Capítulo 3
Capítulo 3, relatos.
No caminho para casa, pela primeira vez, fui capaz de perceber como uma linha de trem pode dividir um único mundo em dois outros um tanto distintos. Deixando de um lado, minha escola e uma cidade em movimento, mesmo que tênue, em evidência; e no outro, ruas mortas compostas apenas de fileiras e fileiras de belas casas, fazendo o lugar um tanto monótono.
Desci a passarela tentando aceitar que, infelizmente, o meu lado era o monótono.
Os meus pais eram diferentes, os considerava muito tradicionais. Tirando os mais antigos e os profissionais da área de gastronomia — além dos Reeds, família do Loyal —, eu não conhecia mais ninguém que fizesse questão de cozinhar. As comidas preparadas da forma tradicional eram caríssimas e apenas vendidas em certos restaurantes, o resto vinha pronto desde as fábricas. Raros eram os produtos não em conserva, congelados, ou pré-prontos.
A minha mãe, Jasmine, tentou várias vezes me ensinar a cozinhar, porém sempre neguei os seus esforços. Eu, realmente, não tinha jeito e não via funcionalidade. Os outros modos eram bem mais práticos e rápidos, mesmo com seus pontos negativos os preferia a ter de cozinhar. Só não poderia negar que o cheiro e sabor eram incomparáveis.
Da entrada da minha casa, sentia-se aquele cheirinho maravilhoso... Era frango — sinônimo de data especial. Encostei o dorso da mão sobre a maçaneta.
— Boa tarde, filha — disse Caleb, meu pai, olhando a porta se abrir por cima de seus óculos e sentado em sua poltrona de couro preto na sala.
Às vezes, achava que ele fosse um pouco paranóico, pois tinha a visão tão boa quando a minha e persistia em dizer que precisava usar óculos. Juraria que seu oftalmologista tinha lhe passado um número de grau simbólico para que parasse de visitar frequentemente seu consultório reclamando de sua visão não ser tão boa quanto antes.
— Boa tarde — respondi, fechando a porta novamente.
— Melhorou do enjoo? — perguntou sem rodeios.
— Tive um ótimo dia de aula, obrigada por perguntar — ironizei.
Ele sorriu. Apenas seus poucos cabelos grisalhos entregavam sua velhice, porque, apesar de ter passado dos 50 anos há um certo tempo, ainda aparentava estar entrando na casa dos 40.
— Acho que sim — respondi.
— Comeu? — perguntou minha mãe da cozinha ao ouvir minha voz.
— Sim! — gritei de volta.
— E o que seria? — quis saber.
Pensei se devia mentir, mas não. Não tinha motivos notórios para isso.
— Umas torradinhas assadas.
E como já imaginara, mesmo eu deixando clara a ausência de fritura, não seria um tipo de comida "aprovada" para eles.
— Tinha nada melhor? — perguntou Caleb.
— Eu estava com vontade e nem me lembrei desse enjoo.
Mesmo que não parecesse, eu não tinha lembrado de fato.
— Você está assim faz mais de uma semana, Anne! Como não se lembrou? — perguntou indignado. — Por acaso só sente mal quando é pertinente?
— Desculpas. Eu só queria comer e comi.— disse incomodada com a situação. Não aguentava ser tratada como uma doente, muito menos de que duvidassem de mim. — Mas se preferi podemos visitar um médico.
— Tudo bem — cedeu ao ouvir a proposta. — Se está se sentindo melhor, não há necessidade.
Ele não disse mais nada, retornando ao seu jornal online diário. Fazia questão de não passar um dia sem estar por dentro das notícias. Enquanto eu estava satisfeita por tê-lo feito parar de questionar, pois, mesmo que meus pais tentassem disfarçar ou desmentir, me parecia nítido o quão desprezível a ideia de fazer check-in em um hospital era para eles.
Passei direto por Caleb e fui até a cozinha colocar a minha garrafa para encher.
— Novidades, meu amor? — perguntou Jasmine.
— Nada demais, como sempre — não via sentido em falar sobre certos assuntos com ela.
Éramos muito próximas, mas, mesmo assim, era incapaz de me abrir sobre os meus sentimentos com ela. Na verdade, acho que com ninguém. Evitava até falar de Jack com Katy.
Meus sentimentos se encaixavam perfeitamente na "metáfora do iceberg". Eu deixava apenas uma mísera parte deles transparecer e o restante — a parte maior, mais profunda e submersa — poucos eram capazes de alcançar. Se alcançassem.
— Pois eu tenho — disse com um sorrisinho, tirando coxas e sobrecoxas de frango do forno.
— Ah, é... o quê? — perguntei, colocando a garrafa para encher no filtro.
Era estranho Jasmine ter uma novidade, mas por exatamente ser ela, provavelmente, era nada relevante. Ela e Katy eram muito parecidas neste ponto.
