Capítulo 14
Capítulo 14, Jack.
"AVISO
Grupos Um e Três — Aulas de arco e flecha.
A a J: 13h às 15h;
K a R: 15h às 17h;
S a Z: 17h às 19h."
Perderia duas horas dos meus dias para poder me tornar um Robin Hood de araque. Tinha uma mira até boa, mas se era para gastar os meus dotes que fosse com armas de fogo do que pedaços de pau.
— E aí? Animado? — perguntou Shelby, referindo-se ao aviso colado na entrada do Galpão 1.
— Muito. Não posso esperar — ironizei.
— Pois eu estou bastante.
Shelby era ótima com arco e flecha, como com lança, espada e qualquer outra arma. As aulas só serviam para ela se aprimorar.
— Eu vou cair matando nesta aula — afirmou Skandar, surgindo atrás dela.
Ele começou a fazer uns movimentos desconjuntados que pareciam uma mistura de karatê com posições defensivas de boxe.
Eu tinha a convicção de que ele era meio sequelado, então achava tudo normal.
— Seria uma pena se fossem aulas de arco e flecha e não artes marciais — implicou Shelby.
— Pior ainda se fossem apenas para os Grupos Um e Três, não é?
Ele fez uma cara de indignação e me deu um empurrão para poder ler o papel.
— Oh, cara. Por quê? — perguntou em um tom entre o choro e raiva.
— Fica assim não — disse, dando tapinhas de consolo em seu ombro. — Disseram que amanhã terão aulas de crochê e ponto cruz para vocês.
Shelby riu, ele ficou irritado.
— Vocês verão! Eu vou conseguir ir para o Grupo Três. Não, não! Melhor, irei negar ir para o Grupo de vocês, pois terei à minha disposição o Grupo Um. E quando eu estiver lá, eu quem vou rir de vocês — e entrou no Galpão 1.
Ele realmente estava convicto disto e eu até admirava esta determinação dele, mas o problema é que nem nos meus maiores esforços de ensiná-lo o básico sobre caça ele conseguiu fazer alguma coisa se quer bem.
— Espero estar vivo para ver — e também entrei.
[...]
Hm, até que arco e flecha era bem legal. Depois de pegar todo o conceito, modesta parte, esculachei. Tive uma ideia errada.
Estava com os braços doloridos e cansados, mas não queria descansar. Não via a hora de me encontrar com Anne. Tinha marcado com ela às três e meia em frente à Carpintaria, porém não estava a vendo.
Ela ainda estaria perdida com os horários?
Todos aqui éramos acostumados a contar as horas, mas para ela devia ser bem complicado ainda. Lembrava como foi para mim no início, errava sempre. Foi então que percebei uma gritaria crescente ao centro e pessoas começando a correr, segundos depois um dos homens caiu ensanguentado no chão enquanto o outro permaneceu em pé com uma faca respingando sangue. Nem teve muito para notar o que havia acabado de fazer, pois um dos homens do Um chegou por trás quebrando seu pescoço. Não soube pelo que o meu horror se tornou maior, pela cena ou por não saber aonde Anne estaria no meio daquilo.
Empurrei meio dúzia de pessoas que iam à direção oposta até encontrá-la paralisada e sentada em um pedaço de tronco em frente à Jardinagem. Apesar dos olhos arregalados, esboçava nada.
— O que ainda está fazendo aqui? — perguntei, balançando-a pelo braço. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas no final saiu nada.
— Vem comigo — ordenei, puxando-a.
Ela não resistiu, mas continuou calada até alcançar a Padaria e sentá-la no chão da entrada. Pedi um pouco de água com açúcar, temendo não encontrá-la novamente onde havia deixado no meio de tanta gente que entrava desesperada no local.
— Pensei que tínhamos marcado perto da Carpintaria — tentei brincar, entregando-a a água.
Ela levantou o rosto e deu um sorriso sem graça.
— Estavam ocupados — disse baixo.
Eu tinha visto o suficiente para saber que o outro banco estava vazio. Sentei-me ao seu lado, ela voltou a olhar para baixo.
— Você está bem?
— Sim.
— Não precisa mentir. O que aconteceu?
Ela ficou em silêncio por um bom tempo. Não decifrei se o pavor surgindo em seu rosto era do acontecido ou não.
— Ontem à noite eu não me senti à vontade para te contar... Por favor, não leve para o lado pessoal! Eu sei que posso confiar em você.
Estava nervosa e tropeçando nas próprias palavras, devia me preocupar.
