23. Retorno a Várzea
Caminhando ao lado da escolta indígena, o detetive se aproximava da cidade. A transição entre o mundo natural e o construído pelo homem ficava cada vez mais perceptível. A normalidade da vida urbana parecia estranha depois das tragédias que havia testemunhado, e ainda assim, era naquela realidade que ele deveria estar.
A sinfonia matinal das aves e o suave sussurro do vento traziam uma sensação de conexão inesperada com a terra — uma lembrança viva em cada raiz entrelaçada e galho balançando. Os três guerreiros que o acompanhavam personificavam destreza e elegância, se movendo quase imperceptíveis sobre o tapete de folhas.
Enquanto se aproximavam do limite da floresta, a silhueta da cidade se delineava no horizonte. Mendes sentiu a garganta pressionar, ciente de que tudo ficaria mais difícil. Parando no limiar da cidade, ele olhou para trás, para aqueles que brevemente haviam trilhado o mesmo caminho.
— Chegamos. — ele falou, com um aceno respeitoso. — Agradeço a ajuda de vocês.
O homem mais velho da escolta tocou o braço de Mendes com reverência:
— Boa sorte lá fora. Iremos embora, mas a sombra de nossa arvore lhe guiará.
— Obrigado. Lamento por tudo que aconteceu.
— A floresta pode se curar. Só espero que nós também possamos.
Mendes não conseguiu dizer mais nada, apenas observou enquanto os guerreiros partiam com um aceno solene, suas figuras se fundindo com a floresta. À medida que desapareciam entre as sombras e os segredos que a mata guardava, ele sentiu um capítulo de sua vida se fechando suavemente.
permanecendo ali, em pé, por um momento eterno, observou o lugar onde a floresta encontrava a cidade — um ponto entre dois mundos. Respirando fundo, e sentindo a mudança de ar, ele caminhou em direção à civilização.
Várzea, era o nome que aparecia ao longe em uma placa de ferro envelhecido presa a um pilar de pedra que identificava o nome do local. As ruas, eram asfaltadas, mas também, estavam cheias de buracos e poças de água barrenta da chuva recente. Prédios desgastados se alinhavam, suas fachadas descascadas mostrando um esplendor e declínio.
Ele caminhava e observava as pessoas ao redor. Trabalhadores apressados, mães com crianças de mãos dadas, jovens conversando animadamente e moradores de rua acomodados em cantos, enrolados em cobertores sujos, com olhares distantes e perdidos.
Na Avenida Central, ele via lojas chiques e cafés modernos de um lado, e barracas e lojas fechadas do outro. O ar estava impregnado com o cheiro de fumaça e comida de rua, com aromas que traziam tanto conforto quanto desconforto.
Não demorou muito até que o D.I.C (Departamento de Investigação Criminal) finalmente viesse à vista. O prédio, uma estrutura de tijolos desgastados, erguia-se com autoridade na paisagem da cidade. As janelas altas, encaixilhadas em madeira escura, davam ao edifício um ar de seriedade. Mendes parou de andar diante da entrada principal, marcada por uma larga escadaria de pedra e portas maciças de madeira com detalhes em metal forjado. O reflexo de sua imagem nas vidraças polidas o surpreendeu; cabelos desgrenhados, barba por fazer, roupas rasgadas e manchadas de sangue.
Enquanto se analisava a porta do prédio se abriu abruptamente, e um velho colega de trabalho, Paulo, apareceu, quase colidindo com ele. Paulo era um homem de estatura média, cabelos grisalhos e olhos expressivos. Seu rosto inicialmente expressou surpresa, rapidamente substituída por preocupação.
— Sérgio, pelo amor de Deus, onde você estava? — ele exclamou, franzindo o nariz. — Você está fedendo!
— Eu sei. É que aconteceu muita coisa... Muita coisa mesmo.
— Armando está furioso com você por causa do seu sumiço. estávamos te procurando por toda parte!
— Preciso falar com ele.
Paulo deu um passo para o lado, convidando-o a entrar. — Entre logo, mas, sinceramente, você está mesmo precisando de um banho!
Mendes balançou a cabeça rapidamente em concordância e passou pela porta, adentrando o familiar D.I.C. O ambiente era o mesmo de sempre, mas para Mendes, depois de tudo o que vivenciara, parecia estranhamente desconhecido. Ele atravessou o corredor estreito, iluminado por lâmpadas fluorescentes que lançavam uma luz fria sobre as paredes descascadas. Cartazes desbotados de procurados e avisos de procedimentos pendiam tortos enquanto o ar carregava cheiro de tabaco e papel velho.
