Capítulo 22
Capítulo 22, relatos.
De uma coisa eu tinha certeza: Ira queria me matar.
— Não... — e caí no chão.
— Okay, já deu para você.
Ele fez anotações no caderno.
— Você vai hoje à enfermaria.
Ele rasgou um pedaço da folha e me entregou.
— Um presentinho meu.
"Dores musculares fortes nas coxas.
Injeção com cortisona.
Ira Beckett."
— Obrigada — agradeci com a voz abafada pela minha respiração pesada.
— Notei que tem algo errado com você.
— Deve ser porque estou mal conseguindo andar.
— Não, não é. Sei quando um aluno meu não foca nos exercícios.
— Nunca consegui.
Ele me olhou desacreditado.
— Está acontecendo alguma coisa, né? Pode falar. Não cuido só da parte física, também da mental.
Sorri. Ira era um treinador rígido e passava a impressão de ser sério e extremamente severo, mas ele tinha um bom coração e se preocupava com os outros.
— Briguei com uma pessoa. E percebi que estava errada, fui uma imbecil.
— Por que não foi ainda conversar com ela e dizer isso?
— Acho que ela não está a fim de falar comigo.
— E será com você aqui choramingando que irão se acertar?
Ele estava certo...
— Vou tentar — disse, apertando a mão que tinha estendido para mim.
— Aproveita e tira um dia de folga. Arruma essa confusão dentro da sua cabeça.
— Obrigada, Ira! Mas não sei se só isso seria o suficiente.
— Precisa descontar um pouco disso, sei como é.
Ele olhou para o chão e depois sorriu parecendo ter tido uma ideia.
— Já teve aulas de tiro?
[...]
Mordi a boca tentando abafar o grunhido de dor. Se esse líquido vermelho não resolvesse o meu problema, seria melhor partir para morfina.
— Relaxa, vai passar — pediu Madeline.
— Espero.
— Aqui — disse Lauren, entregando-me um copo d'água.
Peguei-o e bebi em grossos goles. Estava gelada demais, mas perfeita para minha sede.
— Então, foi tudo bem lá na casa do senhor Moore?
— Não muito.
— O que ele disse?
— Sobre eu ter que arrumar logo um namorado, pois farei dezoito anos ano que vem.
— Ah, claro! Seu período mais fértil está chegando — comentou Lauren sorridente.
Não teria conseguido entender a alegria, se me tratar como um objeto inanimado não fosse o hobby deles. Nunca pretendi ter mais do que um filho — muito menos antes dos dezoito —, a ideia de ter uns três ou quatro me assustava. Isso se não desistisse da ideia de vez.
— Pois eu não acho isso nada legal. Estou muito bem sozinha.
Em partes.
— Mas eu compreendo a preocupação dele. Você é uma pessoa... rara. Seus genes precisam ser preservados — disse Madeline, analisando uma prancheta em sua mão.
— Rara? — perguntei, fingindo não saber o motivo do comentário. — Vejo nada de raro em mim.
Lauren riu.
— Além do mais, vocês nunca ouviram falar de congelamento de óvulos?
Ela ficou séria e o assunto morreu ali. Foi quando percebi que o problema deles não era tão simples de se resolver. Obviamente, eu só acharia saber o que eles quisessem que eu acreditasse — sendo que mesmo assim tinha noção de coisas que esse povo nunca teria. E só compreendi isso por ter ameaçado e obrigado Madeline me contar sobre a manipulação que faziam neles periodicamente para nunca terem ciência da existência de meios contraceptivos ou de informações em excesso do "mundo exterior".
Eram todos fantoches. Eu também.
[...]
Será que ele veio? Por que não ver? Entrei na biblioteca.
— Bom dia, senhora Wilson.
— Bom dia, Anne!
— Axel está?
— Achou que ele não viria? — perguntou com um sorriso. — Eu vi como ele saiu daqui ontem. Brigaram, certo?
— Mais ou menos.
— Olha, ele é um menino legal. Seja lá o que ele tenha dito ou feito não foi para te magoar.
