25. O Dilúvio e o Delírio
Após cinco dias, Mendes se encontrava na casa modesta de seu amigo Paulo, sentado em uma poltrona desgastada, aguardando ansiosamente. A sala era pequena e repleta de livros e papéis. No chão, um gato malhado, com olhos amarelados, saltou graciosamente até seu colo, e, distraidamente, Mendes começou a acariciar o pelo macio do animal. O gato ronronou, aconchegando-se confortavelmente.
— Sai de cima, Marlon — disse Paulo, tocando seus lábios ao ver o gato obedecer relutantemente e descer do colo de Mendes. Ele voltou a sua atenção para a pilha de fotos e uma pasta repleta de arquivos que havia retirado do armário.
— Meu pai sempre dizia que quanto mais envelhecemos, mais moles ficamos — comentou ele, voltando-se para Mendes com as fotos e a pasta em mãos. Ele colocou os itens sobre a mesa de centro, um tanto empoeirada.
— E você concorda com isso? — perguntou.
Paulo riu, sentando-se na cadeira oposta.
— Bem, anos atrás eu teria discordado. Mas então esse gato apareceu. Estava na rua. Eu... eu simplesmente não queria deixá-lo lá — explicou, apontando para Marlon, que agora estava deitado no peitoril da janela, observando o mundo lá fora.
— Hmm, seu pai tinha razão, então — respondeu Mendes com um sorriso amigável. — Você está ficando velho e mole.
— Sim. — admitiu, pegando uma das fotos e a entregando para Mendes. — Mas vamos ao que interessa. Consegui cruzar alguns rostos dessas fotos com os arquivos da delegacia.
— E elas têm alguma ligação? — perguntou Mendes, curioso.
— Definitivamente. Veja aqui, este homem — apontou para a foto — foi preso há alguns anos por um caso bizarro. Esse sujeito era obcecado pelo mito de Deucalião e Pirra.
Mendes encarou a foto com interesse. — Deucalião e Pirra...
— Sim. Ele acreditava que, assim como no mito, uma grande inundação viria para purificar o mundo. É semelhante à história da Arca de Noé. Deucalião e sua esposa Pirra foram avisados sobre um dilúvio e construíram uma arca para sobreviver. Depois, jogaram pedras por cima dos ombros, que se transformaram em humanos, repovoando o mundo. Este homem acreditava ser um moderno Deucalião, escolhido para sobreviver e reconstruir o mundo.
— Então faz sentido que eles estejam envolvidos com a Seita. — Mendes apontou para um dos arquivos na mão dele. — E essa mulher?
— Ela era sua "Pirra"', por assim dizer. Eu não sei exatamente quem começou com essa história, mas parece que foi ela. Na verdade, Pirra já é seu nome de nascença, achei isso curioso. Já Deucalião, devia ter outro nome, mas não foi identificado. E também esses dois foram presos roubando para manter animais vivos em jaulas, em condições precárias. A mulher não aparece na foto dos mortos, então ela pode ainda estar viva.
— E onde eles mantinham os animais?
Paulo, virando algumas páginas dos arquivos, respondeu: — Eles usavam um velho armazém nos arredores da área em desenvolvimento da cidade. Ficava um pouco afastado, o que lhes dava privacidade. Depois da prisão, o lugar foi abandonado.
Mendes franziu o cenho, pensativo. — Então, esse armazém... Você acha que pode ser um ponto de encontro ainda?
Paulo assentiu. — É possível. O local é isolado e já tem uma história com esses dois. E faz todo sentido que tenha gente se reunindo por lá.
— Então acho que vou ter que checar isso.
— Ah é. Vai desaparecer de novo?
— Eu não queria, mas vou.
Paulo se levantou, caminhando até a janela e olhando para fora. — Por que você quer tanto fazer isso?
— Além de todas as mortes que eles causaram, eles sequestraram duas pessoas. Se eu não fizer nada, elas morrem também.
— Isso... isso é sério?
— Sim é. — Mendes olhou para o chão. — Uma dessas vítimas pode ter Informações que podem salvar vidas. É tudo que eu posso dizer por enquanto.
— Você não deveria fazer isso sozinho. — Ele se virou, encarando Mendes.
— Eu não vou te pedir nada, Paulo...
— Você é meu amigo. — ele o interrompeu. — Além disso, é meu trabalho também. Eu não deveria ficar de braços cruzados.
