16. Entrelaçados pelo Tempo
Com a luz do dia ainda tímida a arranhar o céu, Mendes encontrava-se à margem, os olhos fixos na imagem imóvel de Joaquim ao lado do cervo. O corpo sem vida do homem jazia como uma pétrea acusação à sua consciência. "Eu não pude fazer nada" - a frase se repetia em seu interior.
"E se alguém estivesse à sua espera... uma família, talvez?" As possibilidades amargavam ainda mais a tragédia. O rosto do detetive, cheio de tormento, desvendava o intrincado dilema em que se encontrava. Observando o símbolo ao lado do cervo, ele retirou sua câmera e ajustou o foco para fotografá-lo.
Enquanto isso, a aldeia fervilhava no ritmo de um iminente conflito - passos apressados, vozes tensas, um palpitar febril de preparação. Enquanto em seus pensamentos pairava a sombria presciência de que a batalha que se avizinhava traria mais vidas ceifadas. Joaquim, cuja trajetória fora alterada por Mendes, era apenas o primeiro a pagar o alto preço desse enredo. Uma dívida que lhe pesava, uma ferida que sangrava, um remorso que cobraria seu custo.
Nesse momento, ele ouviu seu nome sendo chamado, trazendo sua atenção de volta, mas não era o nome que todos ali conheciam.
— Arthur? — Isadora sussurrou, com uma nota de interrogação sutil no final.
— O-Olá Isa... — Ele tentou dizer sentindo um certo desconforto.
Ela mostrou os dentes em uma tentativa de sorrir, encolhendo os ombros com um leve constrangimento.
— Eu não sabia como chamar você antes de vir aqui — ela admitiu, evitando o olhar dele brevemente. — Era estranho, porque eu te conheço, mas ao mesmo tempo não.
— É eu... eu te entendo. Isso também é muito estranho para mim.
Ela respirou fundo, levantando a cabeça para encará-lo novamente.
— Eu acho que se apegar a um nome, ou a uma imagem que temos na cabeça talvez não seja o ideal agora. — Ela fez uma pausa, escolhendo cuidadosamente as palavras. — O garoto que eu conheci quase toda minha vida está aí, e não tem como não ver ele em você.
— Isso... isso é algo que a Helena diria.
Isadora sorriu tristemente, dando um passo e fechando a distância entre eles.
— Talvez eu esteja passando muito tempo com ela. Ou talvez eu seja ela mesmo.
Então, de maneira quase instintiva, eles se envolveram num abraço. Foi um gesto de conforto que os fez ignorar o contexto ao redor.
— É bom te ter aqui, Helena.
Ela o apertou um pouco mais forte. Quando se afastaram, Mendes notou o brilho nos olhos dela, junto com rastros de lágrimas descendo por suas bochechas.
— Eu... — Ele disse, piscando rapidamente. — Eu me lembro quando te disse que nada mudaria entre nós, mesmo à distância.
— Nós não tivemos essa conversa, eu acho...
Mendes fez um aceno que sim. — Foi no farol. Você não se lembra porque foi antes da ampulheta e antes de eu te convencer a ficar em Orla dos Ventos.
— Eu acho... que faz sentido. — Ela murmurou.
— Isso foi quando as coisas saíram do controle. — Disse ele com esforço, enquanto seus olhos desviavam para o corpo do caçador. — Eu queria que as coisas voltassem ao normal. Mas eu... não consigo consertar nada. Eu não consigo proteger ninguém.
Isadora observou o olhar dele embaçando. Depois, com um suspiro suave, começou a falar:
— Eu sei que não é a mesma coisa, mas, lembra daquele barco velho que meus pais sempre guardavam na garagem e já estavam pensando em jogar fora? — Perguntou ela. — Você passou a tarde inteirinha arrumando ele para nós. Usou todas aquelas ferramentas e materiais estranhos que você e seu pai guardam na oficina. E no fim da tarde você conseguiu dar um jeito de salvar aquele barco dos meus pais.
Isadora perfurou o olhar para o esconderijo onde se abrigava a alma do rapaz.
— Mas isso não te deu a responsabilidade de garantir que ele nunca mais iria afundar. Assim como não é sua responsabilidade garantir que ninguém mais se machuque.
— Mesmo que seja verdade, isso não diminui o fato de que algumas coisas aconteceram por minha causa.