— Sábado passado, um pessoal do governo abriu o acesso à rua C13, essa adjacente à nossa.
Esperei dizer mais, mas não foi o que fez.
— Grandioso, mãe — brinquei. — Está pretendendo se mudar para uma rua de distância? Este seria o motivo da proteína em um dia de semana?
Ela riu. Lembrava dela comentando da promoção na sessão de aviários ontem, comprou três dos maiores frangos que tinham. Éramos uns dos poucos com condições de comer um.
— Você não ficou sabendo de uns adolescentes que foram encontrados em uma das Zonas Abandonadas semana passada?
"Como assim? Todo mundo deu para falar deles agora?" pensei.
— Diga — tentei demonstrar desinteresse.
— Tenho quase certeza que foram matriculados na mesma escola que a sua. Pelo menos, não conheço nenhuma outra aqui perto — continuou.
— Ouvi falar deles sim.
— Já os viu?
— Acho que sim.
"Não tem certeza se viu alguém?" questionei-me.
— Quero dizer... sim, só que de longe e não tinha muita certeza — corrigi.
E esse era um dos meus problemas com mentiras, começava a me explicar demais. Achei ter feito com que ela notasse, porém comentou nada.
— Como são? — perguntou animada.
— Normais. Não são uns homens selvagens, como deve ter visto em muitos sites sensacionalistas. Mas o que tem a ver? — perguntei sem entender o objetivo.
— Então, o governo os instalou em duas casas de uma das vilas destinadas aos sem teto. Eles precisavam de um lugar para morar, era o mínimo a ser feito.
"Eles eram praticamente meus vizinhos agora?!" foi a única coisa que veio na minha mente. "Essa vizinhança já foi melhor habitada."
Entendia a escolha da Mundi, a minha rua era uma das mais afastadas do centro — ou o que era considerado um centro. Era uma das menos procuradas, quase ninguém queria casas por aqui — exceto alguns adultos com gostos diferenciados, igual meus pais —, mesmo sendo mais baratas — digo em relação aos imóveis de mesmo porte do lado legal do "mundo". Aquela rua nem devia ter instalação de câmeras ou acesso de transporte público.
— Eles são os únicos naquela vila. Na verdade, em toda aquela rua. Por que você não tenta se aproximar deles? Precisam de amigos. Deve ser horrível mudar assim drasticamente o estilo de vida — disse, demonstrando tristeza e empatia.
— Não. — disse firme. — Existem muitas outras pessoas naquela escola e muito dispostas a fazerem amizade com eles.
— Como assim, Anne? Coitados.
Ela ficou perplexa comigo.
— Eu entendo que eles passaram por muitas dificuldades, mas não sou boa em fazer amizades. Tirando que parecem ser bem reservados.
Não queria ser obrigada a falar com eles novamente.
— Você poderia chamá-los para jantar aqui em casa então. Não vejo problema, demonstraríamos que somos uma vizinhança acolhedora.
E ela não pareceu querer desistir da ideia.
— Está maluca, mãe? Vou chamar um bando de gente desconhecida para entrar na minha casa, e jantar, e sei lá mais o que? Não concordo nem um pouco. Se você quiser entrego uma torta de "Boas-vindas!", como qualquer outra pessoa sã faria. E olha que isso seria o máximo — disse inconformada com a possibilidade deles na minha casa.
— E se o Jack... — iniciou.
Minha garrafa começou a transbordar do meu lado, fechei o filtro de imediato.
— Viu? Isso foi um sinal de que você teve uma péssima ideia — disse, pretendendo encerar aquela conversa.
Botei minha garrafa na geladeira e fui saindo para o meu quarto.
— Já desço para o almoço — informei enquanto subia as escadas, deixando ela e aquele assunto para trás.
[...]
Eu neguei o almoço, como o pretendido. Estava com o estômago embrulhado, sentindo que qualquer alimento entraria e sairia logo depois. Mas agora já eram quatro horas da tarde e estava faminta.
Desci e esquentei duas coxas grandes com uma cara bem suculenta. Não queria comer mais nada além do frango — iria me dar esse luxo —, portanto nem encostei nas batatas cozidas e em um pote com arroz.
Subi para o meu quarto e me sentei na cadeira de escritório em frente à minha escrivaninha de canto, arrastando-a até minha janela de peitoril baixo com vista privilegiada para frente da minha casa. Tinha nada de "vista privilegiada" para uma pessoa normal, mas para mim tinha. Jack devia estar quase chegando e, caso não tenha contado ainda, ele era meu vizinho — também.
A família dele era parecida com a minha no quesito "perturbada e querer viver nas margens da civilização". Ele vinha comigo, Loyal e Katy para casa, mas só tínhamos a companhia deles até o terceiro quarteirão. Morávamos a seis de distância — seis verdadeiros longos quarteirões — e os meios de transporte eram realmente poucos por aqui. Tirando que nem podíamos ir de bicicleta, porque as ruas principais tinham um tráfego intenso e com ausência de ciclovias — um grande defeito da parte populosa.
