2. Memórias no quintal
No dia seguinte à notícia da partida de Helena, Arthur decidiu passar um tempo com seu avô, Antônio, no mar. Ele estava levemente triste, mas preferiu guardar a notícia para si por enquanto. Os dois embarcaram no pequeno barco de pesca da família Menezes, aproveitando o sol quente e o som das ondas quebrando na praia.
Antônio assumiu o leme, guiando a embarcação com a habilidade de um homem que passou a vida inteira no mar. O barco deslizava suavemente pela água, e Arthur sentia o vento em seu rosto enquanto observava os tons de azul do oceano se estenderem até o horizonte.
Enquanto navegavam, Antônio decidiu que era o momento perfeito para compartilhar com o neto o conhecimento adquirido ao longo dos anos como pescador. Eles ancoraram o barco em um local tranquilo, onde o mar era conhecido por ser generoso com os pescadores. Arthur, sentindo-se um pouco mais leve, estava ansioso para aprender com seu avô.
Antônio começou a discutir as sutilezas das correntes marinhas e como elas afetavam o comportamento dos peixes. Ele falou sobre como identificar áreas onde eles se reuniam, ajudando o neto a aprimorar suas habilidades de observação.
Em seguida, ele compartilhou suas experiências com diferentes métodos de pesca. mostrando a Arthur como usar redes de cerco, que envolviam os peixes e os prendiam, e como manusear redes de arrasto, que raspavam o fundo do mar para capturar animais marinhos.
— Onde o senhor aprendeu tudo isso?
— Eu aprendi muita coisa com o seu bisavô — Antônio respondeu, com um sorriso nostálgico.
— Meu bisavô era pescador?
— Digamos que sim.
— E como ele se chamava?
— Ele se chamava João, filho. Era o homem mais sábio que já conheci. E também tinha a minha mãe, Ana, uma mulher incrível.
— Me fale mais sobre eles, por favor. — pediu Arthur, com sua curiosidade aguçada.
— Bem... eles não eram meus pais biológicos — ele revelou, sua voz um pouco mais suave agora.
— Como assim?
— Eu fui adotado por essa família quando nasci... nunca conheci meus pais verdadeiros.
A melodia das ondas quebrando contra o barco, serviram de intervalo antes de ser interrompida por Arthur:
— Lidou bem com isso?
— Foi difícil se quer saber. Mas as coisas acontecem como tem que ser afinal. Eu aprendi que família não é só sobre o sangue. É sobre amor e compreensão. E seus bisavós... me deram tudo isso e muito mais.
Arthur arrepiou-se com o impacto da fala, sabendo o quão profundo era o que Antônio revelara.
— Obrigado, por me contar.
— Eu que agradeço, Arthur, por me fazer relembrar.
Eles compartilharam um momento de compreensão e proximidade, sentindo-se unidos não apenas por laços de sangue, mas pelas histórias e experiências que estavam sendo passadas de uma geração para outra.
O clima pesado que inicialmente os cercava mudou quando Antônio decidiu reviver algumas de suas experiências enquanto pescador.
— Uma vez, estávamos navegando, longe da vista da terra. Era um bom dia de trabalho e o barco estava carregado com a nossa carga. No entanto, na volta... tivemos um problema.
— Que tipo de problema?
— Um nevoeiro espesso, Arthur, desceu sobre nós, engoliu o barco e reduziu nossa visibilidade. Foi como se o mundo tivesse desaparecido.
Antônio fez uma pausa para tomar um gole de sua bebida antes de continuar:
— Nós nos dividimos em turnos para manter vigia, prestando atenção em qualquer sinal de mudança no clima ou na maré. Depois de horas navegando as cegas, finalmente ouvimos um sino de bóia. Seguimos o barulho e, aos poucos, o nevoeiro começou a levantar. Foi um alívio quando vimos a costa novamente.
— Vocês ficaram perdidos por horas?
— Sim, ficamos. Mas foi aí que a gente viu a importância de trabalhar em equipe. Cada um de nós tinha uma função e precisávamos confiar uns nos outros para tudo dar certo. E essa, meu jovem, é uma lição que o mar ensina para a gente de um jeito que nunca esquecemos.
Arthur podia apenas imaginar o pânico e a incerteza que devem ter permeado o barco naquele dia. O nevoeiro, a invisibilidade, a incerteza de não saber quando ou se a costa voltaria a ser vista... Deve ter sido assustador. E a necessidade de confiar uns nos outros, não só para alcançar um objetivo comum, mas para sobreviver. Esse conceito, embora simples na teoria, ganhou um peso todo novo quando lançado na dura realidade do mar aberto.
Com o fim daquela história, avô e neto se voltaram novamente para o mar. O barco já estava entrando numa área onde, com frequência, se avistavam golfinhos. A brisa do mar soprava suavemente, e o sol começava a se deitar no horizonte, criando uma cena quase de cartão postal. Arthur olhou para o avô com expectativa e entusiasmo, enquanto Antônio sorriu, ciente do que poderia acontecer a seguir.
