10. Lembranças Imersas
Isadora traçou um caminho para Mendes através das trilhas enroscadas da floresta, seu percurso iluminado pelos fachos de luz do sol. Atrás, o Wanakaua Kaimbe os seguia atento a qualquer movimento. No entanto, por entre a aparente atenção ao perigo, Mendes notou que os olhos do homem se desviavam com frequência, contornando um caminho invisível até Isadora que graciosamente abria espaço pela mata.
Mendes não conseguia parar de pensar que havia algo na jovem que lhe era estranhamente familiar. A dor em sua cabeça intensificava-se, o ritmo dela parecendo sincronizar com a confusão que sentia. Ele precisava descobrir o que estava acontecendo.
— Por que a Wai'ana acha que eu tenho as respostas que ela procura?
Isadora parou de andar, encarando Mendes, como se ponderasse se deveria ou não responder.
— Wai'ana é sábia. Ela acredita que nada acontece por acaso.
— Você também acha isso?
Kaimbe se inseriu na conversa, aparecendo de repente ao lado deles.
— Isadora, você não precisa falar com ele.
— Não tem problema — ela disse a Kaimbe antes de voltar-se para Mendes. — Eu não sei, detetive. O que eu sei é que a vida tem um jeito estranho de nos revelar as coisas.
— Mesmo assim, você parece bastante preocupada.
Isadora desviou o rosto dele, mordendo o lábio inferior. Os olhos se perderam a quilômetros, antes que finalmente respondess:
— É por causa dos meus pais... eles desapareceram e eu só... eu preciso saber o que aconteceu com eles.
— Os seus pais... moravam aqui?
— Sim. Nós viemos para cá quando eu ainda era criança. Estávamos sem lugar para ficar e os Wanakauas nos acolheram.
— Sem querer ofender, mas eles não parecem ser acolhedores.
As sobrancelhas de Kaimbe se juntaram em um franzido perceptível.
— Meu pai era médico. — Isadora continuou, ignorando a reação de Kaimbe. — Estávamos... fugindo. Os Wanakauas viram que ele poderia ser útil, e foi assim que ficamos.
— Fugindo de quem?
— Chega de falar. — Kaimbe interrompe de novo. — Estamos quase lá.
Porém antes de voltarem o trajeto, Mendes sentiu uma pontada intensa perfurando seu cérebro. Ele colocou a mão na testa, sentindo a pele quente sob seus dedos. Uma sensação de náusea se espalhou por ele.
— Detetive! — Isadora chamou, preocupada.
A voz dela desencadeou uma lembrança, uma voz de garota chamando por ele - mas, por outro nome - enquanto sentia socos em seu corpo. A dor de cabeça parecia pulsar no mesmo ritmo das pancadas invisíveis.
Ele soltou um grunhido baixo. Suas pernas fraquejaram, e ele teria caído se não fosse pelo aperto firme de Kaimbe. O homem o agarrou pelo braço, mantendo-o de pé quando seus joelhos dobraram.
Sem perda de tempo, Kaimbe deslizou um dos braços de Mendes em torno de seu ombro e, com uma força impressionante, o içou. O detetive não pesava pouco, mas Kaimbe o carregou com facilidade, seus passos resolutos ao se dirigir para uma caverna próxima.
Enquanto entravam, dava para se ouvir o som de água, abafando o zunido agudo que Mendes ouvia em seus ouvidos. Era um som líquido, um refrão hipnótico de pingos e respingos, de correnteza suave e borbulhante.
Ao longe, Mendes pôde discernir a luz refletida em uma piscina de água cristalina, a fonte do som. Eles haviam chegado ao seu destino.
Kaimbe baixou o corpo de Mendes na água com cuidado. A temperatura fresca da nascente proporcionou um alívio instantâneo, mesmo que pequeno, da dor em sua cabeça. A água parecia ter um efeito estranhamente calmante, suas propriedades atuando para aliviar a tensão em seus músculos e na mente.
Isadora estava a seu lado, segurando o recipiente com o Kashiri. Expressando preocupação, ela o ajudou a beber. O líquido desceu pela garganta dele, ardente e forte, evocando uma memória dolorosa.
