14. Isadora de Castilho parte 2
~-~Especial~-~
==================
No dia do aniversário de Isadora, quando completava seus treze anos, ela se encontrava na margem do rio que cruzava a aldeia indígena. Mais um ano se passara desde sua chegada ali, no entanto, mesmo com o passar do tempo, ainda sentia-se como uma estranha em terra estrangeira, se ajustando com a língua, as tradições e aos costumes da comunidade.
Apesar do dia significativo, não havia comemoração. Seus pais eram simpáticos e amigáveis, mas mesmo assim sentia falta dos eventos festivos que faziam em casa. O único plano para seu dia era uma visita ao rio - um lugar onde ela encontrava paz e podia refletir.
O rio era uma parte importante da vida dos habitantes. Era onde eles buscavam água, pescavam e se banhavam. A corrente forte era desafiadora e Isadora tinha conseguido lidar com ela. Mas não por muito tempo. Como uma presa que foi surpreendida pelo caçador, ela entrou em pânico quando sentiu um forte empurrão em suas costas. Seu coração disparou, e em uma fração de segundo, a terra sólida sob seus pés desapareceu.
As águas frias e revoltas engoliram-na, tirando-lhe o fôlego. Ela tentou lutar contra a correnteza, seus braços e pernas se debatendo freneticamente em uma tentativa desesperada de encontrar a superfície. Mas era em vão, a menina não sabia nadar. A água enchia seus pulmões, a escuridão invadia sua visão, e ela estava se afogando.
Justamente quando suas forças começaram a falhar, algo forte e seguro a agarrou, interrompendo seu afundamento constante. E de repente, a luz do dia invadiu sua visão. Finalmente, ao alcançar a margem, a figura se tornou clara. Era o filho de Ahote, cuja destreza provou ser a diferença entre a vida e a morte. Ele a puxou para fora do alcance do rio traiçoeiro, as águas agitadas se acalmando atrás deles, como se o próprio rio reconhecesse a derrota.
— Você está bem? — Perguntou o jovem Kaimbe, que havia ficado um pouco mais alto desde a primeira vez que o viu.
Isadora concordou, ainda tentando recuperar o fôlego. O garoto, então, se voltou para um grupo de jovens que se aproximavam, carregando medo e culpa dos rostos, como se não esperassem que as coisas saíssem do controle daquela forma.
Entre eles, o semblante travesso de Iaraú se destacou. Seu crescimento foi caracterizado por suas atitudes impulsivas e despreocupadas. E aquele incidente não era surpresa para Kaimbe que conhecia bem sua natureza notória.
— O que pensavam que estavam fazendo? Quase mataram ela! — Ele balançou os braços. — Iaraú! Eu poderia contar para nossa mãe.
Kaimbe encarou-os severo, esperando uma resposta.
— Foi só uma brincadeira, irmão. Ela precisa se acostumar se quiser ficar aqui.
Kaimbe se levantou, encarando-o de frente. — Você ficou maluco? Colocaram a vida dela em risco.
— Ah, então você encontrou uma forasteira para proteger? — Provocou, empurrando Kaimbe.
Kaimbe, porém, estava pronto. Ele voltou do empurrão e revidou com um golpe rápido que o derrubou na mesma hora. O garoto então colocou os braços no chão para se levantar, o rosto rubro de raiva e vergonha.
Os outros apenas observaram a cena, petrificados, enquanto Iaraú, com a dignidade abalada, se erguia e partia dali.
— Você vai me pagar, Kaimbe — ameaçou ele, enraivecido. — Isso não vai ficar assim.
Kaimbe, manteve o olhar travado enquanto o via se distanciar. — Quando quiser, covarde!
Assim que ele saiu, os demais garotos trocaram olhares antes de decidirem acompanhar Iaraú, deixando para trás breves palavras de desculpas para Isadora e Kaimbe.
Assim que eles desapareceram de vista, Kaimbe se voltou para Isadora. Ele a observou brevemente, antes de falar com seriedade:
— Desculpa, eles não deviam ter feito isso.
— Obrigado, eu... eu só preciso de um tempo — disse ela, se levantando. A surpresa de quase ter se afogado havia se transformado em uma mistura de gratidão e raiva. Gratidão por Kaimbe ter estado ali para salvá-la, e raiva por ter sido vítima dessa brincadeira perigosa. — Não era assim que eu queria passar meu aniversário.
