19. A Noite em que o Fogo Contou Histórias
O tempo, Mendes percebera, era um mestre cruel. Não era medido por relógios ou pelo passar das estações, mas pelas cicatrizes da alma. Ele havia visto vidas surgirem, desaparecerem e se transformarem em um piscar de olhos, amores vieram como cometas brilhantes apenas para desaparecerem nas profundezas da escuridão. Em tempos de guerra e sofrimento, as horas pareciam se arrastar, e ainda assim, a vida parecia fugir como areia entre os dedos.
Sentado na cabana de palha, o tempo parecia ter parado. Isadora inclinou-se, colocando sua testa contra a de Aritana, como se tentasse sentir seus últimos pensamentos, sua última essência.
— Que Amana guie seu espírito através dos ventos e da terra, e o leve ao descanso merecido até seu recomeço — murmurou ela.
Levantando-se, seus olhos buscaram por algo próximo: um arco, esculpido com detalhes primorosos, repousando silenciosamente na escuridão da estrutura. Ela caminhou até ele, pegou-o com cuidado e firmou-o em suas mãos.
— Já parou para pensar, por que o destino junta almas, só para depois separá-las?
Mendes, ao ouvir a pergunta, abaixou a cabeça, os olhos perdidos nas sombras da construção, como se buscasse ali uma resposta que fizesse sentido.
— Eu queria ter uma resposta para isso. Mas a verdade é que... eu não sei.
Isadora se aproximou lentamente dele, em um sussurro disse:
— Talvez seja a crueldade do universo.
Então Mendes levantou a cabeça, olhando diretamente para aqueles olhos tristes, e algo lhe veio à mente.
— Mas talvez haja algo que permaneça... mesmo quando o destino decide ser cruel com a gente.
— E o que seria?
— As histórias. Cada vez que falamos de alguém, que contamos seus feitos ou seus sonhos, eles renascem.
— Palavras não trazem ninguém de volta. — Disse ela abrindo um cesto que Mendes não pode identificar o conteúdo.
— Teve um dia em que eu estava pescando com o meu avô e ele me contou sobre um nevoeiro que cobriu o seu barco, deixando ele e todo resto da equipe às cegas no mar.
— E o que você quer dizer com isso? Que o nevoeiro engole tudo? — Ela retirou de dentro do cesto uma aljava com flechas que passou envolta de seu corpo.
— Não! O que eu quero dizer é que, desde pequeno, eu sempre fui obcecado pelas histórias do meu avô. Ele me contava sobre todas essas aventuras e lendas, e as vezes, eu até mentia, dizendo que eu havia vivido tudo aquilo.
Isadora, intrigada, o observou, esperando que ele continuasse.
— O que eu não sabia, naquela época, era que aquela história do nevoeiro seria a última que ele me contaria. Por mais que ele não esteja mais aqui, eu guardo essa história, e todas as outras comigo. Talvez contar algo de Aritana também ajude.
Com o olhar fixo em Isadora, ele acenou, incentivando-a a começar.
— Eu tenho uma história. — Ela inspirou antes de dizer o que se lembrava. — Foi em uma noite, após o ritual do fogo, Aritana reuniu todas as crianças, e nos contou sobre a lenda do protetor das Estrelas.
Enquanto falava, Isadora começou a se mover lentamente para fora da cabana. Mendes, no mesmo ritmo, a seguiu, e juntos, começaram a adentrar a floresta, em direção a fumaça escura que subia.
— A lenda fala de um jovem guerreiro chamado Kaí, que tinha uma ligação especial com o céu. Ele acreditava que as estrelas eram as almas dos antigos, observando e protegendo as famílias. Uma noite, uma estrela cadente cruzou o céu, e inexplicavelmente, Kaí decidiu segui-la.
A fumaça se escondia no meio da vegetação enquanto andavam cada vez mais perto do perigo.
— Ele seguiu a estrela cadente por dias e noites, enfrentando desafios e perigos, até que chegou ao local onde ela havia caído. Ali, encontrou uma pedra brilhante, com uma luz suave. Ao tocá-la, ele foi transportado para o céu, onde foi recebido pelos espíritos dos antigos.