— Isso pode complicar as coisas para você no departamento.
— Já estou ajudando você com isso, não estou? — Paulo deu de ombros com um meio sorriso. — Além do mais, preciso saber o que está acontecendo. Ver se essa Seita é realmente como você me contou.
— Sim, eles são.
Paulo inclinou a cabeça, analisando o amigo com um olhar sério. — Então me deixe ajudar. Me fala Sérgio, qual é o próximo passo, e eu vou com você.
Mendes endireitou a postura no assento. — ...Está bem. Mas Primeiro, preciso passar em casa.
Dito isso, a cena transcorreu, e Mendes chegou em casa com o amigo Paulo. A porta mal fechara, e Mendes já estava em movimento, indo direto ao armário, de onde retirou sua bolsa de lona envelhecida. checando o conteúdo dentro dela.
— Depois, vamos ao armazém.
Eles pedalaram, cada um em uma bicicleta, se aproximando do local situado na periferia da cidade enquanto anoitecia. Eles estacionaram as bicicletas um pouco distantes, em uma área repleta de arvores. Depois desmontaram delas, ocultando-as atrás de um pequeno monte de entulho. Dali, ainda não se ouvia nada. Eles iriam precisar seguir uma determinada distância a pé antes de chegarem.
— Agora, precisamos parecer que pertencemos a esse lugar. — Sussurrou Mendes enquanto abria a bolsa de lona, dando visibilidade ao seu conteúdo meticulosamente organizado: armas, algumas ferramentas básicas e, o mais importante, roupas e máscaras, que iriam servir para replicar o estilo da Seita. Rapidamente, ambos trocaram as vestimentas, assumindo a aparência dos Perpétunos. O plano era simples, mas arriscado: misturar-se, encontrar as vítimas sequestradas e escapar sem serem descobertos.
— Você acha que vai funcionar? — murmurou Paulo, ajustando a máscara.
— Se não funcionar, vamos para o plano b. — disse ele encaixando a pistola em um cinto
Armados e trajados, eles se dirigiram até o armazém, mantendo-se nas sombras. Conforme se aproximavam, notaram uma atividade incomum ao redor das árvores. Um grupo de pessoas sem as típicas vestes escuras, mas com máscaras douradas, circulava a área, alguns deles segurando lanternas. Mendes e Paulo tentaram manter o ritmo, mas então a lanterna girou em suas direções, fazendo-os parar. "Nada como um pouco de luz para apimentar as coisas.". A mão de Mendes apertou a pistola. Ele firmou a postura, preparando-se para o pior. Paulo, ao seu lado, permaneceu imóvel, como uma estátua.
Mas então, a luz se desviou, movendo-se para longe deles, continuando sua varredura pela área. "O disfarce funciona", Mendes respirou aliviado, mas manteve a guarda alta. Ele sussurrou para Paulo, pedindo para que eles fossem mais rápidos.
A proximidade do local foi trazendo mais atividades incomuns. Dispersos e espalhados pela área, pessoas com roupas da Seita se engajavam em atividades diversas ao ar livre, cada grupo imerso em seu próprio mundo.
Numa parte isolada, um pequeno agrupamento de indivíduos sem máscaras, mas com túnicas pretas, estavam tentando acalmar alguns cavalos presos em cercados. Os animais pareciam agitados e inquietos, relinchando e batendo os cascos no chão.
— O que estão fazendo com os cavalos? — perguntou Paulo, observando a cena.
Mendes apertou os olhos, notando alguns membros da Seita, com ferramentas simples como tesouras e navalhas. — Parece que estão fazendo algum tipo de marcação nos pelos deles.
Os animais, aparentemente desconfortáveis com o processo, continuavam a se mover com violência. E atrás deles, erguia-se um edifício de tijolos antigos, parecia ainda mais sinistro sob a noite. Janelas quebradas e a pintura descascada davam ao lugar o seu ar de abandono.
— O armazém? — Mendes parou observando.
— É o que parece. — respondeu Paulo.
Mendes rodou o pescoço pelo território até notar um grupo menor de Perpétunos mais afastados dos demais perto de um rio ao lado da construção, esses concentravam-se ao redor de uma mesa de pedra improvisada coberta por documentos e diversos itens e armas. Eles discutiam e gesticulavam, era evidente que estavam traçando planos ou estratégias de algo.
