Capítulo 36
Capítulo 36, relatos.
— ANNEEEE!
— Acorda. Vamos!
Abri os olhos e Ann e Ruby estavam me observando com seus olhos arregalados e contentes.
— Ham? O que... — tentei falar, lutando contra a luz do quarto.
— Nós vamos na floresta — avançou Ann.
— Vamos conhecer bichinhos — completou Ruby encantada.
— Como vocês entraram aqui?
— Aubrey passou a gente pela janela e está esperando na porta — respondeu Ann.
Grunhi e enfiei a cara de novo no travesseiro. Não estava mesmo com vontade de levantar cedo para ver "bichinhos".
— Axel vai — disse Ann de imediato na tentativa de me convencer.
— O QUÊ?!
Todo o meu sono tinha ido embora em frações de segundos.
— Ele disse que tem uma surpresa para gente. E que se ficarmos quietinhas, vai nos apresentar o Encantado.
— Eu não deixo vocês irem — disse com um tom até autoritário. — Principalmente, você Ann.
— Ah, por quê? — disse Ruby, fazendo biquinho.
Ela iria chorar.
— Cadê esse troglodita?
— Está esperando a gente nas Fogueiras — respondeu Ann.
— O que é troglodita? — perguntou Ruby confusa.
Não respondi.
"Dá para ir logo?", gritou Aubrey do outro lado da porta. Afastei os cobertores.
— Você não vai brigar com ele não, né? — perguntou Ann triste.
Era exatamente o que eu pretendia fazer.
— Não. Quando que eu briguei com ele? — disse, sendo dissimulada.
— Ontem à noite — respondeu sem rodeios.
— Como você sabe?
— Ele pediu para que não avisássemos que ele iria.
— Então ele acha que eu deixaria de ir por causa da desprezável presença dele?
Ann concordou com a cabeça.
— Pois nunca estive tão disposta a conhecer bichanos às seis da manhã.
Arrumei-me e fui com elas até as Fogueiras. Estava com fome, sono e mal-humorada. Só esperava que esses animais fossem, realmente, incríveis.
[...]
— Esse cocô está roxo! — exclamou Ruby agachada, analisando alguma coisa entre as folhas.
— É verdade! — disse Ann.
Estiquei-me para ver. O cocô era de um marrom escuro, mas tinha algumas nuances arroxeadas.
— Por que fizeram cocô na trilha? Que nojento! — reclamou Ann.
— A mamãe deles não ensinou que não pode? — perguntou Ruby indignada.
— Isso não é cocô de gente — comentou Axel.
— É de unicórnio? — perguntou Ruby animada.
Ele sorriu.
— Pensei que você não quisesse fazê-la acreditar nessas coisas — comentei.
— Porque a maioria das histórias que ela escuta são mentirosas, mas algumas não — respondeu sério.
— Então eles existem mesmo, né? — disse Ruby com olhos brilhantes de emoção. — Eu sabia!
— Parabéns, conseguiu o que queria — disse, retribuindo a gentileza.
Segundos depois ouvi passos vindo em minha direção. Não pretendia me desculpar com ele, porque quem devia fazer isso não era eu. Ruby sabia e acreditava em contos de fadas cinco vezes mais do que uma criança normal da idade dela.
— Tudo bem?
— Sim.
Era Aubrey.
— Não lembrava de vocês brigarem tanto.
— Nem eu — concordei. — Mas também não lembrava dele ser assim.
— Tenta pegar leva com ele.
— Axel se mandou por meses apenas alguns dias após a morte de April, sabia do que estava acontecendo com Ann... Você tem ideia do que podem ter submetido ela? E ele estava envolvido. Eu entendo que ele não lembra mais do que tivemos, mas o Axel das minhas lembranças era o cara mais gentil que se podia conhecer.
"Não sou eu que tenho que pegar leve."
Ela ficou em silêncio a princípio.
— Não sei se concordo ou discordo — admitiu.
— Não precisa concordar comigo.
— Nunca fiz isso mesmo. Mas, no momento, ele está te odiando.
— Pelo o que? Eu tinha todos os motivos do mundo para brigar com ele quando soube de Ann. Você sabe como ninguém o quanto me doeu saber o que Moore possa ter feito com a memória dele.
— Eu acho que não apagaram você por completo... Te deixaram, mas confundiram os sentimentos de Axel. Ele anda sentindo por April o que sentia por você. E ele lembra que foi você quem a matou.