A lua não os deixava só e os vagalumes pontilhavam o caminho com sua luminosidade etérea. A fumaça, cada vez mais densa, sugeria que estavam se aproximando da aldeia.
— No céu, os espíritos disseram à Kaí que ele havia sido escolhido para ser o protetor das Estrelas, aquele que protegeria o elo entre os vivos e os antigos. Ele foi então enviado de volta à terra, carregando a pedra brilhante em seu peito, e desde então, sempre que alguém da família partia, Kaí guiava sua alma até as estrelas.
Quando Isadora terminou de falar. O brilho das primeiras estrelas era ofuscado pela visão do céu que parecia sangrar. Vermelhos e laranjas se misturavam em luzes ferozes que clareavam a noite. O crepitar das chamas formava uma sinfonia infernal com os gritos dos guerreiros e os lamentos dos feridos.
— Todos têm uma estrela para seguir — disse ela. — Vamos encontrar a nossa.
Mãos quentes puxavam seus rostos para a guerra. O calor intensificava-se enquanto o perigo se tornava iminente. Em direção ao abrigo de Aritana, Isadora tomou a dianteira.
Próximo a eles, um nativo pulou, sua lança mirando um adversário encoberto pela máscara de ébano. O impacto gerou um som oco. Mas quase de imediato, um novo Perpétuno surgiu, derrubando o guerreiro antes que ele pudesse sequer reagir.
Isadora, empunhando o arco, disparou uma flecha que encontrou seu alvo, fazendo-o cair. Mendes a olhou impressionado, mas não havia tempo para palavras.
A cada esquina, grupos de defensores, entre cadáveres, tentavam desesperadamente resistir aos avanços dos inimigos, enquanto outros tentavam evacuar os mais jovens e idosos.
— Lá! A cabana de Aritana! — Isadora exclamou, apontando para a moradia que ardia no coração da batalha.
A escuridão da noite cedeu à luminosidade das labaredas que devoravam as casas. Fitando o cenário devastado, uma orquestra de gritos desesperados se eleva.
Com o calor lambendo seus calcanhares, Isadora e Mendes correram em auxílio. Ainda a distância, puderam ver as peles iluminadas e suadas dos homens e mulheres da aldeia que formavam uma cadeia frenética, usando folhas e mantas na tentativa de sufocar o avanço do fogo.
Aproximando-se, chamaram a atenção de rostos pintados - marcas não apenas de tinta, mas também de terror pungente, seus corpos e suas lanças erguidas gotejavam sangue, tanto deles quanto dos que foram subjugados.
Gritos desesperados de uma mulher que chorava tentando se desvencilhar dos braços de outro indígena que a retinha com firmeza. Suas palavras eram urgentes e em língua desconhecida.
— O filho dela não escapou! — Isadora traduziu.
Mendes encarou a casa em brasa e os olhos desesperados da mãe, isso trouxe de volta memórias cruéis e amargas. A lâmina cortando, uma flecha voando e gritos sufocando. Era como uma dívida eterna. Se ele tentasse de novo falharia ou...
Isadora agarrou seu braço.
— Arthur, olha... não podemos fazer mais nada aqui.
Ele podia ouvi-la, mas as palavras pareciam vir de muito longe. Com o coração acelerado, os gritos da mulher e das memórias do passado convergiram em uma cacofonia ensurdecedora. E então, em um momento de hipnose, Mendes arrancou seu braço do aperto de Isadora e caminhou em linha reta.
— Para onde você vai!? — Mas ele não olhou para trás. Largou a sua arma no chão e começou a andar mais rápido. — Volta aqui Arthur!
Em alguns metros ele pode sentir o bafo quente o consumir por inteiro, e lá estava ele na entrada da cabana.
— Não entre aí! — Ela gritou mais uma vez.
Não respondendo aos chamados, ele cobriu aboca e o nariz com a roupa e se lançou para dentro, a fumaça densa fazendo seus olhos arderem e sua respiração ficar pesada. Embora o espaço não fosse grande, o ambiente estava caótico. O choro angustiado de uma mulher e os chamados de Isadora, que pareciam cada vez mais distantes, o acompanhavam a cada passo incerto que dava.
