23. Precipício de Incertezas
Foi como se uma avalanche de memórias tivesse invadido meu cérebro e clareado tudo. Preciso confessar que eu estava tão surpreso quanto vocês. Assistir ao meu minúsculo corpo de beija-flor se tornar o corpo de um ser humano, juntamente às reações dos indivíduos à minha volta, foi sensacional.
— PAPAI! — falaram as meninas em uníssono.
— Olá, querido — cumprimentou-me Serena com um reconfortante sorriso em seu belo rosto.
— Como assim? Isso não faz sentido! — exclamou Rúbia, com os olhos arregalados destacados em seu rosto.
Serena sorriu. Tentei retribuir o sorriso, mas minha mente ainda estava um pouco embolada.
— Eu precisava manter Benjamin seguro... e sabia que não havia ninguém melhor para fazer isso do que suas próprias filhas — explicou Serena.
— Ma-mas... ELE LEU MEU DIÁRIO! — exclamou Celina.
— Peço desculpa por isso... Não era bem eu, sabe — falei, acanhado. — Às vezes o espírito fofoqueiro do Alfajor falava mais alto do que o bom senso.
— Você vivia me seguindo por todo lado... — disse Olga, me fitando. — Obrigada, papai.
O abraço repleto de afeto que a caçula me deu foi tão reconfortante. Há anos que não recebia um ato de afeto tão bom assim.
— De nada, corujinha! — respondi, retribuindo o seu abraço.
— Então, esse aí é o nosso sogro? — perguntou Hélio, dando uma cotovelada em Magnólia.
— Sim — respondi com um semblante sério, me aproximando do garoto.
— Ei, calma aí, sogrão — falou Hélio, rindo. — Quando era o Alfajor, você me amava.
— É que os gostos dele não eram tão refinados quanto os meus — falei, tentando prender a risada. De fato, acho Hélio um bom rapaz.
— Isso foi uma ofensa?
— Se a carapuça serviu — respondi, saindo.
Eu gosto do Hélio. Fiz isso só para implicar, não se preocupem. Bom, torci para não tê-lo deixado paranoico com minha brincadeira.
— Que saudade de você — disse Celina, me abraçando em conjunto com Rúbia.
— Que bom que, mesmo sem saber, nós estivemos juntos durante todo esse tempo — falei com os olhos marejados de emoção. — Mesmo eu quase tendo morrido várias vezes ao longo da nossa jornada.
Todos gargalhamos juntos em meio àquele cenário caótico. Parecia tão inapropriado estar rindo naquele momento, mas quem poderia nos julgar?
— Espera! — disse Serena, olhando ao redor. — Onde estão todas as criaturas mágicas?
— Levei todas elas ao barco para que ficassem seguras com Miriana e Osvald — respondeu Olga, repleta de orgulho.
— MIRIANA E OSVALD ESTÃO AQUI? — disse Serena, encarando a filha mais nova com os olhos arregalados.
— Ah, sim... E eu sou o filho deles... — disse Hélio, hesitante.
Os olhos de Serena marejaram quase que de imediato.
— Querido... — disse a mulher, abraçando o garoto fortemente. — O que houve com seu olho?
Todos os presentes tiveram o olhar direcionado para Celina, inclusive eu, que deu uma risada sem graça, acanhada.
— Celimonstro meio que me jogou de um penhasco, me fazendo perfurar o olho — respondeu Hélio, com uma gargalhada alta, percebendo apenas depois o que havia dito.
— Celimonstro? — repetiu Serena, confusa. — Quem é esse?
— Eu — respondeu Celina, séria. — Quando fui possuída pelo espidrero. É uma história longa e desajeitada, deixa baixo.
— Tentamos curar com a ajuda dos gnomídeos, mas não conseguimos... — explicou Olga.
— É... A magia deles é limitada apenas aos seres mágicos, mas acho que posso dar um jeito — disse Serena, tocando delicadamente a pálpebra do olho do garoto. — Feche os olhos e respire fundo, querido.
Às vezes, eu me esquecia de como foi o começo da vida ao lado de Serena, uma verdadeira montanha-russa de emoções. Sempre que eu me machucava, ela estava lá para me curar. Antes de Rúbia nascer, ou seja, antes de Serena passar seus poderes a ela, ela costumava me ajudar a mobiliar a casa. Inclusive, foi ela quem desenhou meu carro. Bons tempos.
— Você é um sortudo — disse Serena, rindo. — Como seu olho ainda está aí, eu nem tive muito trabalho.
Hélio, que estava com os dois olhos fechados, abriu as pálpebras devagar, como se estivesse prestes a enxergar pela primeira vez na vida. Sua risada cheia de empolgação e o seu grito de comemoração revelavam que o encantamento havia funcionado.
— Deu certo! — exclamou ele, entusiasmado. — Estou vendo com os dois olhos! Estou vendo! Eu consigo ver!
Rúbia, que também estava com os olhos inundados, não conteve a empolgação, se jogando nos braços do garoto aos gritos e sendo rodopiada por ele.
— Mas e a Celina? — questionou Olga com um olhar confuso. — Ela vai voltar à sua forma humana?
— É claro que sim! Basta querer — respondeu Serena com uma risada. — Eu não posso mais voltar à minha forma de ninfa porque ao gerar três garotinhas lindas, perdi essa habilidade.
— Então, nós também podemos assumir essa forma feiosa, porém super legal? — perguntou Rúbia, ainda empolgada.
— Claro que sim — respondeu Serena, rindo. — Na verdade, sem sua crisálida humana, seus poderes são ainda mais fortes. E, contanto que não tenham filhos com um humano, vocês podem passear por ambas as formas sem preocupação.
— A primeira parte eu posso confirmar — disse Celina com um giro e uma risada. — Nunca consegui abrir tantos portais de uma só vez. Era como se eu estivesse conectada a todos os lugares do mundo.
— A forma humana nos limita muito — elucidou Serena. — Rúbia, sem sua crisálida, você é capaz de dar vida a tudo que imaginar sem precisar desenhar. E você, Olga, sem sua crisálida, é capaz de controlar quem quiser apenas com a força da mente.
O fascínio estampado no rosto das mais novas era sem tamanho. Se eu não as conhecesse, com certeza ficaria preocupado. Sinceramente, apesar de estar em contato com a magia há muitos anos — mesmo que de forma indireta —, eu ainda me assustava com o que minha amada e minhas filhas eram capazes de fazer.
— Meg... — disse Celina —, se eu escolhesse ficar com essa forma, você ainda me amaria?
A garota não conteve a gargalhada.
— Claro que sim, sua boba! — respondeu ela, abraçando-a com força. — E, honestamente, não é nem de perto a coisa mais surreal que eu já vi, quer dizer, literalmente quase morremos afogados agora há pouco.
Rúbia e Olga soltaram uma gargalhada quase que ao mesmo tempo. Sempre as admirei por conseguirem sorrir mesmo em meio ao caos. As memórias ondulavam em minha mente, revi algumas cenas de um barco sendo levado pelas fortes ondas e um raio quase me atingindo.
— Beija-flores me livrem! — disse Celina, após se desvencilhar do abraço. — Essa forma é legal, mas é apavorante. Quando voltarmos para casa, a primeira coisa que eu vou fazer é voltar à minha forma humana.
Bom, falando em casa...
Um estrondo repentino chamou a atenção de todos. Talvez fosse meu cérebro que ainda estivesse devagar, mas fui o último a perceber a alta criatura luminosa caminhando em nossa direção. Era Ázula.
— Para trás! — berrou Celina, tomando à frente e fazendo um escudo com seu corpo.
A Ninfa Soberana de cor azul caminhava até nós com o olhar perdido. Parecia desnorteada. Estávamos completamente parados, apenas esperando o primeiro golpe dela, porém isso não ocorreu. A Ninfa, assim que se aproximou, caiu ajoelhada com os olhos fixos em nós. Seu olhar marejado chamava mais atenção do que o cenário caótico ao redor.
— Então... foi por isso que você foi embora. Foi para isso.
— Quê? — indagou Serena, confusa. Seu rosto entregava isso.
— Aquela garota pulou em frente ao meu ataque para proteger você... Qualquer um deles faria isso por você, não é mesmo?
Um silêncio pairou pela atmosfera conturbada.
— Ázula, eu realmente não estou entendendo... — revelou Serena, dando um hesitante passo à frente.
— Você foi embora porque queria uma família. Nós não éramos uma família para você, éramos?
Serena suspirou, deu um passo à frente com cautela e tocou a grande mão da ninfa posta à sua frente.
— Eu sei que vocês fizeram o que acharam que era correto, mas viver com vocês presa naquela torre estava acabando comigo. Cada dia que eu passava lá era como se eu perdesse um pouco de mim. Era torturante.
— Eu sinto muito, Serena... De verdade... — disse Ázula, encarando a irmã. — É só o que eu posso dizer...
— Tá tudo bem...
— Não, não está. Preciso quebrar a maldição que lançamos sobre você e mandar você e... a sua família... para casa...
— Sim... Essa maldição quase destruiu a minha família diversas vezes. Por favor, quebre-a, Ázula.
— Eu quero, mas não posso fazer isso sozinha. Preciso das outras. Preciso convencê-las, mas sei que será quase impossível.
— Como? Elas não estão aqui e, se estivessem, já teriam me massacrado — disse Celina.
Ázula manteve-se encarando a irmã por alguns minutos. Parecia pensativa. Tinha uma feição triste e vazia.
— Serena, por favor, vá embora! — falou Ázula, desesperada. — Elas devem voltar a qualquer minuto.
— Que? Eu não posso ir embora assim, Ázula, não sem antes quebrar a maldição.
— Eu tentarei convencê-las. Prometo que irei dar o meu máximo para fazê-las reverterem a maldição, mas se elas voltarem e verem vocês aqui, isso só vai gerar mais confrontos.
— Bom, então teremos que encará-la juntas. Juntos, na verdade. Meu exército é tão forte quanto você. Inclusive as minhas filhas.
— Suas filhas... minhas sobrinhas. Eu tenho sobrinhas!
Serena gargalhou.
— Sim, você tem! Celina é a que assumiu sua forma de ninfa, aquela é Rúbia e essa é Olga.
— Belos nomes... eu acho — disse Ázula.
— Olga era o nome da minha avó — falei, me intrometendo. — Eu meio que quis fazer uma homenagem e Serena gostou da ideia.
— Rúbia é o nome da atriz principal de uma novela que Benjamin e eu assistíamos juntos quando eu estava grávida.
Ah, agora eu entendi porque assistir a novelas me fazia tão bem quando eu era o Alfajor. Me lembrava da Serena...
— Eu não sabia disso! — exclamou Rúbia, surpresa.
— E Celina era um nome bonito que lembrava Serena — contou Serena com uma risada alta. — Achamos esse nome enquanto fazíamos uma pesquisa na internet. Foi escolha minha.
— Bom, por mais que eu não saiba o que é essa tal internet, sua família de humanos é linda... — disse ela com uma feição simpática.
— Obrigada...
Dois portais se abriram nas proximidades, revelando duas figuras assustadoras. Dulce e Mórgara possuíam uma clara expressão de ódio e desprezo em seus rostos. Caminhavam em nossa direção como um gato prestes a atacar um pássaro ou um rato desatento.
— Que momento comovente — disse Mórgara com um meio sorriso cínico.
— Não sabíamos que você tinha um coração tão amolecido assim, Ázula — disse Dulce, rindo com desdém.
— Irmãs, vamos conversar, por favor — disse Ázula, colocando-se quase como um escudo diante de nós.
— NÃO! — esbravejou Mórgara. — Temos que aniquilá-la, assim como essas aberrações humanas que ela trouxe.
— Lembra do que eu te falei, Serena — ciciou Ázula —, vai para casa e leva eles com você.
Eu, que estava ao lado de Serena, pude ver o pesar em seu rosto. Era bem óbvio que minha amada não queria ir diante daquele cenário, mas era o melhor a se fazer... por todos.
Ázula, que estava de cabeça baixa, gerou duas esferas de energia com suas mãos e as lançou contra Dulce e Mórgara que, pegas de surpresa, foram lançadas para longe.
— Rápido, Celina — disse Serena com a voz embargada. — Nos tire daqui. Temos que ir a um lugar seguro.
— Mãe, mas... Célazul não existe mais — respondeu ela com um misto de tristeza e vergonha em sua voz.
— Eu sei. Mas também sei que você tem habilidades suficientes para reconstruí-la. E não será mais a minha Célazul, será a sua!
Celina respirou fundo, encarando o nada à sua frente. Todos ficamos atentos à garota em sua forma de ninfa suprema. Parecia tão indefesa, mas tão forte ao mesmo tempo. Tudo que eu queria era abraçá-la.
Uma chamativa abertura, semelhante a um zíper se abrindo, surgiu à sua frente. Tinha a coloração esverdeada de mil esmeraldas juntas dançando ao sol.
— ENTREM, DEPRESSA! — disse Celina.
Enquanto caminhávamos até a resplandecente abertura interdimensional, vislumbrei o último olhar — pelo menos naquela noite — entre Serena e Ázula, que lutava com todas as suas forças para segurar as outras duas ninfas.
— Vamos, amor — chamou-me Serena, segurando minha mão enquanto adentrava ao portal às pressas.
— Não se preocupem comigo. Vou buscar os Valente e já encontro vocês lá — sussurrou Celina quando eu, o último a cruzar o portal, passei ao seu lado.
Mas onde era exatamente "lá"? Bom, isso eu estava prestes a descobrir.
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