Detetives com olhares concentrados cruzavam o corredor, alguns parando para trocar palavras rápidas antes de retomarem seu caminho. Mendes sentiu os olhares sobre ele enquanto caminhava em direção ao escritório do chefe, sua aparência desgastada e odor provocando murmúrios.
Ele bateu na porta do delegado Armando Rocha e entrou sem esperar por uma resposta, pronto para explicar os eventos tumultuosos que o haviam mantido longe, mas ele mal havia cruzado a soleira da porta do escritório quando o delegado, um homem de estatura mediana com cabelos já rareando e uma barba impecável, ergueu-se de sua cadeira com uma energia tempestuosa.
— Mendes! Você parece que saiu de uma briga de rua! — exclamou, gesticulando dramaticamente. — Onde você esteve? Esta cidade está um caos e você desaparece?
Mendes, exausto e coberto de lama, tentou explicar. — Estive numa tribo indígena, investigando dois assassinatos...
Rocha o interrompeu com um gesto brusco de mão. — Tribo indígena? Sérgio, você está brincando comigo? Temos rebeldes causando problemas aqui e você está lá fora brincando de Sherlock Homes!
Mantendo a calma, Mendes abriu sua bolsa de lona e mostrou a máscara e as armas dos Perpétunos. — Encontrei isso lá. Eles são uma ameaça, não só para os indígenas, mas para a cidade também.
Rocha pegou uma das armas, examinando-a com um olhar cético. — Isto parece uma arma de teatro! Você espera que eu acredite que isso é uma ameaça séria? Você deveria estar aqui, cuidando de problemas reais!
— Essa é uma ameaça real, e essas são armas bem reais Armando. Eles são perigosos, olha só para mim.
O delegado devolveu as armas com desdém. — Escute aqui, Mendes, não importa, você é um detetive, não um aventureiro de conto de fadas. Não tinha nada que estar envolvido em coisas não oficiais. Por causa dessa sua escapada, vou ter que suspendê-lo.
— Suspenso? Armando, você não pode estar falando sério!
— Ah, mas estou muito sério, Sérgio! — respondeu Rocha, batendo a mão na mesa. — Você ignora suas obrigações e protocolos, corre atrás de fantasias e ainda quer que eu passe a mão na sua cabeça? Nem pensar! dez dias de suspensão para você.
— Espera, só me escuta...
— Chega, Sérgio! — interrompeu Rocha, levantando-se abruptamente. — Já ouvi o bastante. Você está suspenso, e é definitivo!
Mendes balançou a cabeça, sentindo um misto de raiva e desapontamento. Ele sabia que argumentar mais seria em vão. Armando nunca fora o chefe dos sonhos que alguém se inspira só de olhar. Na verdade, ele sempre o viu como um homem que prezava a mediocridade profissional. E isso significava, não se envolver em casos que não fossem de seu interesse até que se tornassem uma prioridade. O problema é que para Mendes isso nunca foi o suficiente, e muitas vezes ele precisou investigar escondido, levando trabalho para casa.
Armando o repreendia por esses seus hábitos. O que era estranho, já que muitos chefes gostariam de ter funcionários com esse perfil, para Armando era o contrário. Alguém que fizesse mais do que o solicitado era um risco para aqueles que evitam a fadiga a qualquer custo. E isso para Mendes, poderia ser um efeito colateral de se estar em uma cidade em declínio de esperança.
Por um lado, ele compreendia. O salário era uma mixaria levando em conta que eles investigavam ilegalidades que pareciam surgir de máquinas de fabricar sapato. Mesmo assim, Mendes estava ali, de frente para ele, suplicando com a aparência de um homem que foi atingido por um raio, que ele ficasse do seu lado. Mas Armando não ouviria, se fosse necessário tamparia os ouvis e gritaria. Naquela hora, Mendes torceu para que o raio caísse e queimasse aquele bigode escuro dele. "Será que se pensasse muito aconteceria?". Como nada aconteceu, resignado, ele recolheu as máscaras e respondeu:
— Tudo bem. Se é assim que tem que ser... — disse preparando-se para sair.
Quando estava quase atravessando a porta a voz do delegado Rocha o fez parar.
— Sérgio! — chamou Rocha, com um tom que indicava irritação e preocupação. Mendes virou-se, encarando seu chefe, esperando mais uma repreensão.
— Sim, delegado?
Rocha suspirou, passando a mão pelos cabelos. — Antes de mais nada, vá tomar um banho, pelo amor de Deus. Você está fedendo como um gambá!
Com medo de ser demitido de vez, Mendes apenas virou-se e continuou seu caminho para fora do escritório, deixando Rocha para trás. Ao fazê-lo, Paulo o aguardava do outro lado.