Ele tentava reconhecer algo, mas era tão difícil de ver quanto de respirar. Uma esteira trançada e almofadas de palha estavam espalhadas pelo chão. Ele se abaixou e revirou rapidamente, mas não encontrou nada.
Um leve murmúrio chamou sua atenção. Ao se aproximar, percebeu que vinha de trás de um amontoado de cestos caídos. E lá, protegido parcialmente da fumaça tóxica, estava um garoto, talvez uns seis anos de idade, quase inconsciente e envolta em um manto de fibras.
O calor era tão intenso que Mendes podia sentir a umidade da sua pele evaporando, e as pontas dos cabelos chamuscando. Tossindo fortemente, seus pulmões imploravam por ar fresco, mas a cabana estava impregnada de fumaça.
Colocando o garoto em seus braços, ele tentou refazer seus passos, buscando a saída. Mas a visão estava ficando mais turva e escura. Por um momento, ele vacilou, sentindo uma vertigem intensa. As chamas moviam-se, e a luz do fogo fazia a saída da cabana parecer distante e inatingível. A lembrança de todas aquelas vezes em que havia falhado, o assaltou. E ele temeu, pela primeira vez, que talvez não conseguisse sair dali.
Um clarão iluminou a entrada, mostrando a ele uma rota. Puxando forças de onde não sabia que tinha, ele correu em direção a luz, a visão embaçando a cada passo. O calor queimando sua pele.
O ar fresco. A brisa noturna acariciou seu rosto, limpando a sujeira e a fumaça de seus olhos. Mendes tropeçou para fora, protegendo o garoto, agora totalmente inconsciente em seus braços. Ele caiu de joelhos, ofegante, a sensação de alívio tremenda.
Isadora correu até ele, agachando-se ao seu lado. A mulher que gritava momentos antes aproximou-se, chorando ao ver seu filho nos braços do estranho.
— Ele está vivo? — Ela perguntou em desespero.
Isadora então verificou o pulso do menino, aliviada ao sentir o batimento cardíaco regular e firme.
— Ele vai ficar bem.
Mendes, ainda ofegante e lutando para manter a consciência, olhou para a mãe, com olhos lacrimejantes.
— Eu não... não podia deixá-lo lá.
Ela segurou firme o pequeno corpo do filho, enquanto lágrimas rolavam por seu rosto.
— Obrigada!
Isadora arrancou uma tira de tecido de sua própria vestimenta, e o passou na testa de Mendes, limpando o suor e o fuligem, questionando se ele havia ficado louco.
Por um breve momento, a tensão pareceu diminuir, a respiração ainda estava ofegante, e no campo periférico algo chamou sua atenção. Pela luz do fogo, distinguia-se a aproximação de um grupo indígena, com pinturas de guerra vivas e complexas. Quando chegaram mais perto, Mendes presumiu que estavam vindo para expressar gratidão. E antes que pudessem se dar conta, dois deles agarraram Isadora, imobilizando seus braços e pernas com firmeza.
— EI! E-ESPERA... — Ela se agitou, tentando soltar-se, mas a força deles era superior.
— O que estão fazendo!? — Gritou Mendes, avançando em direção a eles.
Mas, antes que pudesse chegar muito perto, um Wanakaua com uma pintura distinta de cruz em seu rosto surgiu, acertando um soco nele. O impacto foi tão forte que o detetive foi ao chão, estonteado e atordoado.
A mãe do garoto, em um desespero, começou a gritar palavras em sua língua nativa. As súplicas dela eram claras mesmo sem entender uma palavra. Outro indígena rapidamente se aproximou dela, murmurando algo que parecia ser uma repreensão, antes de agarrá-la e arrastá-la para longe da cena.
— Solta ela! — Mendes tosse tentando se levantar. — Estamos do mesmo lado.
O homem, cuja pintura formava uma cruz em seu rosto, falou em um tom decidido.
— Não lute mais! Vamos entregar Isadora.