— Sabe aquele homem ali. — Mendes acenou a cabeça para a figura que mexia os braços enquanto falava. — É o líder deles, se chama Eldric.
— Eles são organizados. Sabe o que podem estar falando?
Mendes imaginava em como eles estariam planejando seus próximos movimentos para roubar a ampulheta, sabendo que nada de bom viria dessa conversa. Virando-se para Paulo, ele apenas disse:
— Não faço ideia.
— Então o que a gente faz agora? Entra no Armazém?
— Isso. — Ele passou os olhos pelos homens que conversavam na entrada da construção, torcendo para que eles não interagissem com eles assim que passassem.
Nervoso, ele apenas imaginava as possibilidades de ser pego em flagrante por alguém. Foi nesse meio tempo que Paulo fez um questionamento:
— Por que quiseram construir o armazém ao lado de um rio?
— Oi?
— Por que quiseram construir um armazém ali, ao lado do rio?
— Há. Esse lugar deve receber entregas de barcos. Ter um estabelecimento perto da água dá algumas vantagens comerciais.
— E como tem tanta certeza?
— Eu... eu sei lá, devo ter visto algo sobre isso em um... em um jornal. — respondeu, tentando parecer desinteressado, mas sua mente viajava para a cidade de Arthur
Lá, o mesmo padrão se repetia, uma proximidade com a água que facilitava os negócios escusos. "Se os barcos não transportassem mercadorias, as pessoas de Orla dos Ventos teriam que confiar em caminhões, o que seria como tentar atravessar um buraco de minhoca até outra parte do universo. Imagine só, um simples passeio até a cidade vizinha se transformando numa expedição intergaláctica." Pelo menos foi assim que ele se sentiu quanto foi para Vila Nova.
— Você está escondendo algo de mim, Sérgio?
— O que? não... não. — Mentiu ele, imaginando que falar sobre Arthur ou a ampulheta só traria mais problemas. A certeza se Paulo havia acreditado ou não havia ficado escondida dentro de sua máscara dourada que não revelava nada. Dela apenas saiu o som de sua voz mudando de assunto:
— Vamos entrar?
— É. Vamos entrar.
Tentando manter uma postura confiante e discreta. Os dois caminharam em direção à abertura do armazém.
— Se falarem com você, tente não dizer nada — sussurrou Mendes, tomando a frente.
A porta enferrujada estava logo ali, entreaberta, era só empurrar e entrar. Mas, quando estavam prestes a entrar, uma voz surgiu:
— A eternidade, Perpétuno.
Pegando-se de surpresa, Mendes olhou para o lado vendo o homem que segundos antes conversava, agora, atrás de seu ombro esquerdo. Evitando replicar a saudação, ele tentou apenas passar novamente, mas um chamado o fez parar.
— Espere aí — o homem tocou o ombro de Paulo. — Onde está o seu símbolo?
Seguindo o olhar do Perpétuno, Mendes percebeu, com um aperto no estômago, que o símbolo dos guardiões do tempo não estava visível no pescoço de Paulo. Por um momento, ele temeu que tivessem cometido um erro fatal em seu disfarce. Seu coração acelerou, mas manteve sua postura ereta, tentando transmitir a confiança de um verdadeiro membro da Seita.
Paulo, percebendo o que estava acontecendo, rapidamente enfiou a mão dentro da túnica e puxou o símbolo para fora, deixando-o claramente visível em seu pescoço. — Está aqui. — A voz do amigo soou ligeiramente diferente sob a máscara. O que fez Mendes recear que a falta dos nuances do dialeto da Seita, pudesse traí-los.
— Quem são vocês? — A figura se aproximou mais. O plano parecia prestes a desabar. O instinto lhe dizia para reagir, mas sua mente buscava uma saída menos drástica. Ele sabia que qualquer movimento errado poderia resultar em um desastre. "Sérgio Mendes, o que você vai fazer agora?" Ele pensava olhando para os lados procurando uma fuga, um lugar para atirar. — Vocês não têm nada a dizer?
Nesse momento crítico, sua concentração foi desviada pelo som de cascos batendo no chão e um relincho alto atraiu a atenção de todos. Um cavalo, que estava preso ao lado do armazém, escapou de seu confinamento, correndo desenfreadamente.