— Aniversário?
Isadora olhou para ele, surpresa. — Você não sabe o que é aniversário?
Kaimbe balança a cabeça que não.
— É quando comemoramos o dia em que nascemos. Hoje, eu completo treze anos.
Kaimbe pareceu pensar, e então seu rosto se iluminou. — Então, é como o nosso Awà Tuksi?
— O que é um Awà Tuksi? — Perguntou ela, repetindo as palavras estranhas.
— É o que chamamos de "o dia em que celebramos a nós mesmos". Costumamos passar o dia na natureza, criamos um objeto ou símbolo para representar a nossa jornada. Usamos materiais que encontramos na floresta e colocamos em um lugar que tenha significado para nós. Isso serve para que não nos esqueçamos da nossa importância no ciclo da vida.
— Isso parece interessante. Na verdade, é muito diferente do que fazemos fora daqui. Antes de vir para cá, celebrávamos com bolo, presentes, música e amigos. Sinto falta dessas coisas.
Ele se calou rapidamente antes de uma ideia atingi-lo. — E se fizéssemos isso hoje? Poderíamos criar um símbolo do seu aniversário... ou devo dizer, seu Awà Tuksi.
A surpresa inicial de Isadora deu lugar a um sorriso tímido. — Isso parece uma boa ideia. Eu acho... acho que gostaria sim.
Kaimbe ficou visivelmente satisfeito com a resposta dela, e seu rosto se iluminou ainda mais quando ela se aproximou para lhe dar um beijo na bochecha em agradecimento.
— Bem... vamos então. — Disse ele, iniciando o caminho meio envergonhado.
Eles partiram, deixando a margem do rio e os vestígios do incidente anterior. O sol estava alto no céu, lançando raios de luzes sobre a floresta tropical. A brisa agitava as folhas das árvores, criando uma melodia suave que harmonizava com o canto dos pássaros.
A caminhada os levou por uma trilha pouco batida, passando por árvores majestosas e plantas de todas as cores. Depois de algum tempo, chegaram a um lugar que Kaimbe considerava especial: uma clareira escondida, rodeada por árvores enormes e coberta por uma mistura de grama e flores silvestres. No centro, havia uma pedra grande e lisa, perfeita para se sentar.
Ele se agachou e começou a vasculhar os arredores em busca de materiais para a tarefa que tinham pela frente. Isadora o observava, sua atenção dividida entre o trabalho do garoto e a beleza da clareira.
Depois de um tempo, Kaimbe retornou com um monte de materiais naturais. Ele se sentou na pedra, organizando os itens em uma disposição metódica.
— Agora, você escolhe. — Ele disse, olhando para ela. — Escolha o que mais te chama a atenção. O que mais te representa.
Pensativa, Isadora começou a pegar os itens um por um, examinando cada um deles antes de fazer uma escolha. Por fim, ela pegou uma bela pedra, lisa e polida, uma folha em formato de coração e um cipó resistente.
Kaimbe sorriu quando ela mostrou suas escolhas, balançando a cabeça em aprovação. — Agora, vamos fazer seu símbolo.
Juntos, eles trabalharam na criação do objeto. Kaimbe ensinou a garota como amarrar o cipó ao redor da pedra e da folha, formando um lindo pingente. Era um trabalho meticuloso, mas no final, o símbolo que criaram foi simples e significativo. Isadora segurou o pingente em sua mão, sentindo- o na pele.
Kaimbe se levantou, estendendo a mão para Isadora. — Agora precisamos encontrar um lugar que signifique algo para você, para colocar isso.
Isadora refletiu. Então com um sorriso, ela apontou para uma árvore que estava na trilha de onde eles vieram. — Pode ser ali mesmo. — Sugeriu ela.
Kaimbe olhou para a árvore indicada e depois para Isadora. — Por que naquele lugar?
Isadora sorriu, com uma expressão pensativa. — Para eu me lembrar daqui e de hoje.
Kaimbe também sorriu para ela de volta, e juntos, eles caminharam até a árvore na trilha. Com a ajuda dele, Isadora pendurou o pingente em um dos galhos baixos. Eles deram um passo atrás, observando a maneira como o pingente se destacava contra a textura da casca da árvore. Isadora sentiu uma sensação de satisfação. Ela havia deixado sua marca naquele lugar, um lembrete de sua jornada.
