17. A Pedra, a Folha e o Cipó
Os sons da floresta pareciam respeitar a morte de Jacy-Paraná e do caçador Joaquim. Ao leste da aldeia, um terreno sagrado servia como o local de descanso final para aqueles que partiam deste mundo. O cervo sagrado foi gentilmente colocado em sua cova. E Joaquim, que foi injustamente acusado e cujo destino se entrelaçou com o do cervo, foi posto com igual reverência.
Oferendas foram dispostas ao redor dos corpos, e cânticos foram feitos, pedindo a passagem dos espíritos para o novo recomeço. Depois que a terra cobriu ambos os corpos, uma muda de árvore foi plantada exatamente entre as duas sepulturas. Essa árvore, ao crescer, serviria como um memorial com suas raízes conectadas aos que repousavam abaixo.
O dia seguinte chegou, e com ele veio uma força renovada. O sol elevou-se no céu, e a aldeia mergulhou de volta ao frenesi de atividade. As sombras alongadas das árvores e os reflexos dourados sobre elas mostram um ciclo de preparação que acompanhou a vida diária, seja com instruções ou rituais.
Mendes estava de pé apoiado em uma árvore observando tudo, quando Isadora se aproximou carregando algo cuidadosamente embrulhado em um pedaço de pano.
— Arthur!
Ele se virou com um rosto questionador.
— Oi... o que você tem aí?
Assim que chegou perto o suficiente, ela desenrolou o pano que escondia uma arma.
— É o rifle do Joaquim — murmurou ele, agora vendo melhor. — O que está fazendo com ele?
— Não sei o que fazer com isso na verdade. Aqui... nós não usamos essas armas.
— E pensou em deixá-lo comigo?
— Me passou pela cabeça, mas acho que não saberia como atirar.
— Bem... — Mendes esticou o braço na direção dela. — Não sou mais o mesmo Arthur que conhece.
Ela abaixou a cabeça encarando os dedos do rapaz, uma mecha do cabelo deslizou no movimento, e então, passou o rifle para ele.
— Certo, se acha que consegue usar, então é seu.
Recebendo o objeto, ele roçou o dedo no puma gravado em amuleto, imaginando o que Joaquim pensaria se o vesse usando sua arma? "Com certeza se enfureceria". Encostando a arma no solo, seus pensamentos foram tomados por um som, na verdade, um alvoroço entre as tendas.
— Kaimbe! Kaimbe!
Ambos se viraram. O grito vinha de Turi, que parou de correr, ofegante, próximo a um grupo de indígenas, a alguns metros de distância.
— Kaimbe e-ele... acordou!
Em menos de um segundo, Mendes notou Isadora se fazer surpresa, entreabrindo a boca como se fosse dizer algo, mas não saiu nada, tornou a fechá-la, e os pés que estavam presos como troncos, sentiram a terra, um após o outro, indo de encontro até onde a agitação levava. Vendo a reação, Mendes se apressou em acompanha-la.
Chegaram rápidos à tenda, com Isadora afastando as folhas da entrada, até o interior, e lá no centro daquela tapeçaria de sombras e luz, estava Kaimbe. A aparência de alguém que havia enfrentado uma guerra. No entanto, ao perceber a entrada deles, sua expressão mudou para um reconhecimento e uma centelha de vida.
Isadora, adaptando-se ao ambiente de pouca luz, se aproximou na intenção de abraça-lo, mas seu corpo recuou no último instante como se estivesse com medo de despedaçá-lo.
— Kaimbe, está... me ouvindo?
Ele piscou algumas vezes, vagando entre Isadora e a abertura onde algumas pessoas se aglomeravam.
— Estou ouvindo. — Ele desconcentrou-se dos chamados de seu povo ao fundo e o sussurro fugiu dos lábios da moça:
— Como se sente?
— Como um animal que por milagre não foi abatido.
As pessoas do lado de fora estavam falando ao mesmo tempo, todavia, para Mendes aquilo não chegava a ser um incomodo, ao contrário de Kaimbe que apertava os olhos.
— O que estão falando sobre mim?
— Que Jacy-Paraná doou a própria alma, protegendo o próximo líder dos Wanakauas.
— Não sou bicho raro para receber essa atenção do espírito da floresta.
— É raro, só não enxerga. — A mulher se aproximou mais do rosto dele como se pudesse lê-lo através dos olhos, e tal movimento fez com que Kaimbe olhasse para baixo. — Já sabe o que ouve nos últimos dias?
— Turi me contou.
A cabeça dela havia se inclinado um pouco antes de tocar o braço dele como uma pluma.
