
— Sim, eu sei! É esse lugar Sérgio. — ele respirou fundo. — Eu não quero e não vou morrer aqui.
Mendes travou, sem saber o que responder. Seu otimismo havia se esvaído; ele, que recebera uma segunda chance, enfrentava a possibilidade de se entregar. O olhar preocupado do amigo junto com a própria culpa de trazê-lo até ali aumentava seu desconforto. Tentando evitá-lo a qualquer custo, seu rosto vagou até Isadora que inesperadamente, se mostrava a única otimista entre os que se deram por vencido. Com um movimento que formou pequenas ondas, ela foi até Kaimbe com uma resolução que desmentia sua aparente fragilidade, segurou o rosto dele entre seus dedos delicados.
— Tenta falar comigo! — O homem ameaçou afastar o rosto dos dedos que o tocavam, mas as mãos da garota o trouxeram mais uma vez. — Eu te conheço bem, e sei que já não é o mesmo desde que viemos para cá. Acha que não percebi o jeito que você aceitou a morte dentro daquela jaula.
— Acha que fiz aquilo de propósito?
— Acho que fez por não se importar mais consigo mesmo.
— Fiz porque me importo mais com você.
— Não, não, não. Eu vi nos seus olhos e é o mesmo olhar que está fazendo agora. Você pode estar fraco, mas eu nunca te vi recuar assim. Até quando foi picado pela cobra queria viver. Mas naquela jaula estava derrotado, aquilo era só aceitação.
[...]
— Você acha, Isadora que ainda tem alguma coisa nos esperando lá fora?
— Por que diz isso?
— Porque tudo que eu amei... parece estar sofrendo ou perdido para sempre! E quando recebi a chance de sair deste lugar, percebi que... sempre estive sob amarras.
Diante da discussão, Paulo cochichou para Mendes que tentaria puxar a roda sozinho. "melhor do que ficar aqui" acrescentou ele.
— Olha, — começou ela. — Não tem um segundo se quer que eu não pense que tudo isso é culpa minha, e que eu sou um desses pesos que você carrega.
— Não é assim que...
— Eu sei que não. — Ela pulou a vez dele de argumentar. — Você sempre foi forte pelos outros, eu sei. Mas sinceramente, eu acho que... talvez devesse ser mais forte por você mesmo de vez em quando, escolher seu caminho, entende?
— O meu caminho? — Repetiu enquanto Paulo mergulhava na expectativa de que a força de seus dois braços fizessem milagre sozinho.
— É. — Isadora continuou. — E quanto a mim... Se você perguntar se ainda tem algo nos esperando lá fora... sim, tem. Eu estarei lá, esperando por você. E eu espero que você esteja esperando por mim também. E não precisa ser Kaimbe o líder ou Kaimbe o guerreiro, mas apenas você, Kaimbe. E isso será o suficiente.
Ela se aproximou mais, agarrando-se ao pescoço arrojado, fechando os olhos, e lhe tocando os lábios. Um beijo dos sentimentos acumulados de desejo e intensidade que cresceu entre os dois. Para o detetive, era a jaula dos olhos. Confuso e incerto, pois a alma que ali se entregava ao homem continuava a ser, porventura, um mistério que se misturava com suas próprias emoções guardadas.
No âmago desse enlace, não residia traição, pois, ainda que Isadora e Helena compartilhassem o mesmo vaso corpóreo, suas mentes eram como estrelas distintas no firmamento da existência. Kaimbe havia, indubitavelmente, conquistado o coração de Isadora, enquanto Arthur, jamais ultrapassara os limites do afeto platônico com Helena.
A jaula dos olhos, aquela prisão da percepção limitada, se abria diante dele, revelando um universo onde as almas, livres e soberanas, buscavam seu complemento no grande baile existencial. E, para que não se fizesse aflito, compreendeu que o amor verdadeiro é uma entidade autônoma, independente da casca física que o abriga, um sentimento etéreo que se nutre da própria essência do ser.
A cabeça de Paulo retornou sacudindo contra as gotas que ameaçavam lhe tirar a visão. Em conjunto desta ação, Kaimbe lentamente se desvencilhou dos lábios de Isadora, encontrando em seus olhos um lar de sentimentos inexprimíveis. Com uma solenidade que beirava o divino, ele entoou palavras que pareciam vir de sua ancestralidade:
— Nas asas dos seres alados, que o sopro dos céus me fortaleça. Que as folhas de Amana, beijadas pela terra nutrida... — ele parou quando seus olhos produziram lágrimas que foram imediatamente enxugadas pela garota que o ajudou a concluir as palavras. — ...renasçam nos galhos, mostrando o ciclo imortal de renovação que nos guia.
O chão, consideravelmente distante dos pés que batiam contra a coberta leve e escura das águas. Alinhou-se com os corações assustados que tocavam seus próprios ritmos. Envolta dessa rede melodiosamente surda, foi onde Isadora não enigmou o que sentia.