— Algumas coisas podem acontecer por nossa causa. Mas quem atirou a flecha no caçador foi Iaraú, não você. Ele sempre teve algo contra nós, e ele estava sempre escondido, observando e causando problemas. Eu tenho certeza de que era ele andando pela floresta ontem, enquanto voltávamos para a aldeia. Por causa disso, Kaimbe foi mordido por uma cobra... e eu sei que na verdade, a verdadeira cobra sempre foi ele.
A expressão de Isadora tornou-se mais sombria.
— O que Iaraú disse sobre meus pais... isso foi cruel. Ele sabia que eu estava lutando com a verdade sobre eles e usou isso contra mim.
Congelada, ela vagou nas próprias reflexões de dor.
— A minha outra mãe... ela morreu na minha frente, Arthur. E o meu outro pai? Ele fugiu. Ele me deixou para morrer devendo dinheiro para outra pessoa. É como se em qualquer vida o meu propósito seja apenas sofrer essas coisas.
As lágrimas brotaram dos olhos enquanto encarava Mendes. Seu olhar expressivo com a dor de suas perdas, traição e o luto, eram de mais, e formavam uma tempestade emocional.
— Sinto muito pelo que passou — disse ele. — Mas agora estou aqui.
— Eu sei... isso até parece uma coisa que o Arthur diria.
Eles estavam envoltos em uma rede de suporte, uma necessidade de estar ali um pelo outro. Ambos se encaram brevemente sem saber o que dizer, até Isadora sugerir:
— Acho que deveríamos falar com Aritana. Ele poderia ajudar... não consigo pensar em uma ideia melhor agora.
Mendes gesticulou afirmativamente, se sentindo em dúvida quanto a viabilidade daquela conversa. As pessoas ao redor ainda estavam em constante movimento, o clima de preparação para o perigo estava no ar.
Eles partiram até Aritana, encontrando-o em meio a uma oração, cercado por um círculo de artefatos. Os dois esperaram que ele terminasse antes de se aproximar. Aritana abriu os olhos, e com um sinal de sua mão, os convidou a se juntarem a sua presença.
— Dia triste o de hoje. Já faz um tempo que não sinto a energia tão pesada. — Ele elevou o braço, sacudindo algumas plantas no contorno dos visitantes. — Estão precisando de ajuda?
— Sim! — Respondeu Isadora — Precisamos te contar algo.
Aritana se aproximou de um jarro para guardar as plantas, fazendo um pequeno aceno para que ela continuasse falando.
— O detetive e eu estamos com problemas. Como você sabe, a ampulheta que os Perpétunos desejam tem o poder de voltar no tempo.
— Claro. — Ele se voltou para eles.
— O que talvez não saiba é que... nós estamos com as memórias de outras pessoas que eram de outra época.
Aritana não moveu os músculos enquanto ela prosseguia:
— Não é uma vida passada. É uma vida no futuro. Nessa outra vida, Mendes e eu... nós tínhamos outros nomes. E ele era um Guardião do Tempo. Houve meio que um conflito com a gente, a ampulheta foi derrubada... nós... nós fomos esfaqueados. Enquanto estávamos morrendo... as memórias dessa vida se misturaram às nossas.
Aritana estreitava os olhos enquanto capitava as informações. — Parece confuso... não sei se entendi muito bem.
— Eu sei que é difícil de entender — disse Mendes. —, mas meio que íamos morrer, e a ampulheta nos tirou de lá. E nos trouxe para essa época com outros corpos.
— Isso é curioso e... inacreditável. — Aritana murmurou, ponderando a informação.
— Nós sabemos. Por isso queríamos a sua ajuda, para tentar entender melhor sobre isso que está acontecendo — disse Isadora.
— Bem, o que eu posso dizer é que essa ampulheta parece desafiar as leis sagradas da Árvore de Amana.
Mendes balançou a cabeça, confuso.
— Perdão, como disse?
— Ah sim, me desculpe detetive. Essa árvore é um elemento fundamental da nossa crença. — Aritana os fitou sabiamente. — Cada ser vivo é visto como uma folha nesta grande árvore cósmica. Nascemos dela, crescemos e florescemos, e quando chegamos ao fim de nossas vidas, caímos e voltamos para a terra para nutrir a Árvore novamente. Ela representa a interconexão da vida e o ciclo eterno de renascimento. Acreditamos que nossas vidas são cíclicas, que renascemos inúmeras vezes, cada uma como uma nova folha na Árvore.