— Então ele sente por mim o que sentiria pela pessoa que me matasse?! — soltei absorta com as palavras dela.
— Cuidado! Mais cocô de unicórnio a frente — avisou Aubrey, indicando um bolinho igual o que tínhamos visto segundos antes. — Pelo jeito soltaram os unicórnios para um passeio. Esses bichos parecem que têm o intestino solto.
Ela reclamou, parecendo realmente irritada. Mas sendo Aubrey, com certeza, estava fazendo isso por implicância.
— Já está chegando? — perguntou Ruby pela quinquagésima vez.
Aubrey fez sinal para que deixássemos aquela conversa para depois, assenti.
— Sim — respondeu Axel.
Quando ele concordou para Ruby, tanto ela quanto eu ficamos aliviadas. Já tinha conhecido mais lugares do Refúgio em um dia do que desde que cheguei aqui.
Descobri que o Círculo Central era apenas umas das partes do Refúgio, com isso quero dizer que nem era tão significante quanto imaginava. Passamos pela Colheita, um lugar relativamente grande e com muitos do Três trabalhando nela — Jack devia ser um dos que estavam ali. E eu podia jurar que boa parte da nossa comida vinha de fora daqui, dos Estados.
As pessoas viviam mais na floresta do que suspeitava, existiam muitos lugares entre essas árvores, o que me fazia lembrar do coreto que havia visitado com Axel. Foi arrebatador lembrar depois do que ouvi de Aubrey.
— É ali — informou Axel, apontando para um ponto na nossa frente.
Associei a uma pequena vila de camponeses. Tinham umas três casas e enormes celeiros e estábulos com um galpão grande ao fundo. Caçadores passavam rapidamente de um lado ao outro sem mal conseguirem ver o que acontecia ao seu redor.
Alguém deu um forte esbarrão em meu ombro.
— Oh, desculpas! — pediu a garota, levando as mãos a boca.
Ela carregava um balde de madeira com uma comida irreconhecível e malcheirosa.
— Desculpas mesmo... — ela levantou o olhar a mim. — Alice!
Ela pareceu mesmo espantada.
— P... Per... Perdão, Alice — gaguejou com as bochechas corando.
— Está tudo bem — disse, completando para reconfortá-la. — Sério. — observei como o balde estava muito pesado para o seu braço magrelo. — Quer ajuda? — ofereci.
— Como assim? — estranhou, encarando-me como se eu falasse de modo difícil demais ao seu entendimento.
— Quer que eu te ajude com o balde?
Ela ficou pasma. Não estendi o motivo. Por que ela agia assim?
— Não, não preci... — começou, ficando meio trêmula.
— Eu levo — interviu Axel.
O gesto dele foi o suficiente para ela adquirir uma forte gagueira. Tinha ficado de fato desconfortável.
— Não pre... — recomeçou.
— Faço questão — disse Axel com um sorriso, pegando o balde e levando até o estábulo.
Ele acelerou o passo a nossa frente carregando aquela comida sem dificuldade. Pelo jeito, o Axel gentil surgia apenas quando era conveniente.
— Eu juro que não queria incomodar vocês — ela voltou a dizer instantes depois de voltarmos a andar.
— Já disse que está tudo bem. Você apenas esbarrou em mim, não foi culpa sua.
— Eu apenas esbarrei na senhorita? Eu poderia tê-la machucado.
— E eu compreenderia mesmo assim — disse, sorrindo para ela. — Poderia ter sido o contrário.
Esperava que aquilo fosse deixá-la melhor. Ela iria falar mais alguma coisa, mas desistiu.
— Anne! Dá para você explicar a essa pirralha que se ela não parar de falar sobre cocô, vou esfregar um nela na carinha dela? — resmungou Aubrey, referindo-se a Ruby.
Às vezes ela se mostrava tão infantil quanto as próprias crianças ao querer revidar na mesma altura. A garota continuou calada, recuando ao meu lado.
— E aí? Qual seu nome? — perguntou Aubrey ao perceber a presença dela.
Ela olhou atrás de si.
— Ah, meu nome? — questionou ao perceber que estava falando com ela.
— Sim?! — respondeu Aubrey confusa com a pergunta. — Usa um código de identificação por acaso?
— Rose. Rose Valerie.