— Ontem fiquei aqui nas Fogueiras e, não sei como e por que motivo, uma voz, uma voz infantil... surgiu na minha cabeça. Eu escutei uma garota contar sobre ter visto um unicórnio e a voz apareceu. Falava coisas sobre desenhar um unicórnio, de me emprestar um lápis rosa... Não aguentei, fui correndo procurá-la. Tive esperança de que a dona daquela voz estivesse por aqui.
— E você a encontrou?
— Sim. Era uma menininha chamada Ruby. Eu não me lembro de conhecê-la, mas tudo indica que deveria — ela se virou para mim e fixou aqueles olhos, que se agitavam de um lado ao outro, em mim. — Eu a conheço mesmo, Jack? Eu a conheci antes de chegar aqui?
Comecei a sentir um pouco de medo da forma como estava especulando enquanto falava. Anne chegou a ficar tão histérica que, se não a conhecesse, diria ter perdido a sanidade mental.
— Sim, você a conhecia. Mas tente se acalmar, por favor!
Ela respirou fundo.
— Desculpas... É que Ruby me tratou tão carinhosamente, senti a alegria dela em me ver. Seus olhos brilhavam! E eu já tentei o meu máximo e não consigo me lembrar nem dela nem de um Axel, quem comentou. Eu não consegui dormir hoje.
Não soube o que falar. Eu não tinha como dizer que a entendia, nunca tinha passado por nenhuma situação parecida.
— Você sabe quem é ele? — perguntou esperançosa.
Sim. E você sabia até bem mais do que eu... Infelizmente.
— Sei sim. E você também o conhecia, como ela deve ter dito.
— Há muito tempo? Porque lembro de você, mas dele nada.
— Não. Apenas alguns dias... Acho.
Ela não entendeu direito. Eu não queria complicar sua cabeça falando o que não podia afirmar.
— Como assim "acho"?
— Bem, às vezes você poderia já tê-lo conhecido antes, sei lá. Não vivi todo o tempo da minha vida com você, então não quero lhe dar certeza do que não posso — enrolei.
Ela assentiu.
— Eu entendo. Só eu poderia me dar isso — ela fez uma pausa e completou. — Eu me sentei naquele tronco porque perguntei para uma menina sobre o Axel e ela me disse que ele passava a maior parte do tempo ali — e apontou com a cabeça para Jardinagem. — Eu não tive coragem de entrar. Não tinha certeza do que estava fazendo, então só fiquei esperando que ele saísse e ao olhá-lo pudesse me lembrar. Eu... Eu só queria uma resposta. Ninguém aqui é capaz de me dar o que peço.
Ela enfiou o rosto nas palmas das mãos, poderia começar a chorar a qualquer momento. Passei o braço por volta dela na tentativa de consolá-la, era meu dever.
— Não acho que se tivesse ficado lá fosse melhorar. Você não viu Ruby e mesmo assim não conseguiu se lembrar dela?
Não esperava uma resposta.
— Então, poderia ter acontecido de esperar manhã e tarde inteiras sem perceber que ele não estava mais ali. Não reconhecê-lo.
— Verdade...
— Não acha melhor a gente sair daqui? Não imagino que no momento as Fogueiras estejam tão atrativas — tentei animá-la.
Alguns dos homens de Moore começaram a aparecer.
— Pode ser. Qualquer coisa deve ser melhor.
Então ela me abraçou. Levei um susto de início, mas retribuí. Ela não tinha noção do quanto estava me fazendo feliz.
— Muito obrigada, muito obrigada mesmo. Desculpas por ter te tratado com indiferença antes, não tinha noção de como gostava de você.
Beijei sua testa.
— Eu também gosto muito de você.
Novamente pude sentir a presença da Anne, a verdadeira Anne. Ela estava confusa e abalada, mas com seu sorriso frouxo voltando aos poucos. Aquele sorriso que eu fazia questão de arrancá-lo para mim e retribuir sempre que pudesse. Admito ser um cara que ri à toa, porém não se comparava rir para ela. Eram sorrisos com emoção.
Por um bom tempo eu não imaginei que aquela minha vizinha, amiga de escola, fosse despertar um sentimento diferente. Fui idiota, bastante. Enxergava os seus sinais, mas fingia que não eram o que pareciam ser. Nunca senti o que sinto por ela antes, era... amor? Paixão? Sei lá qual o nome dado a isso.
Precisava dela. Precisava consolá-la quando estivesse triste, ser parte dos seus momentos felizes... Ser o motivo deles acontecerem. Se ela me amou por tanto tempo e nunca desistiu de mim, por que eu não conseguiria fazer o mesmo? Não seria um garoto que iria me atrapalhar, não seria um Axel.
Ela tinha uma ligação com ele, que eu não podia entender. Eles se conheceram quando pequenos e me arriscava a dizer que eram praticamente inseparáveis. Percebi, claramente, isso enquanto estava com as mãos algemadas assistindo Axel levar chicotadas.