— Então Sérgio, me conta o que aconteceu lá dentro.
— Fui suspenso. Por dez dias.
Paulo soltou um assobio baixo. — Uau, isso é sério. Pelo menos você escapou da fúria do Armandinho. Ele estava dizendo que arrancaria sua cabeça se você aparecesse.
Mendes olhou para Paulo com seriedade. — Parece que ele quase cumpriu a promessa.
— Bom, pelo menos agora você tem algum tempo para descansar...
— É, parece que é o que todo mundo quer — ele respondeu, forçando um meio sorriso. — Vou cuidar disso. E obrigado por se preocupar.
— Sempre, Sérgio meu parceiro.
Se despedindo de Paulo, Mendes saiu da delegacia. A luz do dia batia em seus olhos, trazendo uma sensação de liberdade, mas também de incerteza. Ele precisava de tempo para processar tudo o que havia acontecido. Caminhando lentamente pela rua, a primeira coisa que ele pensou foi em voltar para casa.
O caminho até lá parecia mais longo do que nunca. Mendes caminhava com a cabeça baixa, perdido em pensamentos, quando foi abordado por um morador de rua. O homem, de aparência cansada e com roupas desgastadas, estendeu a mão trêmula em sua direção.
— Por favor, senhor, tem algum trocado?
— Desculpe, eu não tenho dinheiro comigo agora.
— Mas todos têm algo, senhor. Não precisa ser dinheiro.
Mendes, mantendo a calma, repetiu, — Eu realmente, não tenho nada agora.
O homem fez uma pausa, olhando ao redor antes de se inclinar para frente, baixando a voz. — Eu poderia estar roubando. Tenho uma faca aqui no bolso. Mas estou só pedindo...
Mendes sentiu um lampejo de alerta. Com um movimento rápido e discreto, deslizou a mão para dentro de sua bolsa de lona, puxando a caçadora que carregava em um sinal de aviso.
Percebendo sua mudança de postura, o morador de rua recuou com um sorriso forçado aparecendo em seu rosto cansado. — Me desculpe, foi só um engano, sabe?
— Sim eu sei.
O homem entendeu que não deveria tentar mais nada, e logo se afastou lentamente. Mendes observou-o por um momento antes de continuar seu caminho. Cada pessoa naquela cidade carregava sua própria carga, cada uma enfrentando suas próprias batalhas. E era assim que cada um tocava a própria vida em Várzea, se é que dava para chamara aquilo de vida.
Ao chegar em frente ao seu pequeno portão, ele retirou uma chave enferrujada escondida dentro do buraco de um tijolo velho - um truque antigo, mas eficaz. Abriu o portão e entrou, sentindo alívio ao pisar em seu próprio território.
Sua casa, uma construção modesta com paredes que já mostravam sinais do tempo, era um santuário em meio à turbulência de sua vida. Ele fechou a porta atrás de si, abandonando o mundo lá fora.
O detetive foi diretamente ao banheiro largando suas coisas, desejoso de se livrar do suor, da sujeira e do sangue que marcavam sua pele e roupas. Ele se despiu lentamente, cada peça de roupa deixando o chão manchado de vermelho e marrom. Ao ligar o chuveiro, a água quente começou a cair, e ele entrou debaixo do fluxo, sentindo as gotas lavarem não apenas a sujeira física, mas também o peso emocional dos últimos dias.
O calor da água trouxe um pequeno conforto, mas não podia apagar as memórias ou as preocupações que agora o assombravam. Enquanto a água escorria, ele se permitiu um momento raro de vulnerabilidade, fechando os olhos e respirando profundamente, tentando encontrar alguma paz.
Ao sair do banho, ele sentiu o vapor quente se misturar com o ar mais fresco do resto da casa. Ele se lembrou de como aquilo era agradável. A água havia conseguido lavar uma camada de stress, deixando-o nu não apenas em corpo, mas também de espírito.
Envolto em uma toalha, ele percorreu o corredor até o quarto, onde escolheu uma camisa de algodão e calças que o fariam parecer menos com um homem que havia emergido de uma selva e mais como um morador de Várzea.
Ele se lembrou da sua bolsa de coro ainda caída desajeitadamente no canto do banheiro, junto das suas roupas sujas. Então ele voltou até lá e apanhou a bolsa, manchada e desgastada que parecia fora de lugar na normalidade de sua casa. Enrolando a alça em sua mão, ele a levou se dirigindo a uma porta que raramente abria. Era uma adição que ele mesmo fizera à casa, um espaço dedicado a seu trabalho. Com um clique suave, uma abertura se fez, mostrando um estúdio de revelação de fotos.