Então a mesma respondeu rapidamente em outra língua, seu corpo tremendo de desespero. O homem a retrucou no mesmo idioma elevando a voz ainda mais. Sem compreender o que estava sendo dito. Mendes se esforçou para levantar-se, mas outros Wanakauas do grupo apareceram para imobilizarem-no.
— Não encostem nele! — Gritou Isadora enquanto indígena a olhava com pena.
— Me desculpe por isso, Isadora.
O homem gritou alguma coisa e os outros começam a tentar afastá-los um do outro:
— ESPERA! — Mendes clamou, estendendo a mão em direção a ela. — HE-ELENA!
Os olhos de Isadora brilhavam úmidos e vastos, enquanto ela resistia com todas as suas forças.
— ARTHUR...! — Ela chamou, competindo com o rugido das chamas.
Sob a pressão dos agressores e o os tiros a distância, Mendes notou, de relance, uma sombra deslocando-se entre as árvores. Parecia como uma aparição, um vulto imaterial. Os guerreiros, atentos, também perceberam um zunido cortante que rasgou o ar.
De repente, uma chuva de flechas surgiu do nada, atingindo o chão e as árvores, mas não os homens. O impacto fez com que eles parassem por um momento, olhando ao redor em busca dos atiradores ocultos.
Do breu da floresta, figuras emergiram rapidamente. Eram outros guerreiros cobertos de tinta. Liderando-os estava Kaimbe, com uma lança firmemente empunhada. Seu rosto pintado com cores escuras, transformando-o em uma figura assustadora sob a luz intermitente do fogo.
— Solte-os! — Ele ordenou, apontando a lança para os homens que ainda mantinham Mendes e Isadora presos.
Os combatentes opostos lançaram olhares desconfiados para Kaimbe e seus homens. O guerreiro com a pintura de cruz avançou um passo, olhando acusatoriamente para Kaimbe.
— Você prefere deixar nosso povo morrer ao invés de entregá-la?
Kaimbe encarou o homem sem desviar, a postura digna de um líder.
— Ninguém aqui vai ser negociado. Se seguirem por esse caminho se tornarão traidores.
— Traidores? — A voz dele tremeu de raiva. — Todos nós já perdemos demais. Muitos dos nossos já foram levados ou mortos!
— E se querem que todos tenham morrido em vão, continuem o que estão fazendo.
Os dois continuaram se encarando. A tensão era tão profunda que nem o fogo ou os gritos ao redor conseguiram rompê-lo. Ninguém ali parecia disposto a ceder. Mas antes que o indígena pudesse dizer algo, um estampido cortou o ar, seguido por um tiro. E então um buraco abruptamente se abriu bem no meio da cruz pintada em seu rosto, manchando-a com sangue.
Todos em choque, se viraram na direção do disparo e se depararam com vários Perpétunos que avançavam em formação cerrada. À frente, um deles, com a arma ainda fumegante em punho. A seu lado, outros brandiam suas armas e bestas, e um em especial carregava um lança-chamas rudimentar, pronto para ser usado.
Kaimbe rapidamente ordenou a seus lutadores que ficassem em formação. Isadora conseguiu se libertar dos guerreiros, e eles não a perseguiram quando a mesma correu em direção a Mendes que estava com a boca ferida.
— Você está bem? — Ela perguntou, tocando seu rosto.
Ele acenou, tentando limpar o sangue que escorria pelos lábios.
— Sim est... — Tossiu.
Kaimbe avançou com seus aliados. Os Perpétunos formaram uma linha defensiva com suas armas apontadas. Os Wanakauas, que anteriormente tinham se voltado contra Isadora, pareciam ter mudado de lado, agora correndo em direção aos invasores.
Os sons dos disparos eram intensos e ensurdecedores. Um combatente esquivou-se de uma bala e investiu com sua arma perfurando a túnica do oponente. Outro guerreiro, aproveitando o momento de hesitação, usou sua lança para desarmá-lo, mas foi atingido por um tiro de caçadora nas costas.
Kaimbe movimentava-se ágil pelo campo. Confrontando dois Perpétunos, manejou sua arma com destreza, desarmou um e feriu o outro na perna. Sem perder tempo, ele se lançou sobre o primeiro, eliminando-o.
