Capítulo 38
Capítulo 38, relatos.
"Querida, passo para te pegar às oito, precisamos conversar e já sinto sua falta. Te amo.
Assinado: Jack"
Levantei-me e fui até Otto.
— Para você.
Ele arrancou o papel da minha mão em uma única bocada. Desejei que ele sentisse todo o meu ódio por ser chamada de "querida" e Jack ter escrito o bilhete propositalmente.
— Você está dando papel para o Otto comer? — perguntou Ruby em voz alta.
Ah, se eu não te amasse, Ruby...
Axel comprimiu os lábios, já com as bochechas rosadas. Não precisava conhecê-lo muito para saber que mordia ou comprimia-os quando não queria falar sobre algo ou segurava o riso, o que era o caso de agora.
— Ele puxou da minha mão.
— Nananinanão, eu... — botei minha mão sobre sua boca.
— Vamos ver aquele bichinho peludo ali — disse, tirando-a de o de estávamos ainda tampando sua boca.
— Olha, que animal mais magnífico! — exagerei.
A voz dela saiu como barulhos inteligíveis sobre os meus dedos, soltei-os.
— O Otto vai fazer cocô de papel! — exclamou indignada.
— Se o Encantado pode cagar roxo, por que o Otto não pode cagar de uma cor diferente também? — retruquei.
Ela pareceu ter ficado sem argumentos.
— Verdade... e se eu comer... — começou, parecendo pensativa demais sobre o assunto.
— Esquece, esquece! Você já falou muito de fezes por hoje.
— Fezes? Mas eu nem sei o que são fezes.
— Olhe para ele — disse, virando sua cabeça. — Fala se não é a coisa mais linda que você já viu?
— Não é não.
E não era mesmo.
— Digo, a mais peluda — corrigi.
— Ah, pode até ser.
— Sabe o nome dele?
— Buriense. Porte de um leão com a cabeça e pelos de um búfalo americano — afirmou com certeza.
— Como você inventou isso tão rápido? — perguntei surpresa.
— Não inventei! Florent me contou.
E analisando bem, ele parecia de fato ser a mistura dessas duas espécies. Também estava adormecido, como o Eléfolo.
— Gente, eu estou segurando um Coácolo! — anunciou Ann.
Ela veio andando vagarosamente com um pequeno animal, que julguei ser um coala até sua cara de coruja dar um giro de 180° e me encarar com olhos amarelos vivos.
Agarrei Ruby pelo ombro de imediato.
— Calma, Anne! — ela afagou minha mão. — É só um Coácolo fofo.
— Claro... por que eu ficaria com medo de um Coácolo, não é? — disse, tentando parecer tranquila.
— Ah, encontrei vocês! — aquela voz escandalosa de Margaux invadiu o celeiro repentinamente junto com um forte rangido do portão.
Agarrei Ruby por completo e Ann apresou o passo até a gente com o bichano.
Até Dorian, que entregava um Coácolo para Axel, e Craig pareciam ainda não serem acostumados com os gritos de Margaux.
— Vocês devem estar loucos para um lanchinho, não é mesmo? — disse, dando um tapinha no ombro de Florent.
— Mas você nunca... — começou Florent e ela avançou falando mais alto ainda para cortá-lo.
— ROSEEE!
A garota, que mexia em bocados de feno, foi correndo até Margaux batendo as mãos nas roupas.
— Deixei um delicioso bolo no forno e água fervente ao fogo. Faça o chá e prepare a mesa, que do resto da comida eu já cuidei.
Rose concordou com a cabeça e saiu rapidamente.
— Pois então, meus amados, vão se limpar! Ninguém aqui quer comer sujinho.
Todos começaram a se mexer, em exceção a Aubrey que continuou sentava em um aglomerado de feno perto de onde estava Rose.
A Ray levantou a cabeça relinchando, assustando o resto das pessoas. Não entendi o que ela queria ou sentia. Mas Axel, mesmo entregando o animal em seu colo novamente a Dorian, direcionou o olhar a mim e apontou com a cabeça para Ray. Só então entendi que ela queria que eu me despedisse.