Fazia sentido o nome. A Rose lembrava uma rosa com suas bochechas constantemente tonificadas de rosa, cabelos castanho-avermelhados e olhos entre o mel e verde. Era muito bonita, tinha feições tão delicadas quanto os de uma boneca de porcelana.
— Wright. Aubrey Wright.
— Ah, eu conheço você e Alice. Quero dizer...
— Pode me chamar só de Alice — deixei claro.
O hábito de se tratar desconhecidos pelos sobrenomes não se aplicar muito aqui — isso caso você tivesse um. Apenas para meras formalidades, o que eu não via a necessidade deles fazerem tanta questão comigo. Porém, Aubrey era uma das pessoas que botava tanto o fato de ter um sobrenome como por ele ser conhecido em primeiro lugar. E acho que acabei fazendo mais questão de esclarecer por causa dela.
— ROSE! ROOOSE! — gritou uma senhora toda suja de lama e cabelos desgrenhados.
A senhora aparentar ter mais de trinta anos, talvez uns quarenta, era o mais surpreendente, mesmo parecendo ter acabado de cair de um chiqueiro e vestir roupas nada convencionais. Ela usava galochas de borracha, um vestido de mangas curtas indo até a altura dos joelhos, um avental poído amarado na cintura e luvas.
— Eu pedi para que fosse buscar a comida do Adam a mais de quinze minutos! — gritou a mulher.
Parecia ser possível que ela começasse a soltar fogo pelas ventas se Rose demorasse mais um segundo.
— Eu sei, senhora Margaux! Mas é que a Eve...
— NÃO ME INTERESSA! Já é a segunda vez que esse un... — gritou Margaux com o rosto igual um tomate ambulante.
Tampei os meus ouvidos com medo de que seu grito conseguisse estourar meus tímpanos. Independentemente do que ela tenha dito foi de interesse de Ann e Ruby, pois saíram correndo desesperadas na nossa frente quase atropelando Axel, que por pouco não caiu em cima de Margaux.
Ela soltou um olhar furioso a ele.
— SEU MOLEQUE...! — começou Margaux.
— Ele está com a comida do Adam, senhora! — disparou Rose em defesa dele.
Margaux engoliu a bronca que tinha para dar.
— Quem são eles? — perguntou ríspida. — Já disse que não tolero conversinha durante o expediente. Acha que eu devo dar conta de tudo sozinha?
— Não a reconhece?
— E deveria? — perguntou, examinando rapidamente Aubrey para voltar a formular uma nova bronca. — Eu...
— Não ela! A outra — disse, apontando para mim.
Fiquei constrangida. Margaux botou toda a atenção em mim e seu rosto mudou completamente. Trocando as feições rígidas por um um sorriso de admiração.
— Oh, meu amado bom Pai, não pode ser verdade! Não, não, não. Mas é ela mesmo! — e arrancou suas luvas, enfiando-as em um dos bolsos do avental. — É ela em carne e osso! E com o mesmo olhar da mãe — pressionou as minhas bochechas contra as palmas das mãos, como se não acreditasse no que estava à frente de seus olhos. — Graças a Deus, puxou nada do progenitor — completou.
Então pareceu ter tomado ciência do que tinha dito.
— Não que isso fosse ruim! Mas é que sua mãe sempre foi de uma beleza estonteante. Já seu pai... — corrigiu.
— Tudo bem, não os conheci mesmo.
Os olhos dela se arregalaram.
— Quero dizer, conheci, mas não me lembro.
— Ah... Ah, claro! Você não se lembra... — e passou as mãos sobre os cabelos rebeldes em uma tentativa em vão de ajeitá-los.
— Está com fome? — perguntou animada.
— Viemos para ver os animais — informou Axel.
— Vá! Vá logo, garoto! Adam está morrendo de fome — disse sem nem direcionar o olhar a ele.
Axel apenas revirou os olhos e seguiu Rose com o balde quase transbordando.
— Venha! Vou fazer chá — disse, colocando novamente o sorriso no rosto.
— Não, muito obrigada. Não estou com fome.
— Oh, não gosta de chá? Desculpas, fazemos chá para quase tudo aqui, foi a força do hábito. Prefere um suco? Posso fazer um. Ouvimos dizer que a nossa comida é bem melhor do que a que você devia estar acostumada nos Estados — e deu uma piscadela.
Provavelmente o que ela ouvia vinha dos grupos que iam para os Estados periodicamente.