— Cuidado! — gritou alguém quando o animal passou correndo no meio de um grupo relinchando.
Sem pestanejar, Mendes agarrou o braço de Paulo, puxando-o em direção à porta enferrujada do armazém. "Vamos!"
Eles adentraram a construção dando de cara com um labirinto de caixas empoeiradas e equipamentos antigos. O ar estava frio e úmido, e o cheiro de mofo era quase sufocante. Eles andaram apressadamente para longe da entrada, atentos a qualquer sinal de movimento ou ruído.
— Por isso eu adoro cavalos. — Sussurrou Paulo, sua voz baixa sob a máscara.
— Cuidado com seus passos. — Mendes advertiu. — Isso tudo parece abandonado há anos.
Mendes, passou a examinar os rótulos desbotados nos sacos de juta ao seu lado.
— Grãos... — Paulo levantou uma lona alguns passos de distância, revelando sacos cheios de milho e arroz. — E tem mais coisas aqui, olha.
Ele se aproximou de Paulo, permitindo a visão de potes de conservas e outros itens que pareciam suprimentos de longa duração. Atrás de uma pilha de caixas, Mendes encontrou um caderno empoeirado. Ele o abriu cuidadosamente, revelando registros de entregas e estoque. As datas eram antigas, algumas remontando a vários anos atrás.
De repente um estrondo metálico o fez saltar, a barriga gelou. Ele se virou rapidamente, a pistola já em posição, apenas para ver Paulo parado, próximo a uma pilha de equipamentos enferrujados que havia derrubado acidentalmente. Ele murmurou um pedido de desculpas abafado. Mendes tossiu com a poeira que se levantou fazendo-o se afastar do local.
— Vou prestar mais atenção, Sérginho.
Com os olhos lacrimejando, Mendes levantou o braço em sinal de paz, até que sentiu seu pé pisar em algo sólido que produziu um som sutil. Ele levantou o pé, esperando seus olhos avermelhados focarem na figura de um pequeno objeto, era um cavalinho de madeira empoeirado. Seu coração se apertou ao reconhecer o cavalo. Logo ele se abaixou para pegá-lo.
— Paulo — chamou, mantendo a voz baixa. O outro detetive se aproximou rapidamente, observando o objeto.
— O que é isso? — perguntou, olhando para os dedos de Mendes.
— Isso é de uma das pessoas que eles levaram. Eles estiveram aqui, ou ainda estão.
— E onde você o encontrou?
— Bem ali. — Mendes apontou para chão, onde havia pisado no brinquedo.
Paulo olhou em volta, examinando o espaço. Seus olhos se fixando exclusivamente em um ponto. — Olha só como a poeira se acumula ali.
Mendes observou o lugar citado e notou que realmente havia um padrão irregular, como se algo estivesse escondido sob o piso. Curioso, ele se aproximou enquanto Paulo se ajoelhava, as mãos dele deslizaram sobre a superfície fria e suja do piso. Os dedos dele contornaram o que parecia ser as bordas de uma placa de madeira.
— Paulo, o que você encontrou?
— Acho que é uma escotilha.
Com uma mão, Paulo limpou mais a área, revelando claramente a escotilha de madeira reforçada com metal. Ela possuía uma alça robusta e um cadeado enferrujado.
Mendes examinou o local enquanto Paulo tocava o cadeado. — Como abrimos isso?
— Parece que já está aberta. Olha — ele apontou para a lateral, onde o cadeado aberto pendia, inútil.
— Então tem alguém lá embaixo.
— Talvez. Mas podemos ir com cuidado. — Ele puxou o revólver, desbloqueando o tambor para verificar as balas antes de travá-lo novamente. E então, levantou a placa de madeira, revelando uma escada estreita que descia para a escuridão.
Por um momento, eles apenas olharam para a escada que levava ao desconhecido. Mendes fez um sinal indicando para eles prosseguissem. Então os detetives desceram devagar, encontrando um corredor escuro com paredes de pedra. O ar trazia um cheiro terroso misturado com o aroma antigo da água estagnada.
— Sente isso? — perguntou Paulo, passando a mão pela parede.
Mendes balançou a cabeça que sim, observando as marcas de umidade que subiam pelas paredes. As linhas eram irregulares, mas claras, indicando que o lugar havia sido inundado em algum momento.
— Parece que já tiveram problemas com água aqui embaixo — comentou ele.