Aproximei-me e passei novamente a mão em seu focinho, seus olhos pareciam desesperados. Sentia-me culpada por deixá-la... Mas o que eu podia fazer? Não sabia ser capaz de criar um vínculo tão rápido com ela.
Beijei o canto do seu rosto e ela o abaixou novamente enquanto acariciava sua crina um pouco temerosa se estava fazendo o certo. Apenas quando me levantei, vi o quão chocados todos estavam observando a gente.
— É... chá — disse sem graça na tentativa de que mudassem o foco da atenção.
— É... é! Chá! — concordou Margaux ainda surpresa. — Vamos! Antes que a comida comesse a esfriar.
Ann e Ruby correram até a mim.
— Como você fez aquilo? — perguntou Ann.
— Por que o Encantado não é assim comigo? — perguntou Ruby triste.
"Porque você quase o matou em menos de uma hora!" tive vontade de dizer.
— Não sei... não faço ideia — menti.
"Viu como Ray se comportou? Tudo bem que ela está carente, mas não deixaria um estranho se aproximar," cochichou Margaux a Craig.
"Logo ela que era o unicórnio de nosso chefe. Curiosíssimo! Alice não vai gostar de descobrir que o unicórnio do pai se entregou para outra pessoa," disse Craig.
"Ela é a Alice!" resmungou Margaux.
"Oh, meu Deus, como não percebi?" disse perplexo, olhando-me de canto.
Abaixei a cabeça e os acompanhei para fora dali.
A casa deles era a do meio. Lembrava uma velha casa colonial europeia dos meus antigos livros de história. A porta de entrada dava direto na cozinha, com uma janela de madeira para a frente da e outra para a lateral, unida a uma grande mesa de madeira bruta, que caracterizava uma possível sala de jantar. A sala de estar era mais aos fundos, após um estreito corredor. Provavelmente, os quartos eram no segundo andar.
Precisava admitir, estava fascinada. Não que a casa fosse glamurosa ou mostrasse algum esplendor, muito pelo contrário. Era simples e rural, mas era a casa mais antiga que já tinha visto em toda a minha vida! Ela parecia mais acolhedora do que as casas estaduais — dos Estados —, por um motivo que não sabia descrever exatamente. Em nossas moradias tudo era tão limpo, polido e de certo modo objetivo. Não tínhamos lá muitas coisas para se chamar de decoração ou enfeite, o famoso estilo "clean". Acabara de descobrir que preferia essa desorganizada mistura com um leve ar empoeirado.
O fogão era a lenha, com brasas chamuscadas e um calor agradável vindo dele, ficava em um dos cantos da cozinha; ao lado oposto, havia um outro de ferro chumbado industrial; tinham ramos de alecrim, louro, coentro — entre outros, que não pude identificar de vista —, presos na parede ao fundo do fogão; em uma prateleira perto da pia de mármore escuro viam-se vários potes de vidro cheios de inúmeros temperos e especiarias, como canela em pau e cravos da Índia.
Margaux mexia uma panela de cobre ao fogo e Rose verificava o bolo no forno enquanto enchia as xícaras de chá com água fervente.
— Sentem-se. Sentem-se — pediu Craig.
Obedeci, sentando-me na cadeira mais perto a porta.
— Podemos ajudar Florent a regar as plantas? — perguntou Ann ansiosa.
— Que plantas? — quis saber Axel preocupado, analisando o exterior da casa.
— Aquelas — e apontou para as da entrada daquele pequeno vilarejo.
— Não vá longe.
E ela correu junto à Ruby até o poço onde Florent a chamava todo molhado junto a Dorian.
"Desde quando ele se preocupava com a segurança de Ann?" pensei.
Na mesa, uma pilha de pratos fundos, um açucareiro e colheres de prata. Tinha a impressão de que eles ficavam guardados durante anos e só eram utilizados em momentos especiais.