— O problema não é com ele.
— Ih, algo com a nojenta da namorada dele? Se for, pode deixar que eu dou um jeito nela em dois instantes.
Comecei a gostar mais ainda dela.
— Não, é comigo. Mas obrigada mesmo assim.
— De nada. Pode contar comigo se precisar.
Ela se escorou na bancada e sussurrando completou:
— Te apoio.
Ri.
— Valeu, senhora Wilson. Tenha um bom dia.
— Você também, querida.
Fui até os fundos da biblioteca. Axel estava na área de livros infantis, o mesmo lugar em que conversamos ontem, mas dessa vez ele procurava por um livro. Ou fingia procurar. Para que ele precisaria de um livro infantil afinal?
— Axel.
Ele me olhou.
— Oi. — e se voltou para os livros novamente.
— Eu estou tentando. Não ache que vou embora se continuar fingindo estar interessado neles, preciso conversar com você — apontei para a prateleira em que olhava.
— Fingindo? — encarou-me levemente irritado. — Já ouviu falar em "A Bela Adormecida"? Ruby está me perturbando por querer que eu leia essa história para ela.
Contraí os lábios.
— Mas pelo jeito aqui não tem. E perdi a vontade de achá-lo — disse, ameaçando sair.
— Axel, desculpas! — a minha voz pareceu fraca.
A verdade era que eu estava fraca. Ele virou, mas não pareceu querer dar um passo em direção até a mim.
— Está se desculpando pelo o que?
— Por ter sido egoísta e hipócrita. Eu não sou daquele jeito, eu ligo para as pessoas. Não que eu tenha mudado, só que você me fez perceber.
— Não, eu não fiz nada. E isso não é motivo para se desculpar comigo — disse com a voz firme. — Nem sei sobre o que você está dizendo.
Deu as costas.
— Axel... — supliquei. — Por favor!
Não sei se foi a força do meu pedido para que não me deixasse que o fez voltar, pois fiquei convicta que me deixaria ali de vez.
— Qual o seu problema? — perguntou um pouco ríspido.
— Como assim?
— Quanto mais te ignoro, mais você procura.
Senti os meus olhos encherem de lágrimas.
— Você é um... — e ele me abraçou.
— Idiota — completou.
Fiquei sem reação, mas quando senti o meu corpo sendo pressionado contra o dele e aqueles braços me abraçando como se quisessem me livrar de todo o resto do mundo não consegui deixar de retribuir.
Eu me sentia acolhida neles. Eles me davam uma sensação estranha de proteção, eu queria que ele nunca mais me soltasse. As lágrimas escorreram.
— Eu não quero que se desculpe por qualquer defeito seu, todo mundo tem. Mas por achar que ninguém se importa com você e assim desmerecê-las.
Ele secou o meu rosto, gota a gota.
— Eu me importo, Anne — admitiu.
Foi como se tivesse acudido a minha alma, nunca notei como ele era tão importante para mim. Como ele conseguia me completar, mesmo que nenhum pedaço me faltasse... Muito menos tinha ideia de poder fazer o mesmo com ele.
— Anne, não — corrigi. — Para você é Alice.
Ele se afastou, não entendi. Axel olhou no fundo dos meus olhos e esticou o dedo mínimo para mim. Só então ali, olhando para aqueles conhecidos e famosos olhos esverdeados, lembrei.
— Você promete de mindinho que nunca soltará minha mão?
Ele sorriu.
— Eu prometo. Palavra do capitão Andrew para a princesa Alice.
[...]