— Não, eu não estou com fome mesmo. Quero ver os animais.
— Ah, sério que você veio ver esses bichos bizarros? — e bufou. — O que têm de esquisito, têm de temperamentais!
Sorri e ela desembestou a gritar de novo:
— FLORENT!
E um garotinho magrelo de cabelos crespos veio trotando até ela ofegante.
— Estou aqui! Estou aqui!
— Quero que faça uma coisa.
Ele levantou os olhos enquanto escorava o peso do corpo sobre os braços nos joelhos.
— Espera... É a... É a... — tentou dizer assustado.
— Sim, é ela! Não é um máximo? — cantarolou Margaux no meio de palminhas. — E veio conhecer os nossos abomináveis animais de criação. Apresente-os!
Ele pareceu não ter compreendido.
— Apresente-os! — ela repetiu mais alto.
— Sim, sim — disse, esticando-se.
— Venham comigo!
E ao seguirmos ele, Margaux foi às pressas até uma construção de pedra, um poço. Puxava o balde o mais rápido que podia. Florent nos conduziu até o estábulo que tinha ao nosso lado esquerdo. Axel dava cenouras a dois cavalos junto de Ann. Pelo menos eu pensava que era...
— Ahhhhh! — botei a mão na boca apavorada.
Florent se assustou, mas tanto Axel quanto Ann abriram sorrisos radiantes ao ver minha reação. Cheguei um pouco mais perto, não acreditando no que via.
— É um...? Meu Deus!
— Calma, eles não mordem não — disse Aubrey, acariciando um deles.
— Essa é a Eve! — disse Ann alegremente. — Ela não é linda?
— Sim... E essa coisa na cabeça dela?
— É um chifre, ué — respondeu, dizendo o óbvio.
— Eu sei! Mas isso não deveria estar aí.
— Por que não? — perguntou Florent confuso.
— Porque cavalos não têm chifres!
— Mas eles não são cavalos, são unicórnios.
— Se quiser pode chamá-los de licórnios ou licornes também — comentou Ann.
— Esse é o problema! Unicórnios não deveriam existir... Né?
— Eles sempre existiram — retrucou.
— No seu mundo. Porque no meu, eles não existem.
— São cavalos com chifres. Apenas isso — disse Aubrey entediada.
— Não exatamente... mas são seres extremamente inofensivos — completou Axel.
Reparei a égua/unicórnio que Ann alimentava. Ela era linda! Tinha um pelo branquíssimo e brilhante, parecia até prateado contra o sol; seus cílios longos, pretos e grossos; e no meio da testa, antes de sua longa crina, um chifre de marfim esbranquiçado e espiralado.
Meu medo foi se esvaindo enquanto chegava mais perto dela. Passei a mão sobre o seu focinho e ela fechou os grandes olhos negros.
— Até que ela é um doce — comentei.
Galopes rápidos surgiram atrás de mim. Era Ruby agarrada a crina de um potro/unicórnio que relinchava. Sentia que Ruby iria arrancar a crina do pobre animalzinho com toda a força que o segurava. Suas patas finas com joelhos ossudos galopavam rapidamente até a gente, queria se ver livre dela. Tinha um pequeno chifre, ainda em crescimento, e pelos esbranquiçados tão claros quantos o de Eve.
— O Encantado! — gritou Ruby entre enormes gargalhadas. — Ele é um fofo, não acham?
— Ele está querendo se livrar de você — rebateu Aubrey.
Rose veio correndo atrás de Encantado.
— Ela o montou antes mesmo que eu conseguisse ver.
Axel pareceu nem notar o que acontecia, estava com a atenção totalmente presa a Adam. Adam de pelos castanhos e um chifre um pouco maior do que o de Eve. Axel ria enquanto ele devorava rapidamente o que lhe era dado. Por um certo momento me perguntei se eles não deviam comer coisas parecidas com nuvens do entardecer e raios de sol como nas lendas... mas lembrei do que Aubrey disse.
Axel tinha feito a barba, ainda usava no pulso direito a pulseira de macramê da noite anterior e agora conseguia ver um anel no anular esquerdo.
— Anne! — gritou Ruby, chamando a minha atenção.
— Oi.
— Você não vai ver as...? — e o pequeno unicórnio avançou com ela.
Rose foi correndo atrás desesperada, e Ruby não conseguia parar de rir. Aquele, claramente, foi o melhor dia da vida dela.
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