— Eu sinto muito.
Ele respondeu as desculpas num vocabulário que Mendes não pode acompanhar, mas que pelo tom, soava como um agradecimento.
— Eu estava perdida, e te ver assim... me dá um pouco mais de esperança.
— Só estou assim, porque estava em suas mãos.
A mão de Isadora deslizou pelo braço de Kaimbe e alcançou os dedos que se entrelaçaram. Mendes sentiu-se repentinamente desconfortável observando a simples ternura entre os dois. Se perguntou também se quem realmente atuava ali era Isadora, Helena, ou uma combinação complexa das duas personalidades.
De repente, Isadora amoleceu os dedos, escorregando-os para fora da mão de Kaimbe, que, com pouca força, tentou recuperá-la, mas a mão já ia em direção ao pé dele. Dando um leve empurrão, ela buscou o ponto em que ele se feriu fazendo uma cara melancólica:
— O que aconteceu? — Disse Kaimbe, percebendo a estranheza daquele rosto.
— Turi, ele... te contou o que Iaraú disse sobre meus pais?
— Sim, ele me disse que Iaraú estava lá. Eu não... sei como ele fez o que fez.
— Turi te falou algo mais?
— Não... por que quer saber? — Questionou ele.
— É que... — Ela inspirou o ar frio, como se estivesse com receio da próxima frase. — Iaraú disse que na noite em que meus pais morreram...você estava lá também.
O rosto de Kaimbe se contraiu. Ele não respondeu imediatamente, o que plantou a semente da suspeita.
— Isso é mentira, não é Kaimbe?
Ele pressionou um lábio no outro, e para a surpresa de Mendes, emitiu essas palavras, numa fraqueza incômoda:
— Eu não sei como... começar a explicar...
— Explicar? Por que você precisaria se explicar?
— Não sei se você... — fugiu dos olhos dela — iria entender.
— Então... é verdade?!
Os olhos voltaram a mirá-la. Ela estava à beira do colapso, desistindo da negação que estava escondida atrás da verdade de Kaimbe:
— É... si-im.
E de uma hora para outra, Isadora já não estava, apenas sua versão indignada, ela afastou-se rapidamente, como se tivesse sido fisicamente atingida por algo, ao mesmo tempo em que seu rosto se encheu de incredulidade.
— Não Kaimbe!... — Os olhos dela estavam alucinados, suas mãos tremiam de fúria.
— Não quis ter escondido nada de você. — Ele tentou se aproximar, estendendo as mãos em um movimento apaziguador.
— Não chega perto de mim! — Ela deu um passo para trás. — Todo esse tempo...
— Isadora!
— Não! Você estava lá quando meus pais morreram e não me disse nada!
— Por Amana, me deixe explicar! — Suplicou Kaimbe.
— Que Amana me afaste de suas desculpas. — Os olhos dela, cheios de lágrimas, miraram Kaimbe, e em um sussurro ela acrescentou: — Eu confiei em você!
Assim que ela esboçou o movimento para sair da tenda, a entrada foi sutilmente bloqueada por Turi, que com estranheza, perguntou o que estava acontecendo ali. Mas Isadora deu a volta por ele e atravessou a saída sem falar nada. Em reflexo, Mendes a chamou, seguindo-a para fora da cabana ainda segurando o rifle.
A moça andou por uma trilha adentrando a mata, durante os quais, Mendes a perdeu de vista algumas vezes. Na última vez que a encontrou, ela estava parada, contemplando algo em uma árvore. Aproximou-se com cautela, ele notou que seus olhos estavam fixos em um pingente.
— Helena!
— Eu preciso ficar sozinha!
Todavia, mesmo com o pedido, algo no jeito dela o fez permanecer, e em seguida, ousar dar passos, lentos em sua direção.
— Eu não posso te deixar sozinha.
— Por que não? Acha que não sei cuidar de mim?
— Não, não é isso... É só que... eu honestamente não sei mais voltar.
Embora ela tenha ameaçado sorrir, ainda estava virada para o objeto a frente, congelada em silêncio,
— O que está olhando? — Perguntou ele.
Sem mudar a posição dos olhos, Helena, ou melhor, Isadora, tocou o pingente.
— Kaimbe me ajudou a fazer isso.
— Ah é...? E o que é?
Isadora fechou os olhos, lembrando-se.
— A pedra... isso sou eu. Moldada pelo ambiente e pelo que enfrentei. A folha representa minha jornada. Assim como uma folha que cai de uma árvore e não sabe onde vai pousar. E o cipó... — Ela o apontou. — O cipó conecta tudo. Ele representa as experiências que vivi aqui, as amizades que fiz, o amor que encontrei.