— O lanche pode ser rápido, por favor? Tenho hora para treinar — disse Aubrey com seu mau humor cotidiano.
— Pode ir antes, não precisa esperar — rebateu Margaux.
Segurei o riso, Axel não conseguiu. Aubrey seria capaz de avançar em Margaux.
"Expira, inspira, expira, inspira...", fiquei cochichando meu mantra para ela.
— Para vocês — e Rose começou a entregar as xícaras com chá. — Adocem por conta própria, por favor. Não quero me arriscar botando logo o açúcar.
O chá soltava uma fumaça densa, mostrando-se impossível de beber por um bom tempo. Ela serviu o bolo e Margaux sua sopa de aipim com frango desfiado, estavam ótimos. Saímos com o estômago pesado e sabendo que treinar naquele dia seria nada fácil.
[...]
Lembrava de uma garota comentando sobre ter visto um unicórnio no dia em que me lembrei de Ruby e outra descrente.
Como não tinha pensado na possibilidade deles existirem antes? E será que todos por aqui sabiam da existência deles e dos Coácolos, Borienses...?
— Te vejo à noite então — disse Aubrey, indo em direção aos galpões depois de deixarmos Ann e Ruby na Vila 4. — Na festinha de "boas-vindas" de Ann.
Eu e Axel seguimos em direção às Vilas, foi desconfortante. Tanto eu quanto ele não ousamos trocar palavras e ao chegarmos na frente da Vila 2, a dele, pensei que me livraria daquilo, mas ele continuou.
— Acho que a sua Vila já passou — comentei.
Queria acusá-lo de estar me seguindo.
— Eu sei.
— Então por que...?
— Preciso pegar um caderno no quarto da Aubrey — informou, balançando um molho de chaves.
— Não sabia que podia ficar entrando com tanta frequência em uma Vila que não é sua. Não acha um abuso do seu direito de Buscador? — provoquei.
— Não, posso entrar quantas vezes for necessário. Negligência seria eu não ter esse direito e viver diariamente em quartos alheios, não acha? — gelei e ele prosseguiu. — Ou melhor, quarto alheio.
Como ele sabia de Jack?
Fiquei calada, mas com uma fúria crescente dentro de mim. Chegamos na entrada da Vila e avancei para o meu quarto, controlando-me ao máximo.
— Tchau, te vejo em breve — disse Axel.
— Vai se foder! — soltei, abrindo a porta.
— Como quiser, milady — ironizou. — Mas eu estava me referindo a festa de Ann.
E começou a sair balançando as chaves de um lado pra o outro. Não aguentei mais.
— Axel!
Ele virou, o rosto surpreso.
— Como você sabe? — perguntei.
— Como sei de que?
As pessoas ao redor olhavam atentamente a gente. O mal de se ser conhecido em um lugar de fofoqueiros. Não poderia falar alto e nem queria.
— Entre — e apontei para dentro do meu quarto.
Ele continuou parado onde estava, observando-me.
— Não precisamos ter aquela conversa de novo não, né?
Revirei os olhos, ele se referia a discussão que tivemos mais cedo.
— Entre — repeti.
Ele hesitou, no entanto logo cedeu.
— Agora diz. Como você sabe que o Jack vem aqui à noite? — disse, fechando a porta atrás dele.
Ele me olhou assustado e mordeu os lábios. Que mania chata!
— Eu não sabia. Estava falando das visitas dele antes de ir para outra unidade.
— Mas ele... — comecei, mas parei ali mesmo.
Iria dizer que Jack não fazia isso antes, só que ele fazia sim.
— Mesmo assim como você sabe?
— Esse lugar não é lá muito grande e acho que já sabe muito bem que passam qualquer informação a frente.
Bufei.
— Nesse momento mesmo já deve estar rolando que você me convidou para entrar no seu quarto e me assediou.
— Eu não te assediei!