— Quero te amar, Mesmo que seja nesses poucos minutos em que ainda estamos juntos. E eu não me importo que não esteja com força para abrir uma válvula emperrada, carregar um jarro pesado ou qualquer outra coisa. Eu vou continuar sendo forte... ao seu lado, mesmo que seja aqui dentro.
Paulo intrometeu-se — Isso está acontecendo mesmo? É um teste, uma provocação? Parem de se perder em romantismo enquanto eu, SOZINHO, tento tirar a gente daqui.
Kaimbe ignorou o apelo de Paulo e proclamou ainda olhando para a jovem — Eu quero continuar ligado a você... mas não aqui, podemos ser um do outro sim, mas lá fora.
— O que quer dizer com isso?
— Que vou ajudar a tirar a gente daqui. — disse ele em voz baixa.
Paulo escutando a conversa requereu uma confirmação:
— Quer dizer que podemos abrir essa maldita válvula juntos?
Kaimbe tossiu — Sim.
— Então é melhor tentarem logo. — disse Mendes avistando os detalhes do teto de pedra ampliados pela proximidade contínua.
— Tudo bem. Só cuidado para não desmaiar lá embaixo... — aconselhou Paulo. — Não esquece. Vamos puxar para o lado direito. Com tudo o que temos!
Após a instrução, ambos se posicionaram para descer mais uma vez. E assim o fizeram. Antes de afundarem Mendes conseguiu sentir o medo de todos, mas também o seu próprio. A surrealidade dos eventos desde barco era tão clara em sua alma que o fazia se perguntar se aquilo havia de fato ocorrido. Se ele e Arthur haviam se conectado de fato e se quem sabe, Isadora e Helena pudessem fazer o mesmo. A água, se tornava apenas um obstáculo físico em comparação com as marés de emoções e reflexões que se agitavam.
Ele gostaria que tais emoções pudessem ser sugadas da mesma forma como o seu corpo foi, assim que a abertura finalmente se abriu, criando um redemoinho poderoso que puxava tudo em sua direção. Mendes, Paulo, Isadora e Kaimbe, sem ter como resistir, foram arrastados pela correnteza violenta, sendo expelidos para fora.
Foi tudo de repente. No início, parecia que estavam escorregando no ar, antes de começarem a rolar um barranco abaixo. A descida foi caótica e rápida, com cada um tentando instintivamente se proteger. Eles giravam e batiam contra o terreno acidentado, com pedras e terra solta agravando a descida.
A água do túnel os acompanhava e se misturava com a lama e a vegetação, formando uma massa desordenada que os arrastava ainda mais. Mendes sentia os impactos, enquanto tentava de todas as formas manter Isadora por perto. Kaimbe e Paulo, embora separados pela força da queda, tentavam manter-se acima da lama.
Com um último salto desajeitado, eles foram lançados às águas relativamente mais calmas do rio. A correnteza ironicamente, mas gentil em comparação com a violência anterior. Mendes caiu após Kaimbe e Paulo na água, mergulhando brevemente antes de voltar a superfície tossindo e ofegante, mal tendo tempo de se recuperar quando já sentiu outro impacto direto. Isadora colidiu com ele, os dois giraram na água antes de boiar.
Sua mão não era mais o foco de sua dor. Seu corpo inteiro parecia latejar, sua expressão era de puro choque e alívio enquanto olhava ao redor buscando por Paulo e Kaimbe. Em poucos segundos, ele os avistou a alguns metros de distância, também tentavam se reorientar. Kaimbe, flutuava mais distante, parecendo atordoado, mas consciente.
— Estão todos bem?! — Mendes gritou.
Não! — Paulo respondeu e começou a nadar em direção a Kaimbe. — Vou pegá-lo, nadem para a margem!
O rio os carregava suavemente agora, longe do caos do túnel inundado. Com esforço, Mendes começou a nadar para a margem, contendo a dor de puxar Isadora que parecia uma pedra.
— Vamos, já estamos perto — encorajou-a.
— Desculpa. — Se esforçando, ela começou a nadar ao lado dele.
Segura firme... — Paulo gritou mais distante, enquanto ajudava Kaimbe.
Por sorte o rio dava pé para todos e a cada braçada, os quatro se aproximavam mais da margem. A água, fria e revigorante, parecia lhes dar um novo sopro de vida. Aos poucos, o rio os acolhia, os levando para mais perto da segurança.
Eles chegaram à margem, exaustos, arranhados, sangrando, mas vivos, cada um deles caindo na terra firme, agradecidos por terem escapado com vida daquela situação desesperadora.
Conseguimos, — Mendes ofegou, olhando para o grupo e depois falando para si mesmo. — Conseguimos, vô.
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