Os arqueiros recuaram, amparados pela proteção dos guerreiros de lança, e rapidamente recarregaram seus arcos. Isadora, observando-os, fez o mesmo, sentindo a pressão da corda em seus dedos enquanto se preparava para disparar.
Em meio ao tumulto, Mendes avistou seu rifle caído a poucos passos. Correu para recuperá-lo e, em seguida, buscou uma posição segura para se posicionar. Um súbito estrondo abafado e um clarão laranja-avermelhado iluminaram o campo de batalha. O Perpétuno com o lança-chamas enviou jatos quentes na direção dos guerreiros.
Kaimbe sinalizou para um grupo de seus homens. Eles precisavam eliminar aquela ameaça o quanto antes. Os combatentes voltaram sua atenção para a arma de fogo, enquanto alguns inimigos conseguiram romper a linha de defesa e foram diretamente em direção aos arqueiros.
Os arcos, mortais à distância, perdiam sua eficácia em combate próximo. Muitos sacaram facas ou adagas, prontos para enfrentar quem se aproximasse. Isadora, percebendo o perigo, pegou uma flecha de sua aljava e a prendeu nas vestes por precaução.
Mendes, com seu rifle, havia tomado posição atrás de uma árvore caída, usando-a como cobertura. Ele mirou e disparou, eliminando um Perpétuno que se aproximava de Isadora. Ele então virou-se, mirando outro que ia de encontro com os arqueiros, impedindo mais um ataque.
Contudo, o portador do lança-chamas persistia como uma praga. Disparando jatos de fogo em todas as direções, forçando os guerreiros a recuar. Kaimbe tentou ir para cima dele. Com suor escorrendo pelo seu corpo pintado, e sua mão segurando a lança, ele tentou desviar do jato de fogo, enquanto fazia um movimento de investida na direção dele.
Dois Wanakauas pularam, tentando atingir o inimigo por trás. O Perpétuno, percebendo o ataque de flanco, tentou girar, enviando ondas de fogo na direção deles. Mas Kaimbe, aproveitando a distração, conseguiu se aproximar o suficiente para atingir o lança-chamas, desviando o jato e criando uma abertura.
Os guerreiros que atacavam por trás aproveitaram a oportunidade. Um deles usou sua lança para empurrar o homem, enquanto o outro habilmente deslizou por baixo, usando sua arma para desengatar o tanque de combustível dele.
Em um último esforço conjunto, Kaimbe saltou, usando toda sua força e peso para derrubá-lo. Os três guerreiros dominaram seu adversário, com o líder, Kaimbe, pressionando-o firmemente contra o solo, o rosto transmitindo uma mensagem clara: a floresta não seria conquistada tão facilmente.
Com o homem dragão contido, o perigo emergente vinha das sombras, onde os arqueiros se defendiam. Mendes os alvejou, buscando dar cobertura. Mas um grito de Isadora o distraiu. Notando uma ameaça à sua direita, virou-se e vendo a figura mascarada, ele tentou disparar, mas o som seco do gatilho indicava que seu rifle estava sem munição. Antes que pudesse reagir, o Perpétuno avançou tentando acertá-lo com uma adaga. Ele esquivou-se, mas ambos caíram no solo.
Ferozmente, o Perpétuno golpeava, e Mendes defendia-se desesperadamente, recebendo cortes ardentes pelo corpo. O agressor levantou sua mão mirando no rosto do detetive que fechou seus olhos.
Então, de repente, o inimigo gritou. E Mendes pode ver entre os cílios, ele arqueando as costas, e logo atrás, estava Isadora, que havia cravado sua flecha no invasor com as próprias mãos. Imediatamente, ele virou-se, atingindo-a com um soco que a atordoou fazendo-a cair com a cabeça no chão.
Em agonia, o Perpétuno retirou a ponta da flecha de suas costas, soltando um gemido de dor. Ele jogou a ponta no chão e se virou novamente para Mendes, que o recebe com uma coronhada forte de seu rifle no rosto. Grunhindo e recuando, a máscara sombria desliza, e por baixo dela se revela um rosto, alguém que Mendes não esperava encontrar.