— Ainda não.
"Porque eu já sei que tivemos... um caso?" completou com a atenção desviando para meu quarto.
— Eu sei, é sem graça. Aubrey já falou isso.
Fez mais nenhum comentário e eu também não consegui tomar a iniciativa.
— Então, posso ir ou quer reclamar de mais alguma coisa? Pense bem. Se brigarmos agora, já terá a sua cota diária de amanhã quitada.
— Não, pode ir.
— Você quem sabe — e voltou-se para porta.
No entanto ainda tinha algo muito importante pendente com ele, mesmo tendo medo do que descobriria.
— Axel!
Ele parou e tirou a mão da maçaneta.
— E quanto a Ann?
— É claro que não iria recusar a oportunidade. Diga, anotarei os créditos extras.
— O que você fez com ela?
— Eu fiz nada com ela — respondeu, respirando fundo.
— Então o que "eles" fizeram com ela?
— Eles querem saber se tem como uma puro-sangue sobreviver depois de uma gestação. Ann e Ruby não são, mas têm um sangue significantemente bom.
— Vocês botaram um embrião dentro dela?! — soltei junto com toda a raiva que continha.
— Não! — exclamou de imediato. — Ela só é uma das pessoas em tratamento. Para saberem as reações que podem causar e, mais na frente, se vai funcionar.
— Então andam usando mais crianças como cobaias? — perguntei ainda exaltada.
— Estão sendo "usadas" para o próprio bem delas. E seu. Como não consegue ver?
— Porque não sou uma alienada que nem eles e você. Acha que não devo te culpar se alguma coisa acontecer com Ann?
Axel levou a mão a cabeça desnorteado. Parecia que eu era para ele uma acéfala.
— Óbvio que nada sério irá acontecer. Não é tão simples assim.
"E não precisa, eu me culparia por tudo."
— Então ninguém morreu por causa disso?
Ele desviou o olhar, encarei como um sim.
— Quem levou ela para lá? — não obtive resposta. — Hem, Wright? Quem levou Ann para outra unidade?
Ele mordeu o lábio de novo e continuou com o olhar ao longo. Pensei que não fosse me responder, até que disse:
— Moore.
Fiquei sem argumentos.
— Isso mesmo, senhorita Clark — disse, dando ênfase no meu sobrenome, não tinha percebido ter feito o mesmo. — Se quer saber sobre o que aconteceu com Ann, porque ela ficou longe por quase um ano... pergunta ao Moore. Ele vai te responder com todo o prazer.
Então fixou os olhos novamente nos meus e completou:
— Já posso ir?
— Espera, Axel... — pedi, baixando a guarda e segurando o seu braço. — Eu só não consigo engolir o fato de você ter feito questão de participar.
— Porque se eu não sobreviver, posso pelo menos salvar a sua vida — admitiu, quebrando o contato entre nós.
Um nó se formou em minha garganta.
— Como consegue dizer isso, se diz não se lembrar de mim? — perguntei com dificuldade.
— Eu não me esqueci de você por completo, antes tivesse sido. Sou bombardeado constantemente com memórias suas e isso é uma droga! — gritou. — Porque eu deveria gostar de você, sentir saudades... Mas eu sinto nada. E os meus sentimentos por April parecem cada vez mais falsos.
"Só que você consegue tornar tudo pior, é incapaz de me mostrar que estou errado."
— Não fale desse jeito, Axel — murmurei fraca. — Sabe que estou tentando...
— Está tentando mesmo, Anne? Não é o que me parece. E o mais engraçado que quem deveria realmente me entender é você.
Meu rosto queimava e o meu peito doía com minha própria respiração.
— Sinto muito... — admiti, prendendo o choro. — Acho que eu ainda não consegui entender que poderia algum dia te perder.
Os segundos que seguiram pesaram entre nós, ainda mais porque o que saiu da boca dele ficaria para sempre marcado em mim.
— Desculpas, mas você já me perdeu — e saiu.
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