Então o tempo passou como um sonho. Os anos se sucederam e Isadora e Kaimbe se tornaram seres constantes na floresta, explorando, aprendendo e crescendo juntos. Eles eram pequenos quando tudo começou, mas o tempo moldou-os no decorrer da adolescência, e apesar das mudanças, o seu afeto um pelo outro só foi se intensificando.
Ao mesmo tempo, a aldeia continuava a evoluir. Wai'ana foi nomeada líder dos Wanakauas, uma cerimônia grandiosa definiu uma nova fase. A mãe de Isadora, Amanda, assumiu a tarefa de educar os jovens indígenas. Sem condições de ir à escola, as crianças dependiam dela para aprender certas habilidades. Geralmente, ela trabalhava junto com Aritana, um sábio e respeitado ancião, conhecido por suas histórias sobre as tradições e o mundo espiritual. Além disso, Amanda desempenhava atividades de artesanato, aprendendo a usar os materiais da floresta para criar belas peças de arte.
Isadora estava entre os alunos, aprendendo com eles, mas também com seu pai. Ele, sendo médico, tinha uma riqueza de conhecimento para compartilhar. Ensinar Isadora sobre medicina se tornou uma espécie de ritual entre eles, algo que a jovem passou a amar com o passar do tempo.
Durante esses anos, a garota tornou-se uma espécie de ponte entre os mundos indígena e não-indígena, enraizada em ambos, mas pertencente a nenhum. E ainda assim, encontrou em Kaimbe um refúgio.
— Por que não criamos um lugar nosso? — Sugeriu ele em um dia ensolarado.
— No que você está pensando Kaimbe?
— Em uma casa de palha, dentro da clareira, o que acha?
Com um sorriso tímido, ela indagou. — Por que você quer construir algo lá?
— E por que não? Aquele lugar já é nosso. Poderíamos fugir um pouco dos outros e passar mais tempo juntos.
— Eu gosto da ideia, mas... e se alguém descobrir?
— Se alguém descobrir, eu não vou me importar.
— É... mas eu vou. Ainda mais se for te causar problemas ou para os meus pais.
Ele a mirou, triste, mas compreensivo. — Tudo bem... eu só... só queria um lugar onde pudéssemos ser nós mesmos.
— Kaimbe... Eu sei o que quer fazer.
Ele apenas esperou, o olhar fixado nela.
— Talvez, se formos cuidadosos, possamos construir algo lá. Em segredo, usando apenas nas horas em que ninguém estiver por perto.
Kaimbe sorriu, emocionado. — Olha... Será nosso lugar, e ninguém precisa saber.
A partir daquele momento, os dois se empenharam na realização do abrigo. No silêncio das madrugadas, carregavam palha e galhos, desenhando o contorno da casa. Cada um desempenhava um papel: enquanto Kaimbe moldava a estrutura com os galhos, Isadora entrelaçava os cipós, fortificando as partes da construção.
Já haviam se passado semanas, entre risadas e pequenas discussões sobre a melhor forma de posicionamento da entrada ou a disposição interna, a cabana foi se erguendo. Em alguns momentos, foram surpreendidos por chuvas inesperadas, o que os levou a se abrigarem juntos sob a construção ainda incompleta.
Com o tempo, a estrutura começou a tomar forma, revelando a beleza de sua simplicidade. Uma entrada ampla, paredes fortes de palha e um chão coberto por folhas secas.
E então, em uma manhã fresca, depois de semanas de trabalho duro, eles se encontraram diante de sua obra concluída. A cabana estava lá, esbelta, em meio à clareira. Kaimbe a puxou para seus abraços.
— Tá vendo isso? — ele disse, sorrindo. — A cabana é nossa.
— Sim, eu jamais imaginei que teria uma cabana de palha antes dos trinta.
— Trinta? — Ele repetiu. — Se os pássaros precisassem esperar até uma certa idade para fazer seus ninhos, o céu ficaria muito silencioso, não acha?
Isadora não pôde evitar sorrir enquanto olhava para ele — Então, eu sou um pássaro atrasado?
— Não atrasado, apenas esperando o momento certo — disse ele, refletindo. — E veja, agora o ninho está pronto, e você não precisou esperar os trinta.