Lembrava-me muito bem deste dia, o dia em que cheguei aqui. Acordei no canto de uma sala, escurecida por sua má iluminação, sem entender nada. E do outro lado estava Axel amarrado aos pulsos em uma espécie de pilar de madeira com suas costas escorrendo sangue.
Um velho gritava mandando que se necessário fosse até as cinquenta chibatadas. Tentei me levantar de onde me ajoelharam, mas dois seguranças me seguraram pelos braços.
Após a vigésima quinta, Anne entrou desolada pela porta, arquejando e correndo desesperadamente. O mesmo senhor de cabelos grisalhos se assustou em vê-la e não conseguiu impedir que chegasse até ele. Seu corpo pálido estava mole e o rosto suado, ela passava a mão por sua bochecha e lhe pedia desculpas. Só que podia dizer que ele estava começando a perder os sentidos e não entenderia nada que saísse da boca dela.
Mais dois caras apareceram pela mesma porta que Anne entrou e a arrancaram de perto dele. Suas roupas estavam sujas do sangue dele e ela chorava compulsivamente. Tiveram que a arrastar por meio de berros, chutes e socos... Esperneava. Eu não aceitaria o estado dela e o que faziam.
Dei uma cotovelada no homem a minha esquerda e não sei com que força consegui tirar o meu braço do outro. Corri até ela e pedi para que parassem. Só que quando a vi, já estava nos ombros de um deles apagada. Então fui alcançado e me puxaram de volta.
Deixaram-me imobilizado assistindo Axel, fiz de tudo para não ver. Mesmo assim, tornou-se insuportável escutar seus grunhidos de dor e o barulho estalado do couro cortando a sua carne. E apenas lá pela trigésima terceira, trigésima quarta, ele pediu em uma súplica embargada para parassem. Soltava o próprio sangue pela boca.
O senhor fez o que pediu e se virou para mim dizendo que aquilo devia servir de aviso e eu tivesse noção de até aonde poderia ir. Depois foi a minha vez de "dormir".
Axel passou quase uma semana na enfermaria, e eu bancava um louco. Três dias depois de chegarmos, não aguentava mais estar naquele lugar e não saber o que acontecia ao meu redor — podia ser um pouco do que Anne passava agora. Pior, não sabia o que estavam fazendo com ela, Anne!
Apareci na enfermaria querendo vê-la e não deixaram. Então disparei corredor adentro à procura dela, até me deparar com uma meia parede de vidro — parecida com um berçário, só que era uma ala hospitalar mesmo —, onde na última maca ela se debatia e gritava, mesmo com os olhos fechados. Duas médicas a seguravam e um líquido azul começava sair dos tubinhos até as agulhas em seus braços.
Axel se encontrava em posição fetal com as mãos nas orelhas e espremendo os olhos o máximo que podia. Consegui ver as gazes em suas costas com leves manchas de sangue. A cena me deu náuseas, eu não tive capacidade de ver aquilo. Comecei a socar o vidro, mas não serviu de nada. Tiraram-me dali e nem reagi.
No dia em que ele saiu, fui tirar satisfação da situação. Ele não quis falar comigo. Estava com olheiras profundas e uma cara horrível — não que ele não fosse, mas estava mais do que o normal. Tentei compreender o caso dele, o cara tinha levado mais de trinta chicotadas — eu nem poderia mais viver, dando a desculpa de ter sido chicoteado para tudo. Entretanto também não aguentaria passar mais nenhum dia ali sem explicação alguma. Além de cogitar na possibilidade da Anne estar morta e nem saber.
E as únicas coisas que ele me disse foram:
"Eu a conheci sim. Tivemos uma infância muito feliz juntos, uma amizade forte e pura. Da minha parte posso dizer que a amava, não sei ela. Mesmo se sim não passou de um amor infantil, você estaria sendo muito idiota se importando com isso. Eu pelo menos sinto mais nada por ela, e imagino que ela também não vá mais sentir. Então, sejam muito felizes. Espero ter lhe esclarecido... Ah, e, por favor, me mantenham longe do romance dos dois. Mas não se preocupe, mando o presente de casamento mesmo assim."
Apenas o mandei se catar e avisei que poderia contemplar nosso amor muito bem em uma poltrona de massagem de dois mil dólares.
Nunca mais trocamos nem um "Oi", bem pelo contrário, quase nos matávamos — pelo menos era essa a força que eu acreditava ter em meu olhar.
Era uma pena... Porque eu sentia que podíamos ser grandes amigos, se ele não fosse ele e eu não fosse eu.
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