Comecei a comer as coxas com a mão, afinal não fazia sentido comê-las com garfo e faca. Admitindo para mim mesma que o sabor delas eram melhores do que imaginava.
Quando voltei a olhar para janela, lá estava Jack com os cabelos castanhos molhados e sorrindo no meio dos Abandonados. As bochechas morenas estavam coradas com o sol, mostrando que provavelmente estava até agora jogando. Desceu a rua pela calçada da minha casa, o mesmo lado da dele, conversando sobre alguma coisa muito animada — todos riam muito. Meu corpo se despertou, parecendo ser uma guarda noturna adormecida até notar um sinal de ameaça.
Quando chegaram à porta da casa dele, a uns sete metros de distância, ficaram conversando por alguns segundos até repentinamente Jack fazer sinal para que esperassem e vir correndo em direção a minha.
— Ah, não. Não. Não... — soltei, entrando em pleno desespero.
Eu usava um shortinho de ginástica, uma regata antiga, o cabelo preso em um nó despenteado e boca e mãos sujas do molho do frango.
A campainha soou, só pude pensar que deveria correr e impedir que abrissem aquela porta. Disparei quarto a fora na vontade de conseguir descer a escada o mais rápido que pudesse.
Porém, minha mente, vacilante com o movimento, transformou os degraus em um caracol confuso de diferentes profundidades. Levando meus pés tropeçarem em si, minha cabeça girar e um forte enjoo subir. As minhas palmas estavam cada vez mais pegajosas ao toque com a parede, o que tentei agarrar para não desabar. E não poderia mais abrir a boca para gritar à minha mãe que seria um erro encostar naquele monitor, pois ela estava ficando cheia de um líquido azedo com o gosto da comida que tinha acabado de comer.
Então virei-me debilmente na direção de um antigo vaso azul-anilado com branco sobre uma mesa aos pés da escada, soltando tudo ali mesmo. Em seguida, fui de encontro ao chão.
Só me lembro de uma luz vindo da porta antes de tudo ficar preto.
[...]
Cinco dias antes...
Axel.
— Ela está bem — repeti para mim mesmo. — Estamos todos bem.
Soube o quão patéticas as minhas atitudes estavam sendo assim em que me afastei do restante do grupo. Mason sempre foi o mais suscetível a ceder aos mandos de Aubrey, não por ser obediente mas por ser ignorante e alheio a "meros sentimentalismos".
Desabei no chão, terminando de recuperar o ar e procurando não perder a razão. Então, finalmente, aqueles passos que persistiram em me seguir, independentemente do quanto mais eu adentrasse aquele lugar horroroso, silenciaram. Reconheci Willian apenas pelo barulho da sua respiração entrecortada.
— Suspeitava há um bom tempo — ele disse, sentando-se ao meu lado na calçada. — Ela é hemofílica, né?
Descobriram a doença de Aubrey quando ela ainda tinha menos de 7 anos. Sempre estava com manchas roxas pelo corpo, cansada e periódicos sangramentos nasais. Mas só procuraram saber o que realmente estava acontecendo com ela ao ter apresentado sangue na urina.
Assenti com a cabeça e ele não fez questão de que eu colocasse em palavras. Pronunciou-se apenas depois de um certo tempo.
— Desculpas, cara. Ela quem me pediu para que deixasse você fora dessa, já tinha tomado a decisão antes mesmo de chegarmos aqui... É muito louco pensar em voluntariamente pedir para alguém quebrar seu antebraço.
— Não precisava ser ela — rebati. — Poderia ter sido comigo! Para ela vai ser pior, não entende isso?
"É o que está me deixando indignado. Se fosse para quebrar o membro de um de nós, não seria logo do com problemas de coagulação."
— Você sabe melhor do que eu... Ela faria de qualquer jeito.
Minha raiva ficou ainda maior porque era a mais pura verdade e eu não queria admitir ser.
— Eu sei que ela é a pessoa mais importante do mundo para você, só que tem um motivo maior por trás de tudo.
— Não há motivo que seja maior do que ela estar bem, Willian — as palavras saíram ríspidas e firmes de mim.
Ele passou o braço pelos meus ombros, afagando o sob a sua mão em repouso. Willian foi o mais perto que cheguei de ter um amigo, digo tirando as pessoas do meu ciclo familiar. Não conversávanos um com o outro tanto quanto gostaríamos, tínhamos criado rotinas diferentes e ele novas amizades. Mason cumpria o papel de melhor amigo muito melhor do que eu faria em seu lugar.
— Você entendeu o que eu quis dizer — ele sinuou.
Eu entendi muito bem a referência e fiquei desconfortável por, mesmo que tenhamos uma intimidade rasa, ele ainda era capaz de me entender além do normal.
— Não mesmo — menti, forçando firmeza.
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