Isadora expressou um olhar revelador. — É estranho... quando estou com você, é como se eu sempre tivesse pertencido a este... lugar.
— E como você se sente... longe de tudo o que conhecia?
— Hoje, eu acho que me sinto... livre — ela confessou com uma sinceridade que surpreendeu até ela mesma. — Com você, tudo parece... mais simples.
— A floresta é assim — ele concordou. — Ela tira o peso dos nossos ombros... nos ensina a viver.
Isadora se inclinou para frente. — E o que a floresta está te ensinando agora?
Ele pensou rapidamente, observando-a com intensidade. — Que algumas coisas na vida valem a pena ser ousadas.
Eles ficaram de frente um para o outro de uma forma que Isadora podia sentir o calor do corpo dele e o cheiro de terra e folhas que sempre parecia acompanhá-lo.
— E... o que mais? — Ela quase sussurrou.
— A floresta também ensina que precisamos estar prontos...
— Para que?
Kaimbe fechou os punhos — para lutar, caçar... atirar!
Isadora franziu a testa, confusa com a mudança repentina. — O que...?
Antes que pudesse formular uma resposta, Kaimbe virou-se subitamente e correu para a cabana. Ela o seguiu, curiosa, enquanto ele desaparecia na estrutura de palha.
— Atirar? — Ela repetiu, ainda tentando acompanhar seu ritmo.
Quase imediatamente, ele estava de volta, um sorriso nos lábios e um arco simples em mãos, acompanhado por um conjunto de flechas. O coração de Isadora saltou, não de desapontamento, mas de uma súbita e empolgante surpresa.
— Você me fez pensar que...
— Que íamos apenas construir uma cabana? — Disse Kaimbe, entregando o arco a ela. — Tem mais coisas que quero te mostrar.
Ela aceitou o arco, sentindo a madeira lisa na pele.
— Mas eu nunca atirei com um arco antes.
— Então hoje é um dia de primeiras vezes — disse Kaimbe, aproximando-se para ajustar a postura de Isadora. — Segure assim... Boa. Agora, coloque a flecha aqui...
Ela seguiu suas instruções, a proximidade dele trazendo de volta um pouco do calor que haviam compartilhado momentos antes. Seu hálito roçou o lóbulo de sua orelha enquanto ele falava, mandando arrepios pela espinha dela.
— Mire naquela árvore, bem ali. Não pense muito. Apenas sinta. — A voz dele era baixa e ao mesmo tempo encorajadora.
Isadora focou no alvo, a árvore a alguns metros de distância parecendo de repente tão distante quanto uma montanha.
— Quando estiver pronta, solte.
Suspirando com calma, ela soltou a corda. A flecha voou, menos graciosa do que ela imaginava, mas atingiu o tronco da árvore. Não no centro, mas não tão distante quanto ela temia.
— Olha só! — Exclamou ele com um entusiasmo genuíno. — Nem todo mundo acerta na primeira vez.
— Acho que a floresta está começando a gostar de mim — disse ela, devolvendo o arco para ele.
— Não é a única.
A proximidade deles trouxe um conforto estranho, um calor que parecia isolá-los do mundo além da clareira. Mas na quietude da floresta, as sombras de uma realidade não tão distante começavam a se insinuar em seu refúgio.
Em uma tarde apaixonante próximos a cabana, o destino deles se enredou. Iaraú, cuja presença era tão silenciosa quanto um suspiro, testemunhou o que não fora destinado a olhos estranhos. Com a discrição de uma silhueta, ele recuou, levando consigo um segredo que logo se desdobraria em murmúrios pela aldeia.
A notícia do envolvimento da forasteira, com o futuro líder, semeou uma discórdia sutil entre as cabanas. Alguns Wanakauas, ancorados na tradição, expunham suas inquietudes com olhares céticos. Kaimbe ignorou os murmurinhos e as pressões, mas a situação afetou profundamente Isadora.
Seu pai, preocupado, a chamou para uma conversa. Ele revelou o verdadeiro motivo deles estarem ali, e a importância da segurança dos indígenas para eles. Assim Daniel lhe entregou uma folha com um texto, assinado com o nome dela, "Isadora de Castilho". Uma mensagem que dizia tudo que ainda não desconfiava.