Desviando a atenção, eles continuaram com cuidado, passando por uma série de grades fechadas de ambos os lados do corredor até chegaram em uma área mais ampla, onde uma série de barris e caixas estavam empilhados em um canto. No centro da sala, havia uma estrutura de metal, semelhante a uma roda de válvula, conectada a uma série de tubos grossos que desapareciam na parede e no teto.
— Isso parece ser uma comporta antiga — disse Paulo, examinando a estrutura.
Mendes se aproximou, analisando a roda e os tubos. — Eles deviam usar isso para controlar a água do rio em caso de enchentes. Isso explica a umidade das paredes.
— Você acha que ainda funciona?
— Eu acho que... — Antes de responder um som o silenciou. Era agudo e perturbador vindo de uma porta no final do corredor. Era como um choro humano junto de uivos animalescos, algo que gelou o sangue em suas veias.
Mendes viu Paulo virar o rosto na direção do som, e evitando falar, os dois se dirigiram até a origem do sonido que se intensificava até o outro lado de uma porta entreaberta, feita de metal pesado e com sinais evidentes de ferrugem. Quando perceberam, já estavam de frente para ela.
— Deixa que eu vou. — disse Mendes, que fez um gesto suave, empurrando o metal arranhado, revelando o interior de uma sala.
Era um cenário bizarro: gaiolas de tamanhos variados ocupavam quase todo o espaço, cada uma abrigando um animal diferente e algumas cobertas por lençóis. Notava-se de gatos a pássaros, de coelhos a serpentes, a variedade era assombrosa. Alguns animais pareciam agitados, enquanto outros permaneciam imóveis, magros, quase mortos, observando os recém-chegados.
Quando Paulo se aproximou, mal teve tempo de compartilhar um xingamento mútuo. Um Perpétuno emergiu do fundo da sala em uma velocidade que os faz recuar um passo. Ele se aproximou da porta a segurando com força. "espero que Paulo esteja pronto para atirar caso ele agarre o meu pescoço" pensou Mendes.
— Quem são vocês? — o homem questionou.
— A-a eternidade, Perpétuno. — Nervoso, Mendes reproduziu a saudação que ouvira antes. — Eldric nos enviou aqui para verificar... verificar as condições dos animais.
— Os animais estão bem. — disse ele, retirando sua máscara, mostrando um rosto cheio de cicatrizes. — E por que Eldric não veio ele mesmo?
— E-ele está... ocupado falando com outros membros e...
— Visitantes! — Uma voz feminina interrompeu, vindo de trás dos homens que bloqueavam a sala.
Quando a dona da voz surgiu, Mendes enrugou a testa em reconhecimento, e Paulo lhe deu um leve toque nas costas. Apesar do cabelo dela estar emaranhado e sujo, caindo em mechas desiguais em torno do rosto, era inegável que ela era a mesma mulher dos arquivos, Pirra.
— Vocês vieram para o evento, não é? Os animais já me contaram tudo.
— Viemos? — Paulo perguntou, mas ela entendeu como uma afirmação.
— Que bom! Vocês vão adorar o velório. — disse ela puxando-os para dentro da sala. — O meu marido adorava festas, infelizmente ele foi levado antes do dia da purificação.
— Me fala, doidinha, como você vai fazer esse velório, se seu marido está sendo comido por vermes bem longe daqui? — O homem com as cicatrizes tirou sarro.
Com uma expressão de tristeza ela deu alguns passos para trás focando o olhar nos detetives disfarçados e então se abaixou ao lado das gaiolas e de repente o seu rosto se alternou em um sorriso maníaco. Ela parou diante da primeira gaiola, onde um gato observava-os curioso.
— O miau disse que vai sentir falta dele, mas sabe que ele vai para um lugar melhor.
O gato arranhou a patinha na grade, inclinou a cabeça, observando Pirra que se virou para uma gaiola contendo um papagaio colorido.
— E este é o Sr. Asas — continuou com um sorriso. — Ele vai cantar uma canção especial hoje à noite, para homenagear o falecido. — O papagaio piou, como se em resposta.
— Ei, vocês estão aqui para vigiar essa louca no meu lugar? Porque, sinceramente, se for assim, eu posso ir embora. — disse o Perpétuno.
— Como assim vigiar ela? — Paulo deixou escapar.