De repente, uma sombra se moveu sob a superfície da água, e Arthur prendeu a respiração. Em um instante mágico, um grupo de golfinhos emergiu, saltando graciosamente ao lado do barco, como se convidassem Arthur e Antônio a se juntarem a eles em um momento de alegria e liberdade.
Os olhos de Arthur se arregalaram de admiração e surpresa, enquanto ele observava os golfinhos brincando e dançando em torno do barco. Antônio, que já havia vivenciado momentos como este várias vezes em sua vida, sentiu-se renovado pela alegria contagiante do neto.
Os golfinhos pareciam se comunicar entre si com uma série de cliques e assobios, como se estivessem compartilhando uma linguagem secreta. Eles mergulhavam e saltavam em uníssono, demonstrando uma habilidade extraordinária de sincronização e cooperação.
A interdependência entre os golfinhos ressoou profundamente em Arthur, que refletiu sobre a natureza efêmera da vida, como os golfinhos, que vivem suas vidas plenamente no presente, saltando e brincando juntos, sem se preocupar com o futuro incerto. Ele pensou em como as pessoas poderiam aprender com os golfinhos, abraçando a impermanência da vida e vivendo cada momento com alegria e presença.
Com o clima ficando levemente mais quente, Antônio decidiu levar Arthur a um lugar especial que ele conhecia, uma enseada escondida onde as águas eram calmas e cristalinas, e onde o tempo parecia desacelerar. Ele ajustou o leme e navegou habilmente o barco através das ondas, com Arthur ao seu lado, observando cada movimento do avô.
Após algum tempo navegando, eles chegaram à entrada da enseada, marcada por duas formações rochosas que se erguiam como sentinelas protegendo aquele tesouro escondido. Antônio diminuiu a velocidade do barco, e eles adentraram as águas tranquilas da enseada.
O cenário que se revelou diante de seus olhos era de tirar o fôlego. A enseada era cercada por falésias cobertas de vegetação, criando um santuário natural perfeito para a vida marinha. O sol se refletia nas águas cristalinas, criando padrões hipnóticos de luz e sombra na superfície.
Arthur olhou ao redor, maravilhado com a beleza do lugar. Ele nunca imaginara que um paraíso como esse pudesse existir tão perto de sua casa. Antônio observava o neto com um sorriso no rosto, feliz por compartilhar esse segredo com ele.
Eles ancoraram o barco e desceram para explorar a enseada. A areia era fina e branca, e as águas eram tão claras que podiam ver os peixes nadando em torno de seus pés. Arthur e Antônio caminharam pela praia, conversando e rindo juntos, enquanto o som das ondas suaves embalava suas palavras.
Em um determinado momento, Antônio levou Arthur até uma pequena caverna na base das falésias. Lá dentro, havia uma piscina natural formada por águas cristalinas e iluminada por raios de sol que se infiltravam por uma abertura na rocha. Arthur ficou maravilhado com a descoberta e mergulhou na água fresca, sentindo uma sensação de paz e serenidade que raramente experimentara.
Enquanto Arthur nadava, Antônio se sentou na beira da piscina, observando o neto com um olhar afetuoso. Arthur sabia que, em breve, teria de enfrentar a realidade da partida de Helena, mas naquele momento, ele estava protegido pela magia da enseada.
~-~⌛️~-~
Finalmente os dois retornaram para casa com os peixes que haviam pescado, animados para compartilhar o fruto de seu trabalho com a família no almoço. Ao se aproximarem da casa, notaram que havia alguém sentado na varanda. Para surpresa de Arthur, era Helena, que parecia um pouco nervosa.
Ao verem os dois chegando, Dona Maria e Seu José saíram da casa para recebê-los. Eles ajudaram Arthur e Antônio a carregar os peixes para a cozinha, onde Dona Maria iria os preparar para o almoço.
— Helena veio nos visitar — explicou Dona Maria, sorrindo. — Ela já nos contou que vai mudar de cidade. Nós a convidamos para ficar e almoçar conosco.
Antônio estava surpreso com a notícia enquanto Arthur olhava para Helena, que lhe lançou um olhar de desculpas e simpatia. Ele sentiu um aperto no coração, mas decidiu aproveitar o momento com ela e sua família, sabendo que em breve teriam de se despedir.
Dona Maria, com mãos habilidosas e carinhosas, preparava o almoço na cozinha, enquanto Arthur e Helena se dedicavam a arrumar a mesa no quintal. O espaço era iluminado por raios de sol que passavam pelas copas das árvores, criando uma atmosfera agradável e acolhedora. A sombra fresca de uma grande árvore tornava o local perfeito para a refeição em família.