Porém Isadora não conteve o segredo, e o revelou a Kaimbe, que inicialmente não acreditou. Ele discutiu com sua mãe sobre o assunto, mas sem sucesso. E como uma semente levada pelo vento, o segredo sussurrado entre eles não tardou a se espalhar. Logo todos estavam cientes do motivo real da presença da família ali.
Com tudo revelado, um clima de medo e desconfiança impregnou-se na comunidade. Os laços que uniam Isadora e Kaimbe pareciam estar sob constante ameaça. A jovem, ao perceber a dimensão do problema que havia causado, teve uma discussão acalorada com o pai.
Ela se sentiu traída e culpada. Traída, pois acreditou que o segredo de seu pai colocara em risco sua relação com Kaimbe. Culpada, pois via agora que sua atitude impulsiva em contar o segredo para ele havia colocado em risco o bem-estar de sua família.
Kaimbe e Isadora, ainda que muito apaixonados, viram-se forçados a se afastar um do outro. A separação foi difícil, ambos sentiam como se tivessem perdido parte de si mesmos. Mas, contrariados, eles sabiam que era necessário para manter a paz na aldeia.
E após separação, Kaimbe se transformou. O jovem alegre e curioso de antes deu lugar a uma postura mais séria e fechada. Ele passou a se concentrar exclusivamente em seu papel na aldeia, determinado a herdar o legado de seus pais. A floresta não era mais um lugar de aventura e exploração ao lado de Isadora, tornou-se agora um lugar de solenidade e trabalho.
Mas assim como ele, a garota também passou por mudanças. Ela mergulhou nos ensinamentos de seu pai, dedicando-se à medicina com uma intensidade que antes não possuía. Aquela menina de olhar sonhador de anos antes, amadureceu em uma mulher forte e respeitada. Mesmo em meio à tensão e ao medo que a presença de seu segredo causava na aldeia, Isadora se esforçava para fazer a diferença, usando seus conhecimentos para ajudar aqueles que a acolheram.
Com o passar do tempo, a ferida da separação não cicatrizou, mas Kaimbe e Isadora aprenderam a viver com ela. Cada um à sua maneira, eles se esforçavam para cumprir seus respectivos legados e, mesmo distantes, mantinham o respeito e o carinho que sempre tiveram um pelo outro.
De volta ao presente, Isadora sentiu uma lágrima rolar por sua bochecha. Ela limpou rapidamente, olhando novamente para Kaimbe, adormecido. Enquanto o observava, ela notava que havia sempre uma sombra de tristeza ao olhar para trás, sempre um "e se" não pronunciado que pairava sobre suas vidas.
Exausta, ela se recostou e fechou os olhos, até a realidade se esfarelar em sua mente. E então, ela caiu em um sono profundo e imediato. A primeira coisa que percebeu ao entrar no sonho foi a familiaridade do ambiente ao seu redor - a trilha sinuosa da floresta, a árvore alta com o pingente e o chão coberto de folhas que escondiam o solo macio por baixo. Era a floresta onde havia passado tantas horas explorando com Kaimbe.
Mas, no sonho, eles não eram apenas amigos ou companheiros de aventuras. Dessa vez, eles caminhavam de mãos dadas, os dedos entrelaçados de maneira casual, porém íntima. Ela sentia o calor dele irradiando para ela através do simples contato, e uma gama de alegria preencheu seu coração.
Era uma imagem de felicidade e pertencimento, a realização de um desejo reprimido que Isadora carregava em seu peito. Uma memória que nunca existiu, mas que, em seus sonhos, parecia tão real quanto a vida que levava ao acordar.
De repente, ouviram um ruído vindo das árvores. Kaimbe, sempre o protetor, foi verificar. Mesmo com Isadora insistindo para ele ficar, ele avançou, quebrando um galho para usar como arma.
Com cautela, ele se aproximou das moitas densas e dos galhos. Sua expressão séria e focada, procurando alguma pista do que estava perturbando a tranquilidade da floresta.
Tudo parecia ter parado, nem mais um barulho era emitido. Então, sem aviso prévio, uma cauda grossa e longa surgiu de trás das moitas, enrolando-se rapidamente ao redor dele. A cobra gigante era uma criatura de pesadelos, imensa e assustadora. Com um movimento rápido e preciso, ela puxou ele para a densa vegetação, desaparecendo da vista quase instantaneamente. Com o coração descontrolado, Isadora correu para a área de onde Kaimbe tinha sido arrastado, se recusando em perdê-lo.