— Iaraú? — Ele afastou-se com esforço.
O traidor estava machucado com seu rosto inchado e contundido, parecendo que foi brutalmente agredido.
— Está vendo o que as pessoas dessa aldeia maldita fizeram comigo...? Saiba que eu farei muito pior com você.
Com um grito, ele atacou novamente com a adaga. Mendes desviou, mas sentiu a lâmina roçar seu braço, deixando outro corte superficial. Em uma tentativa de ganhar algum espaço, ele tentou acertá-lo com um chute alto, mas acabou antecipando o movimento, e teve sua perna agarrada, e suas costas lançadas ao chão. Ele caiu em cima de uma pedra que o fez perder o folego.
Iaraú rapidamente se posicionou sobre o vulnerável Mendes, imobilizando-o. Com um olhar de raiva e desdém, ele cuspiu na direção dele.
— Acabou — sibilou Iaraú, apertando a adaga contra o pescoço de Mendes. — A aldeia vai queimar, assim como você.
Nesse momento, a cabana chamou por eles. A moradia estava quase totalmente consumida pelo fogo, lançando uma chuva de faíscas no céu noturno.
Mendes usando toda a força que lhe restava, empurrou o traidor para o lado, rolando rapidamente e tentando se levantar. No entanto, Iaraú foi mais rápido e agarrou Mendes pela roupa, levantando-o do chão como se fosse um boneco.
— Vou te mostrar o que é dor! — Prometeu ele, arrastando-o em direção à habitação em chamas. O calor era sufocante e o ar se enchia de fumaça, tornando difícil a respiração.
Ele resistia, mas com cada movimento, a casa incendiada se tornava mais próxima. Mendes começou a ficar fraco e com a visão embaçada pelo calor e pela fumaça. Finalmente ele estava erguido de costas para o fogo. Iaraú sorria com dentes amarelados e os olhos refletindo as chamas. Era quase um vislumbre de uma silhueta zombeteira, lembrando-lhe do cruel escárnio do diabo diante da fragilidade humana perante o fogo do inferno.
— As chamas vão te julgar!
Mas então, uma lança cortou o ar, atingindo o chão bem próximo a Iaraú, fazendo-o soltar Mendes e recuar. O detetive caiu, tossindo e engasgando, enquanto olhava para seu salvador.
Emergindo do véu espesso de fumaça, Kaimbe surgiu, fixando os olhos nos de Mendes. No entanto, rapidamente, seu rosto se voltou para Iaraú, intenso e carregado de emoções conflitantes.
— Você não deveria estar aqui! — gritou Kaimbe.
— Não vou mais me esconder! Se quer me punir, sabe o que fazer...
— Por que chegamos a isso? Você é do meu sangue.
Iaraú olhou para o irmão, revelando uma mistura de raiva, mágoa e uma pitada de tristeza. Mas o momento passou e sua expressão endureceu novamente.
— O sangue pode ser o mesmo, mas nossos caminhos não.
Com velocidade, Iaraú cerrou os dentes e avançou com sua adaga. No chão, Mendes se recuperava, enquanto Kaimbe começava a enfrentar o inimigo.
Kaimbe esquivou-se dos golpes de Iaraú e usando seus próprios punhos e pernas para contra-atacar. O reflexo das chamas que consumiam a cabana transformava a luta em um balé mortal.
Em um rápido movimento, Iaraú conseguiu acertar um golpe no braço de Kaimbe, fazendo-o cambalear, Iaraú o prendeu, pressionando a adaga contra seu pescoço. Com o fio da lâmina gelada contra sua pele, Kaimbe murmurou:
— É isso mesmo que você quer? — Iaraú travou seu punho. Os olhos piscando em hesitação. — Por favor...
Nesse exato momento, Mendes surgiu como uma sombra rápida por trás deles agarrando Iaraú em uma chave de braço, puxando-o para longe de Kaimbe e forçando-o a soltar a adaga.
Quando a lâmina caiu no chão, Mendes viu Isadora reaparecer. Sua testa coberta de sangue e seu rosto de pavor.
— CUIDADO! — Ela grita.