— Ah, e aqui temos a Sra. Coelho. Ela está um pouco triste, mas prometeu se comportar na cerimônia. Não é mesmo?
A coelha na gaiola apenas mexeu as orelhas. Paulo e Mendes trocaram olhares preocupados. O homem das cicatrizes olhava com um toque de desprezo para Pirra, ainda envolvida em seu mundo delirante, se movendo graciosamente entre as gaiolas, falando com os animais como se fossem velhos amigos. Seu comportamento era alternadamente melancólico e animado.
— E aqui, temos dois animais muito estranhos para o velório — disse ela, aproximando-se de duas grandes gaiolas cobertas por lençóis sujos.
Com um movimento dramático, Pirra puxou os panos, revelando Kaimbe e Isadora. Eles estavam presos, com medo e fracos. Kaimbe moveu-se em direção às grades enquanto Isadora permanecia imóvel, os olhos fixos no vazio.
— Este é um animal selvagem, mas eu o domarei com meu amor e cuidado. E essa aqui é tão quietinha e mansa...
Mendes se sentiu horrorizado, mas ele tinha que manter a compostura ou estragaria tudo. Kaimbe olhava desesperado deles para Isadora que parecia resignada ao seu destino.
— Muito interessante. — Mendes conseguiu dizer, forçando um tom de aprovação. — Eles parecem bem cuidados.
Pirra sorriu satisfeita com o comentário. Ao mesmo tempo, Paulo não se movia, encarando as gaiolas com os dois corpos humanos. Notando o olhar dele, Pirra se aproximou, ele tremeu, as mãos dela começaram a roçar levemente o tecido se sua túnica.
— Você tem olhos muito gentis para um Perpétuno — ela comentou, olhando diretamente para ele.
— Pirra, cale-se sua tola! Não quero ouvir suas loucuras e eles também não. — Disse o Perpétuno mudando para uma expressão mais assustadora.
A mulher, porém, parecia quase desfrutar da irritação dele. Ela se voltou para Paulo de novo, ignorando completamente a ameaça. — Não ligue para ele. Conte-me, o que você vê quando olha para eles? — Ela gesticulou em direção às gaiolas.
Paulo tentava conter a tremedeira, desviou o rosto até uma das gaiolas próximas. A atenção indo de encontro a um filhote de cachorro tentando, sem sucesso, mamar na teta de sua mãe. Que já não se movia, já não respirava.
O Perpétuo, perdendo a paciência, avançou em direção a ela, pronto para arrastá-la para longe. — Pirra, eu disse para...
O movimento foi tão rápido e inesperado que ninguém mal teve tempo de reagir. Pirra levantou uma arma, a arma de Paulo, que estava parcialmente oculta sob sua túnica, apontou-a de forma instável para o Perpétuno verdadeiro.
Em instinto, Mendes colocou a mão em sua própria arma, mas antes que pudesse agir, ela virou-se repentinamente.
— Jogue sua arma aqui, espertinho! — Pirra ordenou, a voz caprichosa e perigosa.
Mendes não sabia mais o que fazer, sua respiração ficou mais rápida do que ele queria, ele sabia que qualquer movimento brusco poderia tornar a situação ainda mais volátil. Com relutância, ele soltou a arma, deixando-a deslizar pelo chão em direção a Pirra.
— Muito bom! — disse ela, agachando-se para pegar a outra arma.
— Hei, Hei, Hei. Dê-me essas armas aqui. Você sabe que não pode brincar com isso. — disse o Perpétuno.
A mulher, no entanto, recuou, balançando a cabeça. — Não, não, não. Isso não é brincadeira, é uma cerimônia. Os animais querem ver.
— Já deu! Larga a arma...
O som do disparo. Foi tão alto, que os animais se agitaram. Por um momento, o caos dos sons abafou tudo. Quando a poeira emocional começou a se assentar, os olhares se voltaram para o homem das cicatrizes, que agora estava agonizando de dor com a mão nas costelas.
— Sua... va-adia! — ele dobrou os joelhos e caiu na frente de todos de olhos cerrados.
Uma tristeza invadiu o rosto de Pirra que começava a choramingar. Um som de lamento que foi crescendo até virar um choro risonho fundido em lágrimas. Ela olhou para o corpo caído no chão, e com o rosto molhado disse:
— Agora temos um corpo para o velório.
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