— Kaimbe! — Ela gritou na noite desesperadamente.
Isadora podia sentir sua respiração se tornando curta e rápida. Ela estava quase chegando ao local onde ele desapareceu quando uma figura desconhecida apareceu na mata. O homem era grande, sua presença negativa imediatamente enchendo a mulher de pavor. Seus olhos duros e frios fixaram-se nela e em suas mãos havia uma faca reluzente que brilhava sob a luz da lua.
Ele avançou nela. Isadora paralisou onde estava. O homem se aproximava cada vez mais. A lembrança de Kaimbe sendo arrastado à sua frente. Ela precisava ajudá-lo, e de alguma forma ajudar-se. Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, o homem estava sobre ela, a faca levantada.
A imagem congelou e, de repente, Isadora acordou na cabana, ofegante e coberta de suor. Kaimbe estava adormecido ali, completamente alheio ao pesadelo que ela acabara de ter. A fraca luz do amanhecer que se infiltrava pela entrada do abrigo fazia com que tudo parecesse ainda mais irreal. Levando a mão à testa, sentiu uma dor latejante e percebeu que estava com uma dor de cabeça muito forte. Tentando controlar as pontadas que sentia, ela olhou para Kaimbe, encontrando algum conforto em sua respiração tranquila.
Porém sua dor só se intensificou a tal ponto que parecia uma criatura viva e maléfica a martelar contra suas têmporas. O mundo girava ao redor dela, como se a cabana estivesse em meio a um ciclone.
Naquele momento de tortura insuportável, um som alto e ominoso rompeu o silêncio do dia - o berrante. Um sinal de perigo, um alerta. Uma ruptura na tranquilidade da aldeia que invadiu a cabana, fazendo o sangue de Isadora gelar e despertando Kaimbe de seu sono.
O corpo relaxado do homem, passou a contorcer-se violentamente sobre o leito de palhas. Seus músculos se contraíram em espasmos incontroláveis, sua respiração se tornou errática, e o rosto tranquilo se contorceu em uma expressão de angústia.
O grito de Isadora bateu nas paredes da cabana, um pedido por ajuda que se perdeu na estridência do berrante. Ela sentiu o desespero tomar conta dela, enquanto observava Kaimbe sofrendo. A dor em sua cabeça era intensa, mas nada comparada ao medo que sentia naquele momento. Ela sabia que precisava agir rápido, não apenas por Kaimbe, mas também pelos Wanakauas que pareciam estar em perigo iminente.
Em meio ao caos, olhando para todos os lados em busca de uma saída daquele labirinto de facas, os olhos dela foram atraídos para o jarro de cerâmica. Seu corpo se moveu quase que por conta própria. Tropeçando por causa da vertigem, ela estendeu a mão trêmula e agarrou o jarro de que abrigava o líquido sagrado. Havia uma parte de seu cérebro que gritava que aquilo era loucura, que não havia garantias de que funcionaria. Mas a outra parte, a que estava desesperada e sem opções, argumentava que aquilo era a única coisa que fazia sentido.
Ela levantou o jarro aos lábios e começou a beber o líquido, lutando contra a dor de cabeça dilacerante que persistia. Com a pressa e a angústia, o kashiri acabou se derramando, escorrendo por seu rosto e corpo. Isadora sentiu o líquido morno em sua pele, mas não se importou. Sua única preocupação era Kaimbe, que continuava convulsionando violentamente na palha ao seu lado. O som do berrante ainda gritava do lado de fora, cada vez mais alto.
À medida que a bebida percorria seu corpo, seu cérebro parecia explodir em um caleidoscópio de imagens fragmentadas e aceleradas. Ela viu um homem entrando em seu veículo e desaparecendo de vista. A imagem chocante de uma mulher sendo morta em sua frente. O tumulto de uma batalha violenta, a raiva e o desespero embaralhando os rostos dos combatentes, o grito angustiado que saiu de seu peito. A investida audaz contra um adversário, a sensação nauseante de uma lâmina penetrando sua pele, o grito de dor que lhe rasgou a garganta, e finalmente, a queda, seu corpo desabando ao lado de outro.
Então, na voragem dessas memórias tempestuosas, a compreensão se precipitou sobre ela, escancarada em cada flash que a atormentava: ela, Isadora de Castilho também era Helena Castro.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro