Capítulo 1
Sempre me disseram que família é o grupo com o mesmo sangue que o seu, alguém com quem você convive, que te criou ou cresceu com você. E eu acho setenta porcento das palavras anteriores nada mais que lixo.
Minha infância foi vivida em inúmeros quartos estranhos, com pessoas desconhecidas que sorriam, me davam beijos de boa noite e então ignoravam meus gritos aterrorizados por pesadelos na madrugada depois da segunda ou terceira semana, até que me levassem de volta para o orfanato novamente quando não me aguentassem mais.
Eu nunca consigo lembrar sobre o que eles são feitos, os meus pesadelos.
E eu sei que alguns ali teriam sido ótimos pais para qualquer criança, mas não para mim, ninguém conseguiria ocupar a posição na minha vida e eu havia superado esse fato antes dos treze anos de idade, quando já tinha mudado de casa mais vezes do que tinha feito aniversário.
Entretanto eu nunca estive sozinha.
Se o conceito família estivesse certo em alguma parte, Ellen era minha família.
Isso quando não está gritando no meu ouvido de forma irritante.
— Vá para o inferno, El. Me deixe dormir.
Ouço ela bufar em protesto, largando as cobertas que eu puxava com tanto afinco de um lado e ela do outro. Volto a acomodar minha cabeça calmamente contra o travesseiro quando ela desiste e se afasta.
— Tudo bem, você pode abrir a carta de Beaux-Arts mais tarde então.
Ellen assovia com um tom fingido de desinteresse após falar isso.
A garota preta cai na risada quando me viro afobada e caio do sofá, resmungo um palavrão enquanto me levanto e me sento irritada e com dor na bunda pelo tombo.
Meus olhos cravam na carta branca em suas mãos, não vejo nada além de letras miudas que endereçam a carta. Ela afasta o envelope de mim com facilidade quando tento tirar dos seus dedos e limpa uma lágrima no canto do olho quando cessa sua risada, assumindo uma postura séria que não condiz com a garota risonha de segundos atrás.
— Tem certeza que quer abrir ela? É um lugar difícil.
— Me dá logo essa porcaria.
Arranco o papel branco da sua mão e vejo Ellen jogar seus dreads roxos para trás dando de ombros, indiferente para minha irritação matinal. Ela me observa atentamente, esperando que eu abra e veja se entrei ou não. Ela revira os olhos quando jogo a carta na sua mesinha de centro e me encaminho para o banheiro, com medo de saber a resposta.
O negócio é que Ellen e eu vivemos nossa vida toda no sistema adotivo.
Ninguém além de nós mesmas e pessoas que passaram pela mesma situação sabe como aquele lugar é um inferno. Ainda sim, Ellen sobreviveu e se mandou do lugar há dois anos quando fez dezoito, ela conseguiu um emprego como atendente em uma loja e alugou esse apartamento no limite da cidade. Eu apareci há um ano atrás, nem me lembrava quantas vezes tinha fugido do orfanato antes porém dessa vez ela viu que era sério. Eu não iria voltar.
Ellen deixou que eu ficasse aqui se não fizesse nada errado e ajudasse com as contas, eu logo começei a trabalhar como garçonete numa lanchonete do centro para ajudar com o aluguel e guardava o dinheiro que sobrava para despesas futuras da faculdade que eu me inscrevi meses atrás.
A que a carta na mesinha de centro diria se eu tinha passado ou não.
Minha vida atual não é um paraíso, claro. O apartamento possui inúmeros problemas, a vizinhança recebe a polícia inúmeras vezes durante a semana e todo mundo parece meio perigoso, mas comparado com aquele lugar...bem, talvez isso seja um paraíso mesmo.
Hoje é segunda-feira, o que significa que eu não trabalho. Não demoro muito no banho, meus pensamentos sempre no papel branco ainda em cima da mesa, escovo meus dentes e passo o pente algumas vezes no meu cabelo ondulado me preparando para sair na minha única folga da semana.
Eu não costumo me olhar no espelho por medo de começar a divagar de quem puxei meus cabelos negros, imagino que sejam do meu pai, assim como os olhos castanhos claros, e que minha pele morena e as pequenas pintinhas nas costas sejam da minha mãe. Se fechar os olhos consigo vê-los, mesmo que nunca tenha os visto na vida real.
Abandonada na frente de um orfanato com apenas uma coberta e o colar que já tive que brigar muito para não perder.
Essa é minha história. Simples e real.
Nunca me importei que essa pedra vermelha no meu pescoço possa ser um verdadeiro rubi e que ela possa sustentar esse apartamento por um tempo sem que eu trabalhe dois turnos seguidos várias vezes na semana. Ele pertence a mim. E me lembra que eu venho de algum lugar.
— Farina, vamos comer bolo hoje à noite?
Ellen pergunta quando aparece na sala mais tarde e me vê calçando botas que comprei num brechó semanas atrás, seus olhos ainda estão na carta não aberta na mesa, tento não olhar naquela direção, com medo do futuro.
Hoje é meu aniversário de dezoito anos e mesmo que eu não ligue para a data Ellen vai fazer algo para mim como sempre fez em todos os anos em que estivemos juntas. Lembro de ver a garota sorrindo furtiva me mandando assoprar a velinha do bolo saqueado da cozinha no meio da noite quando éramos mais novas. Ela sempre me pergunta qual foi meu pedido e eu reviro os olhos, dividindo a massa ao meio e fingindo não ouvir sua pergunta.
Lar. Eu sempre pedi por um lar.
Aceno que sim com a cabeça, jogando a carta e alguns outros materiais numa bolsa antes de lhe dar um beijo estalado na bochecha e sair porta afora.
Vejo o Sr. Mars, um senhor de idade que é nosso vizinho, molhando sua planta enquanto passo pelo corredor,. Lhe dirijo um sorriso e digo bom dia. Me assusto quando ele me olha de volta, seus olhos estão negros e um sorriso macabro adorna seu rosto.
Me pergunto se não estou ficando louca porque ele volta ao seu sorriso gentil em um piscar de olhos meu, sua voz normal me desejando um bom dia de volta.
Balanço a cabeça confusa, decidindo que deve ser a fome me confundo e que devo comer algo na rua antes de me sentar em alguma praça e abrir a carta.
— ¥ —
Durante uma das vezes em que fui adotada quando tinha doze anos, meus pais adotivos decidiram me colocar em uma terapia para tentar lidar com os pesadelos.
Eu não gostava tanto da psicóloga ou do lugar, mas isso não importava muito porque eu não precisava falar contanto que eu desenhasse algo durante as consultas. Havia sessões que eu não falava mais que boa tarde e tchau e, ainda sim, sempre saía de lá com inúmeros desenhos.
Meus pais adotivos me devolveram para o sistema um mês e meio depois, um recorde para mim, e eu nunca mais vi aquela médica ou aquele consultório novamente, mas eu passei a desenhar bastante depois disso. Ao ponto de se tornar um hobby anos depois, e agora, possivelmente uma formação.
A carta que parece pesar toneladas na bolsa em minhas costas se trata sobre isso, uma vaga na faculdade de artes da cidade.
Tive que respirar fundo algumas vezes para não parar e abrir a carta no meio da rua. Ao invés disso, continuei comendo o sanduíche com um copo de café enquanto desviava das pessoas apressadas que passavam por mim na rua e seguia para meu destino final: o parque.
Não consigo evitar de olhar os carros e pessoas que passam por mim. adoro essa cidade desde sempre. Já tive que ir para outras e mesmo que sempre fosse tudo igual sempre tive uma conexão maior com o ar poluído, o barulho de carro e as pessoas alienadas daqui. Eu sentia que eu pertencia ao caos desse lugar, que algo me aconteceria aqui e eu só precisava ser paciente e esperar.
O parque municipal para onde vou fica no lado oposto de onde eu moro. Demora uns bons trinta minutos para atravessar de ônibus, quase duas horas andando se eu estiver apressada, mas eu gosto daqui. Mais especificamente da colina do parque que dá vista para a cidade toda. Eu sempre venho aqui para desenhar e esquecer um pouco da vida estressante que levo.
O banco que eu sempre sento está vazio quando eu me aproximo, desvio os dedos da carta e pesco meu caderno de desenho e um lápis dentro da bolsa quando me sento, meus dedos coçam como um incentivo à minha curiosidade porém o medo ainda vence e eu fecho o zíper da bolsa conforme encaro o lugar a minha volta. Por ainda ser manhã, vejo algumas pessoas se exercitando e outras aproveitando o sol antes de irem embora, mas meu foco hoje é outro e eu desvio de tudo isso enquanto olho para os prédios um pouco mais ao horizonte.
Rapidamente eu me perco entre o papel e o lápis, em um dos poucos momentos que consigo esquecer da minha vida.
Horas depois, sentindo uma câimbra na mão que segura o lápis e um pouco de fome, eu encaro meus dedos sujos pelo grafite e observo o desenho, suspirando em derrota.
Não está perfeito. Nunca está.
Dou um pequeno pulo com o susto que levo quando me viro e vejo um homem sentado ao meu lado. Ele olha para o desenho como se não conseguisse reconhecer o lugar no papel. Um segundo olhar para a folha faz com que eu entenda sua confusão, ele não se parece nada com a vista daqui. Não há imensos arranha-céus ou prédios baixos, casas preenchem a folha parda, porém não há casas nessa área da cidade.
O mais estranho é ver o castelo lá atrás, um imenso castelo que nada se parece com um castelo da Disney, é como se eu retratasse o castelo do Frankenstein.
É um lugar diferente.
Arrisco falar algo para o moço sentado ao meu lado, mas quando me viro para ele novamente ele não está mais lá.
Jogo o caderno na bolsa novamente, me sentindo vencida pelo cansaço. O céu está se tornando um tom de laranja e eu preciso voltar para casa logo, Ellen vai chegar do trabalho em algumas horas e vai ficar irritada se eu não estiver lá.
Estou na metade do caminho para o ponto de ônibus quando sinto um olhar queimando minhas costas, me viro mas não vejo nada e nem ninguém me olhando. Dou de ombros e continuo andando tentando reconhecer as várias cores que o céu está adquirindo.
Olhe para trás.
Me assusto ao virar para trás e ver um homem caminhando alguns metros atrás de mim. Caminho mais rápido, virando para uma outra rua.
Um rápido olhar para trás me faz constatar que o homem ainda está atrás de mim, andando no mesmo ritmo apressado que o meu.
Tento me acalmar e me lembrar dos golpes que aprendi numa aula de autodefesa que fiz por causa de Ellen mas minha mente parece um branco, medo circulando por minhas veias enquanto sinto ele se aproximar.
Se acalme.
Repito mentalmente para mim várias vezes, porém parece surtir o efeito contrário em mim porque sinto minhas pernas tremerem cada vez mais. Se eu focar, posso ouvir a respiração dele há alguns passos atrás de mim.
Vire a direita.
Falo mil palavrões quando me viro a direita e me deparo com um beco sem saída. Continuo andando em frente com medo do que vai me acontecer se eu parar e ele me alcançar. Rezo para deuses que não conheço ou acredito quando sinto sua respiração bater em minha nuca e então sinto minha cabeça bater contra a parede quando o homem me empurra.
Quero gritar por socorro quando caio no chão molhado desnorteada, mas ele é mais rápido que eu, ficando por cima de mim e tampando minha boca. Me assusto ao me deparar com o mesmo cara que estava sentado ao meu lado no banco mais cedo, o cabelo preto cai sobre seu rosto. Desejo que isso seja um pesadelo horrível e que eu acorde agora.
Tenho certeza que ele pode sentir o cheiro do meu medo, porque ele sorri, um sorriso cheio de dentes amarelos macabro.
Tento gritar mais uma vez mesmo que apenas um som abafado vá ecoar quando ele aproxima seu rosto do meu e eu vejo olhos negros, como vi no meu vizinho essa manhã. Ele fala coisas que não entendo com um olhar de raiva e minha bochecha arde após receber um tapa.
O homem vasculha meu rosto, parecendo se divertir com o medo que vê ali. Ele desce o olhar para baixo e eu posso ver o brilho perverso na escuridão cegante onde deveria estar sua íris quando ele chega ao meu colar. Digo que ele pode levar a jóia e que não vou denunciar na polícia.
Ele fica confuso, percebo que fala em uma outra língua e então agarra um punhado do meu cabelo com violência. Estremeço quando ele lambe a lateral do meu rosto e bile sobe quando penso no que está prestes a acontecer.
Ele está pronto para agarrar o meu colar quando é jogado para longe. Tento controlar minha respiração quando me levanto com rapidez e me encosto na parede mas me sinto tonta. O homem já não olha para mim, ele se levanta e parece se preparar para lutar contra a pessoa que me salvou.
Minha mente grita para que eu corra para fora dali o mais rápido possível, mas minhas pernas não me obedecem. Na verdade elas parecem ficar ainda mais inertes conforme vejo o homem se aproximar e então se afastar quando uma labareda de fogo se aproxima muito do seu rosto.
Acho que estou oficialmente maluca quando finalmente me viro para ver quem me salvou e vejo um casal, chamas consumindo a mão direita do garoto sem causar danos a ele enquanto a garota ao seu lado parece produzir fumaça como uma máquina de gelo seco.
O homem dos olhos negros fala alguma coisa e a menina revira os olhos.
Meu corpo decide que é hora de ir embora quando a menina parece fazer o chão molhado congelar em uma fina camada de gelo e transformando o homem em uma estátua, ela o desmonta como um brinquedo em pedaços com um movimento de mão.
Já estou correndo para fora do beco quando escuto uma voz masculina dizer:
— De nada!
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