Arthur e Helena trabalhavam juntos em harmonia, como se dançassem uma coreografia silenciosa e perfeitamente sincronizada. Enquanto um colocava os pratos, o outro organizava os talheres e copos. Ambos compartilhavam sorrisos e olhares cúmplices, sentindo a presença um do outro e aproveitando aquele momento simples, mas repleto de significado.
Ao redor do quintal, as plantas e flores cultivadas com carinho por Dona Maria exalavam um perfume suave e agradável, proporcionando um cenário colorido e encantador. O som dos pássaros e o farfalhar das folhas das árvores ao sabor do vento criavam uma trilha sonora serena e reconfortante.
A pouca distância dali, Antônio e Seu José, sentados confortavelmente em cadeiras de balanço, conversavam animadamente sobre os bons tempos de pesca e as histórias da cidade. O riso e a camaradagem entre pai e filho eram contagiantes, e mesmo sem perceber, Arthur e Helena acabavam sorrindo ao ouvir as anedotas e lembranças compartilhadas pelos mais velhos.
Conforme a mesa ia ganhando forma, Arthur e Helena trocavam olhares e sorrisos, sentindo-se gratos por aquele tempo juntos. A conexão entre eles parecia ainda mais forte naquele dia, como se soubessem que precisavam guardar cada detalhe e cada gesto na memória, antes que a distância os separasse.
Terminada a arrumação da mesa, Arthur e Helena se juntaram a Antônio e Seu José, formando um círculo de afeto e união.
— Uffa. Meu estômago já estava implorando por comida. — Arthur comentou olhando para a mesa arrumada.
— Sabe, eu realmente amo a simplicidade daqui. Vai ser difícil encontrar isso em outro lugar. — disse Helena.
— Pelo menos não vai se esquecer da gente tão rápido. — Antônio falou com um olhar gentil.
— Impossível... — ela olhou para todos que estavam na mesa. — Inclusive, meus pais estão organizando uma festa de despedida em nossa casa. queríamos muito que vocês viessem.
Arthur expressou surpresa. — Uma festa de despedida? Espero que não seja... deprimente.
— É claro que estaremos lá — disse Dona Maria desviando a atenção de Arthur enquanto colocava os pratos de peixes fritos sobre a mesa.
— Por favor. Quero levar comigo lembranças de vocês.
Arthur, olhando pensativo, comentou: — Não sei se estou pronto para isso. Não é fácil encontrar pessoas interessantes como você aqui na cidade.
Dona Maria, com um sorriso, respondeu: — Ah, mas eu sou interessante, não sou?
— Tirando você, mãe...
Antônio interveio: — E eu? Também sou!
Arthur riu: — Olha, todos vocês são interessantes, tá bom? — ele fez uma pausa, então adicionou com um tom mais sério: — Porém... sabe, é difícil pensar em Orla dos Ventos sem você, Helena. E também, esta cidade precisa de uma escritora, principalmente para escrever a minha biografia.
— Com todas as mensagens que temos eu realmente posso fazer uma.
— Sim. Mas você só colocaria as partes boas, não é?
— Do que você está com medo por a caso? — José questionou.
— Eu... de nada pai.
— Se você quer saber — começou Helena — para mim todas as partes são boas.
Um sorriso melancólico em forma de "U" surgiu nos lábios de Arthur ao ouvir aquilo, e isso o fez recordar o que estava sendo perdido, não teria como não sentir falta dela. A garota que com um olhar e uma réplica, tornava o constrangedor em algo extraordinariamente normal — uma química exclusiva deles. Sentado à mesa, ele refletia: essa normalidade, esse ritmo sincronizado, se dissiparia na ausência dela? Ele, uma pilha solitária de energia, sem sua contraparte para completar o circuito. A escritora aventureira que encontrou seu porto entre as páginas e os barcos, estava partindo para mares desconhecidos.
Mesmo com todos esses medos que desciam como os espinhos do peixe em sua garganta, o almoço prosseguiu com risadas e, após estarem satisfeitos, a voz de Sr. Antônio se expõe, para uma das cantigas que mais gostava de Orlando Silva:
"Tu és divina e graciosa
Estátua majestosa do amor
Por Deus esculturada
E formada com ardor..."
Seu José, o acompanha, e as vozes se harmonizam no ar da tarde:
"Da alma da mais linda flor
De mais ativo olor, que na vida é preferida pelo beija-flor..."
Depois de desfrutarem da memorável tarde no quintal dos Menezes, Helena presenteou Arthur com o "O Abismo dos Segredos", o livro que estava lendo. Ela se sentiu radiante por compartilhar com ele uma lembrança tangível que o faria recordar dela durante os momentos de separação.
Aquela tarde no quintal se tornou uma memória valiosa, gravada no coração de todos os presentes. Uma lembrança que mostrava como momentos simples e cotidianos podem se transformar em instantes inesquecíveis e profundos, que permanecem vivos mesmo diante das mudanças e desafios da vida.
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