— Inventada pelos chineses, a bússola foi um instrumento de grande importância na época das grandes navegações, quando as Américas, Estados 1 ao 42, foram descobertas pelos europeus, Estados 43 ao 86. Trata-se de um objeto arredondado com uma agulha imantada que se movimenta sobre um eixo. Possui uma rosa-dos-ventos desenhada para determinação dos pontos cardeais, colaterais e subcolaterias — ele apontou para a rosa-dos-ventos no canto do livro. — Imagino que saiba os nomes, se não souber deve ser apenas dos subcolaterais. E grava as siglas porque raramente você verá os nomes. Continuando, como a Terra possui magnetismo, então seu pólo norte magnético atrai o pólo sul da agulha. E o mesmo acontece com o contrário. Assim torna-se fácil orientar-se sobre a Terra, pois a agulha magnética sempre mostrará o norte magnético do planeta, que se encontra a 1400 quilômetros de distância do norte geográfico.
— E se você está me dizendo isso é porque posso precisar de uma.
— Acertou. Em uma emergência pode ser essencial.
— É muito estranho eu nunca ter visto uma bússola na vida?
— Não, muitos nem sabem da existência disso. Estamos em 56. Esse tipo de bússola deixou de ser útil há um bom tempo.
Ele escreveu no caderno.
— Então, qual foi a matéria de hoje? Antiguidades?
— Chamo mais de "Sobrevivência", mas esse nome também serve.
— Estou com fome — comentei.
— Pensei que fosse perguntar o que iríamos fazer amanhã.
— Por que eu perguntaria?
— Porque eu gostaria de te dizer que irá à floresta.
— E por que você pensou que eu acharia isso interessante?
— Porque quero que conheça um lugar especial.
— Um lugar especial? Agora sim achei interessante.
Ele riu.
— Então amanhã, depois da aula, te levo lá. Será o meu presente de aniversário.
Como ele poderia se lembrar da data? Eu mesma perdia noção de como ele estava próximo. Seria daqui a três dias. Decidi apenas continuar.
— Botarei a minha melhor roupa — brinquei. — Que tal aquela minha nova regata vermelha e coturnos sujos de terra?
— Perfeito. Colocarei a minha camisa preta predileta. Posso ter alguns problemas com o fato dela já ter perdido uma das mangas e estar com um rasgo enorme na altura do abdômen, mas é nada muito preocupante — disse ainda escrevendo.
Fiquei boquiaberta. Ele estava brincando, né? Não teria capacidade mental de armazenar tanta informação.
Axel subiu os olhos até mim.
— É brincadeira, sua tarada! Preciso urgentemente começar a me policiar com você — afirmou, balançando a cabeça.
— Eu não sou tarada! Só não consigo associar a imagem do meu professor centrado e certo com a barriga de fora.
— Eu uso camisa 100% do meu dia, para a sua informação.
— Não, eu sei que certos momentos exigem que você a retire, é normal. Mas não tenho culpa se ao pensar dessa outra forma faço associações desnecessárias em minha cabeça.
— Oi?!
— Desculpas, você não gosta de se expor em público. Compreendo, culpa minha. Relaxe, é tudo fruto da minha imaginação.
Desejei que não tivesse entendido o que eu quis dizer, eu mesma não teria.
— Nossa, até esqueci o que iria escrever — disse desnorteado. — Não quero nem imaginar o que se passa aí dentro. Prefiro acreditar que você só tem a primeira impressão mesmo.
— Mas é óbvio que essa é impressão que tenho de você. Você é um garoto muito intrigante, atrativo, até que bem gato, mas é acima de tudo um amigo de longa data, compromissado e meu professor. O que leva as possibilidades de que eu fique imaginando como você seja sem certas peças de roupa quase nulas.
Ele se virou com os olhos arregalados.
— Melhor você falar mais nada, não está ajudando — repreendeu já com o rosto tão vermelho quanto um tomate.
— Pode deixar.
Voltou a escrever no caderno novamente e eu fiquei quieta olhando-o realizar o ato. Sua caligrafia era levemente caída para direita parecendo estar constantemente em itálico, era curioso.
Amava tê-lo novamente como amigo — ou o que quer que seja. Pois agora que tinha, me sentia triste por lembrar tão pouco e ter medo de que isso acabasse tão rápido. Não queria perdê-lo de novo. Ele era um canto esquecido do meu subconsciente. E agora que foi lembrada, não se podia imaginar como seria sem.
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