O golpe agudo de uma faca, a dor da lâmina penetrando sua carne, as mãos lutando por controle, a sensação de desespero - tudo vinha à tona. A martelada no crânio, formando a ferida aberta que só existia em sua mente. Mendes se engasgou com a bebida, o gosto amargo do Kashiri com o metálico do medo.
O tormento durou poucos segundos, mas parecia uma eternidade. Então, tão abruptamente quanto veio, o sofrimento recuou. Como a maré depois de uma tempestade, a dor de cabeça diminuiu, substituída por uma calma estranha e inesperada.
Ele respirou fundo, os olhos fechados. Sentindo a água fresca ao seu redor, o som suave do movimento da nascente, o gosto residual do Kashiri na boca. E então, uma memória surgiu. Não era uma lembrança de agonia ou desespero, mas uma de paz. Uma imagem de um dia ensolarado, a água refrescante de uma piscina natural, o sorriso afetuoso de um homem mais velho o observando de perto; o caos desaparecendo, substituído por essa única e clara visão em um espelho limpo e nítido pela primeira vez.
Ele estava lá novamente, naquela mesma caverna natural. Antes, não entendia o significado daquele momento, apenas sabia que se sentia seguro, protegido. E era ele mesmo - não o Detetive Mendes, mas Arthur - que se banhava nas águas frescas, sob o olhar atento de Antônio após uma tarde relaxante de pesca.
Ele conhecia essa história, tinha vivido esses momentos. Só que ao mesmo tempo, ele era Mendes, o detetive acostumado com a vida na cidade, alguém completamente diferente. Como essas duas realidades poderiam coexistir? Ainda tentando se agarrar ao seu entendimento de si mesmo, reabriu os olhos, piscando contra a luz suave que vinha da nascente. A primeira coisa que enxergou foi a silhueta de Kaimbe e Isadora. Piscando mais algumas vezes, tentou se ajoelhar na água. O mundo ao redor rodou, mas logo a visão se estabilizou.
— Estou bem — Mendes disse passando a mão pelo rosto, tentando reunir seus pensamentos. — Eu me lembro... eu me lembro agora.
Isadora se moveu para mais perto dele, parecendo curiosa. — Você se lembra dos corpos?
— Eu me lembro de tudo... — Mendes balançou os dedos na agua — lembro do... meu vô.
— Do seu avô...? Do que está falando?
— Eu já estive aqui antes... com ele, e não faz muito tempo.
Kaimbe franziu o cenho. — Se tivesse vindo aqui antes, nós saberíamos.
Mendes respirou o ar puro. Ele podia ver os contornos das memórias, tão vivas como se estivessem acontecendo naquele exato momento.
— Isso que é estranho... estive aqui, mas não como Sergio Mendes... eu tinha... outro nome.
— Isadora, o Kashiri deveria ter esse efeito? — Perguntou Kaimbe.
— Não... na verdade, pode ser que ele esteja delirando mesmo... ou talvez nem seja um detetive de verdade.
Foi então que Mendes se levantou da água fria. Suas roupas grudando em sua pele.
— Escutem... essa, é outra época. Eu não sei como, mas... a última lembrança que eu tenho é de estar morrendo, e agora... — ele hesitou, desesperado para que acreditassem nele. — ...estamos no século XX.
Os três ficaram imóveis. Isadora parecia confusa. Ela abriu a boca para responder, mas nenhum som saiu. Então ela virou-se para Kaimbe que quebrou o silêncio no mesmo instante.
— Você sabe alguma coisa sobre isso?
A jovem balançou a cabeça. — Meu pai nunca me falou nada sobre.
— Do que vocês estão falando? — Mendes interveio, olhando de um para o outro. — O que está acontecendo comigo?
— Vamos levá-lo de volta à aldeia. — Disse Isadora. — Eu quero falar com Wai'ana.
Depois disso, ela se agachou pegando o jarro de cerâmica. Com cuidado, ela se virou e começou a caminhar em direção à saída da caverna. Kaimbe a seguiu logo atrás. Eles se afastaram, deixando o detetive confuso e perplexo
— Espera! — Ele chamou, sacudindo a água de seus cabelos e correndo para alcançá-los. — Vocês não vão me dizer nada?
Sem responder, Isadora e Kaimbe continuaram a caminhar enquanto o sol começava a se recolher no horizonte. Esforçando-se para acompanha-los, Mendes desceu os olhos pela própria cintura e sua pulsação acelerou. A bolsa de couro que antes carregava havia desaparecido. Ele sentiu um breve pânico com seus dedos procurando inutilmente o pertence.