O cheiro químico do revelador e do fixador entrou em suas narinas, um aroma que ele tinha aprendido a associar com a busca pela verdade. Fotos em preto e branco pendiam em fileiras ordenadas, cada uma capturando um momento congelado no tempo.
Ele passou pelos registros de pequenos furtos e contravenções, pelas expressões de flagrante, os olhos que refletiam surpresa, culpa ou desespero. Havia fotos de cenas mais graves também: locais de crimes marcados pela violência, rostos de vítimas que nunca mais voltariam para casa, objetos deixados para trás que se tornaram pistas cruciais em suas investigações.
Então, seus olhos se fixaram na série mais recente: as imagens do homem com a tatuagem no braço esquerdo, um símbolo que tinha se tornado um ponto de fixação nos últimos meses. Ela mostrava um urubu em voo, suas asas abertas em um ângulo agudo, como se estivesse prestes a atacar. Em seu bico, a ave segurava uma corrente quebrada. Mendes tinha seguido o rastro desse homem, acreditado ser um membro dos rebeldes que agitavam a cidade com atos de sabotagem e mensagens subversivas.
Mas naquele momento era hora de mergulhar mais fundo em suas próprias investigações, de conectar os pontos que até agora pareciam dispersos. Com um suspiro, ele se virou, abandonando o rastro visual desse enigmático rebelde, para focar na revelação das fotos que ele próprio havia tirado na floresta.
Ele começou tirando a câmera de sua bolsa de couro e removendo o filme de dentro dela. Com cuidado, ele abriu o compartimento da câmera, e sob a segurança da luz vermelha que banhava o estúdio, ele extraiu o rolo de filme.
No silêncio quase sagrado, ele o encaixou no carretel e o colocou dentro do tanque de revelação, fechando a tampa para garantir que a luz não maculasse as imagens latentes. O ritual de preparação dos químicos se desdobrou com a facilidade; primeiro, o revelador, cuja alquimia traria à vida as sombras e luzes capturadas pela câmera.
Ele verteu o líquido no tanque, cronometrando o processo meticulosamente. A agitação cuidadosa permitiu que o revelador trabalhasse sua magia, transformando as imagens invisíveis em visíveis, fixando-as na realidade tangível do filme. Após o período necessário, ele drenou o revelador e introduziu o banho de parada para interromper o processo de desenvolvimento.
O fixador foi o próximo, selando as imagens e protegendo-as da luz. Ele movia-se com impaciência, ansioso para ver os resultados de seu trabalho, mas também respeitando o processo que não podia ser apressado. Depois de fixar as imagens, ele lavou o filme com água corrente, livrando-o de todos os resíduos químicos.
Com o filme limpo e preservado, ele o pendurou cuidadosamente para secar, garantindo que nenhum contato ou dobra perturbasse a integridade das imagens. Enquanto ele secava, ele se permitiu uma pausa, um breve momento para refletir sobre os seus próximos passos. O tempo parecia suspender-se naquele estúdio de revelação, cada segundo estendendo-se infinitamente, até que finalmente, as imagens estavam secas e prontas para serem examinadas.
Mendes pegou sua lupa e inspecionou cada quadro contra a luz. Lá estavam as cenas da floresta, os corpos queimados dos pais de Isadora, os rostos sem vida dos Perpétuos, a expressão de fúria de Iaraú sendo arrastado para fora da tribo. Sentindo a adrenalina, Mendes pegou as últimas fotos, ainda úmidas ao toque, e as segurou sob a luz vermelha de segurança. O símbolo da espiral aparecia nas curvas na superfície da terra onde os pais de Isadora, e na foto seguinte, onde o cervo morreram.
Ele baixou as fotos cuidadosamente, uma paranoia veio na sua cabeça, a sensação de algo familiar. Então quase inconscientemente ele colocou a mão dentro de sua bolsa e retirou de dentro dela a carta de Isadora de Castilho. Ele não podia crer; o futuro não era apenas uma lembrança distante, parecia ser um fio contínuo que tecia através de sua realidade atual. Tudo estava conectado e suas memórias o levaram de volta a Orla dos Ventos.
"Este símbolo... Estava gravado no casco do barco do meu avô. Eu o via todos os dias sem nunca entender o que era."
"Veja isto", dizia Helena, "Eu encontrei o mesmo símbolo nessas fotos durante minha pesquisa. Mas eu também não sei quem as tirou."
Mendes soltou um suspiro. Suas mãos tremiam, uma segurando as fotos, a outra apertando a carta de Isadora como se pudesse incendiar a qualquer momento. Aquelas fotos, as mesmas que Helena havia mostrado a Arthur, tinham sido tiradas por ele.
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