— Isso é bonito... — Mendes murmurou — Talvez você devesse escutar o que ele tem a dizer.
Ela virou-se para ele com os olhos avermelhados.
— Como eu posso olhar para ele agora, sabendo disso?
— Ele poderia ter mentido para você agora. — Mendes argumentou, suavemente. — Por que não dar a ele a chance de explicar?
— Agora... agora eu sinto uma traição muito forte.
Mendes ficou observando o rosto dela. Não sabia exatamente o que dizer, mas pelo menos estava ali, esperando que o vento trouxesse o alívio que no momento não tinham, todavia, com o passar do tempo, percebeu que esse vento só trazia à tona as inquietações impossíveis de ignorar, e quando as repelia, sabia que era temporário, pois eram sopradas de volta para lhe afligir a mente.
Em angustia, tentou pedir mais de uma vez para Isadora que retornasse com ele, e a resposta era sempre uma negação. Cansado por sentir-se estagnado, não insistiu dessa vez, decidiu, por fim deixar Isadora em reflexão e permitir que seus pés o levassem a qualquer direção.
Ele tentou esvaziar a mente e por um instante desviar sua atenção para outra coisa. Fez uma caminhada relaxante apesar de não ter ido muito longe. Contava os passos só para retornar ao mesmo ponto. Seu andar era em linha reta, e sempre que voltava ao ponto inicial, flagrava Isadora sem vontade alguma de afastar-se daquele pingente.
Supôs que a mulher demoraria para sair de sua aflição, então, decidiu mudar de rota, para uma parte mais ampla daquela floresta, cujo sol ultrapassava as folhas e podia-se ver claramente o céu. O som dos pássaros era uma cantiga que havia aprendido a se acostumar. E quando chegou na clareira, se banhou com da luz que ela absorvia.
Enquanto se abastecia com o calor, avistou uma ave andando pela terra. Ele seguiu esse andar até o pássaro saltar em voo para o teto de uma casa de palha quase engolida pela natureza. A pequena construção lhe pegou de surpresa, provavelmente por estar tão distante da aldeia e ser menor do que as moradias de lá. Se perguntou o porquê de uma casa naquele lugar. Devia ter uma boa explicação — uma que Isadora talvez conhecesse, assim como o pingente que ela tanto olha.
O sol já aquecia de mais sua pele, o fazendo decidir retornar até Isadora, que inclusive estava parada no mesmo ponto onde a deixara. Mas, conforme aproximava-se, notava que dessa vez, havia algo diferente nela. Como se seus sentidos estivessem despertos para algo que ele ainda não percebera.
— Helena... Acabei de ver uma coisa, uma cabana.
A voz não pareceu alcançá-la. Seu corpo estava em alerta, os ombros rígidos e o olhar preso na linha das árvores. Ela parecia assustada, e ele não demorou para sentir o mesmo.
— O que foi? — Ele baixou o tom de voz. — O que está procurando?
Isadora continuou encarando as arvores com as sobrancelhas franzidas. Moveu um pouco os lábios para sussurrar:
— Ouça.
O sombrio grave da voz dela aguçou seus sentidos. Arrepiado, concentrou-se no silêncio, e no que havia além dele. Sutilmente, começou a notar um padrão sonoro distante e abafado, mas cada vez mais audível. Como se algo pesado pisasse o mato com força.
— Cavalos. — Ele deduziu.
— Cavalos. — Ela repetiu, dando alguns passos na retaguarda. — Você estava certo, é hora de voltarmos.
Afim de afastar-se do barulho, ela acelerou junto a ele pelo caminho contrário. E conforme as cavalgadas se tornavam mais altas, seus andares, sem perceber, transformavam-se em corrida. Borrões da mata se moviam pelo caminho. Seus corações batiam mais. Não tinham certeza se estavam sendo perseguidos, mas o medo os impulsionava a acelerar sem olhar para trás
A aldeia apareceu à vista. Mas a cena que se apresentava adiante não era reconfortante: Viram os moradores se agrupando, rostos crispados e ansiosos em direção à floresta, como se esperassem que algo ou alguém pulasse das sombras. Este "salto" foi na verdade a chegada repentina de Mendes e Isadora que quase foram surpreendidos por arqueiros a postos. Porém, os guerreiros esperaram, e esse reconhecimento os livrou do pior. Gritaram algo que Mendes não compreendeu, mas que fez Isadora puxá-lo até os outros moradores. O resto da aldeia ficou encarando a mata, antecipando o mal que poderia surgir daquela floresta.
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