Aritana fez uma pausa e, com um gesto lento e reverente, guiou os olhares de Mendes e Isadora para uma antiga escultura de madeira posicionada com destaque sobre um pedestal baixo, no centro do ambiente, a luz suave que penetrava pela palha da cobertura realçando os detalhes de uma árvore, meticulosamente esculpida com seus ramos entrelaçados repletos de folhas.
— Assim, quando morremos, não é o fim, mas apenas uma transição. Nosso espírito deixa nossa folha e retorna ao tronco da Árvore, onde descansa e se prepara para a próxima vida, a próxima folha. Isso também nos lembra que todos nós somos parte de algo maior, que cada um de nós é apenas uma folha em uma árvore imensa.
— E o que a ampulheta tem a ver com isso? — Perguntou Mendes, tentando conectar os pontos.
— Toda essa história de viagem no tempo é algo que nunca ouvi falar antes da família de Isadora aparecer. Mas se a alma de um guardião, como vocês dizem, pode viajar para o passado tornando-o mais jovem, então não seria impossível voltar além da própria vida. Porém, isso é algo que nossa crença não aborda especificamente, pois sempre se presumiu que a alma seguiria em frente, não para trás.
Mendes concordou, pensativo.
— Mas a situação de vocês deve ser uma raridade. — Continuou Aritana. — Mendes, você era o Guardião do Tempo naquela época, não era? E mesmo assim já conhecia Isadora, que é a Guardiã do Tempo atual. Vocês estavam morrendo e ampulheta funcionando, e isso, com certeza, deve ter tido algum efeito. Talvez, de alguma forma, a conexão de vocês com o tempo e as coincidências tenham criado esse efeito único. Talvez por isso vocês tenham sido puxados juntos de volta para essa vida, para essas memórias...
Ele parou, encarando-os.
— Mas estas são apenas teorias, é claro. Vocês devem estar pensando em como resolver isso agora.
— É, temos que mandar nossas consciências de volta para os corpos certos. — Mendes olhou para Isadora.
— Sem a ampulheta, eu não sei como poderíamos fazer isso. — Ela pareceu preocupada. — Nem meu pai sabia onde ela estava.
— Como assim ele não sabia?
Isadora balançou a cabeça.
— No presente, só existem três gerações de guardiões ainda vivos. A minha, a do próprio líder dos Perpétunos e...
— A minha. — Mendes completou, pensando sobre isso. — A ampulheta está na minha família...
— Bom, desejo a vocês boa sorte em sua jornada, — disse Aritana, com um tom sério. — Mas agora, devo me juntar àqueles que perderam suas vidas hoje antes que sejam colocados para descansar.
Aritana se despediu dos inquietos visitantes, os acompanhando para fora da habitação. O ar, ali fora, parecia correr com o vento, subindo e descendo em cadências rítmicas, um coro de vozes humanas que se misturava aos sons da floresta.
Mendes avistou uma criança que corria despreocupada, seu rosto irradiando a pura inocência. Em sua mão, um pássaro, cujas penas eram belas e coloridas. A ave se acomodava nas mãos dela sem medo algum.
— O que é tudo isso? — Perguntou ele, olhando ao redor.
— Estão se preparando para o pior.
— Seria alguma forma de ritual? — Mendes viu uma mulher segurando cuidadosamente outro pássaro.
— Na verdade, é bem mais do que isso.
Mendes hipnotizou-se na cena ao tentar compreender o contexto. Todavia, ao desviar para a moça ao lado, lembrou-se de uma resposta passada que não obtivera dela.
— É por causa dessa seita que vocês não estão podendo sair da aldeia?
— Sim... e talvez, se eu não estivesse aqui nada disso estaria acontecendo.
— Isso não é culpa sua.
Ela balançou a cabeça lentamente.
— Obrigado, Arthur, mas ainda assim sinto que preciso ajudá-los, mesmo com os riscos.
— Mas, e a ampulheta?
— Os Perpétunos estão matando os guardiões por causa dela. Então, pode ser que a melhor opção seja ficar e acabar com isso. Imagina o que pode acontecer se eles encontrarem seus parentes?
— Eu poderia ser... apagado?
— Exatamente, e como não temos ideia de onde eles estão, talvez o melhor seja ficar.
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