O susto foi rápido e quase lhe deixou escapar a troca sutil de palavras entre Kaimbe e Isadora. Eles cochichavam baixo o suficiente para que não alcançassem seus ouvidos. Todavia, a troca furtiva, não passou despercebida por ele.
Kaimbe murmurou algo sobre levar o assunto para Wai'ana. Depois disso ele viu Kaimbe tocar o braço da moça, um gesto tão delicado que quase poderia ter sido imaginado. Mas havia algo naquele toque, na maneira como Kaimbe olhava para ela, que fez Mendes perceber: havia algo mais entre eles.
Após se afastarem consideravelmente da nascente, a vegetação próxima começou a assumir uma forma mais familiar. Mendes percebeu, na curva suave de uma árvore e na disposição das folhas sob seus pés, que a aldeia não estava muito distante. Ele estava prestes a fazer um comentário a respeito disso quando um som estranho cortou a serenidade da floresta, congelando-os no lugar.
— O que foi isso? — Isadora perguntou, apertando seus olhos para tentar ver através das folhas.
— Quer que eu verifique? — O indígena perguntou a ela.
— Não precisa, Kaimbe! Vamos embora.
Quando estavam prestes a retomar a caminhada, o barulho estranho voltou a se manifestar, ainda mais próximo dessa vez. O ruído, muito semelhante ao crepitar de folhas e galhos sendo pisoteados, provocando uma reação imediata da vida selvagem. Os pássaros cessaram seu canto, e parecia que até mesmo o vento segurava sua respiração. Mendes começou a escutar até o próprio coração agora. Ele olhou para Isadora, que estava com uma expressão amedrontada.
Sem aguardar ordens, Kaimbe andou devagar em direção a uma árvore, quebrando um galho robusto que estava ao seu alcance. Com força, ele criou uma ponta afiada, transformando o galho em uma arma improvisada.
— Kaimbe, não — sussurrou Isadora, e então ele levantou uma mão para acalmá-la.
— Eu já volto.
Sua voz percorreu uma distância que só aumentou entre os dois. O homem já desaparecia entre a vegetação enquanto a escuridão começava a se espalhar cada vez mais pela floresta. Com o vento balançando o tecido de suas vestes, Isadora baixou o jarro de cerâmica contendo o Kashiri ao chão, colocando-o entre as raízes de uma árvore próxima. Já estava demorando demais e a floresta estava calma demais, até que essa tranquilidade foi substituída por um grito de dor, fazendo os pássaros voarem das árvores assustados.
— Kaimbe!
Mal ouve tempo de reação, Isadora disparou em direção ao barulho e Mendes não pode detê-la. Ela já estava longe, desaparecendo na densidade da mata.
Não querendo ser o único indefeso na trilha, Mendes lançou-se em perseguição atrás da mulher. O som da noite era alto, e a luz da lua começou a ser necessária.
Quando ele finalmente a alcançou, a visão que encontrou foi de Kaimbe estirado no solo úmido, seu corpo inerte e vulnerável enquanto Isadora se encontrava agachada ao lado dele.
Mendes se aproximou ofegante por conta da corrida, notando que um brilho manchava a terra - sangue. Kaimbe estava com um pé estendido. E, ao lado dele, uma cobra perfurada pelo galho afiado que ele ainda segurava. Ao se agachar também, Mendes percebeu os sinais de uma mordida no pé do indígena. A cobra estava imóvel, assim como ele.
— Ei, o pé dele.
— Sim, eu sei — ela respondeu, assustada. — Eu preciso tratar isso, ou...
Ela não terminou a frase, mas não precisava. Ela já estava se levantando, tentando carregar Kaimbe, que estava enfraquecido. Mendes se apressou em ajudá-la, um lado do corpo sendo apoiado por cada um deles.
Se afastando da cena e voltavam para o caminho que os levaria de volta à aldeia, Mendes não pôde deixar de olhar para o animal com o galho atravessando seu corpo. Havia uma coisa que não fazia sentido...
Cobras são furtivas, o barulho que haviam escutado antes do ataque... não poderia ter vindo dela. Era um som pesado, como se algo grande estivesse se movendo através da floresta...
Se não era a cobra, então o que era?
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