Kaimbe e Mendes, a olharam de relance e logo perceberam que estavam muito próximos do fogo. Iaraú se aproveitando, empurrou Mendes em direção à cabana em chamas. Ele desequilibrou-se e caiu com a mão sobre algumas brasas quentes, queimando-se. Ele soltou um grito de dor, mas a adrenalina o manteve focado.
O suor em seu rosto mesclava com suas lágrimas enquanto observava o cenário. Kaimbe lutava para manter um dos braços de Iaraú sob controle. Em desespero, o traidor estendeu a mão para roubar a lança do guerreiro, fincada na terra próxima. Quando a levantou, Mendes, movido por um impulso, agarrou o cabo do outro lado com sua mão ferida e pulsante. Ao fazê-lo, sentiu a textura de um pequeno objeto preso ali: um cavalinho de madeira.
Em um embate, Iaraú empurrou a lança em direção a Mendes, mas Kaimbe lutava para afastá-lo. Com sua visão já embaçada pela dor e calor, Mendes captou um movimento no canto de seu olho. Isadora, com uma postura firme, havia colocado uma flecha em seu arco, a ponta apontada precisamente para eles. A cena pareceu se desenrolar em câmera lenta.
— ISADORA, NÃO! — Kaimbe gritou em um aviso tardio.
Antes que qualquer um deles pudesse agir, a flecha foi solta. Ela cruzou a distância entre eles com uma velocidade letal, perfurando o peito de Iaraú. O impacto da flecha o fez perder o equilíbrio e, com um olhar de surpresa e dor, ele caiu nas chamas da cabana, sendo engolido pelo fogo.
Mendes, ofegante e ainda sob a influência da adrenalina, sentiu o peso da lança em sua mão, notando como ela tremia. Seus olhos encontraram os de Isadora. Lágrimas de alívio, culpa e tristeza marcavam seu rosto enquanto ela largava o arco no chão e ia em direção a eles.
Nesse instante, Mendes estendeu a lança para Kaimbe que ao invés de pegá-la, segurou seu braço ajudando-o a ficar de pé.
Isadora quando se aproximou, os puxou para longe do fogo que consumia tudo.
— Vocês estão bem? — Perguntou ela, vacilante.
Mendes assentiu lentamente, embora sua mão queimada indicasse o contrário. Kaimbe, ferido, manteve o olhar no local onde Iaraú pereceu.
— Eu vi nos olhos dele... ele não teria me matado.
— Sinto muito, Kaimbe — disse Isadora. — Não tive escolha
— Nenhum de nós teve — Mendes tossiu um pouco após falar.
Kaimbe virou o rosto, tentando ocultar as sorrateiras lágrimas, mas a dor em seu rosto era evidente. Isadora travou o olhar no pequeno cavalinho de madeira preso na lança que Mendes segurava. Sua curiosidade foi mais forte, e ela se aproximou para tocá-lo. Seus dedos deslizaram sobre a superfície áspera do objeto, e o reconhecimento atravessou o rosto.
— Você ainda tem esse brinquedo... — disse ela, virando-se para Kaimbe — Por que guardou?
Kaimbe, com o rosto sujo de lágrimas, poeira e luta, olhou para o cavalinho e depois para ela.
— É um lembrete... de tempos mais simples.
Enquanto se fitavam, compartilhavam também um momento profundo, um daqueles que dizem mais do que palavras poderiam expressar.
— Olha... eu não deveria ter te acusado daquela forma — ela admite. — Eu estava magoada e...
— E nós dois erramos — interrompeu Kaimbe.
Isadora soluçou de leve, movendo-se para mais perto dele.
— Eu sinto muito.
Ele segurou as mãos dela, antes de dizer:
— Vamos acabar com isso primeiro. Depois, temos muito o que conversar.
Sentindo o momento, Mendes se afastou discretamente, dando espaço para eles, enquanto se preparava para o que estava por vir. O fogo continuava a crepitar, e o céu noturno continuava repleto de estrelas. Ao longe, o grito de um pássaro cortou a noite, assobiando nas sombras, como se a própria natureza estivesse cantando para eles.
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