Capítulo 10
Capítulo 10, relatos.
— Meu nome é Anne Bethany... Clark? — ela concordou com a cabeça e prossegui. — Tenho dezesseis anos. Eu vivia no Estado 23 com os meus pais Jasmine e Caleb e tinha amigos... Katherine, Louie...?
— Loyal — corrigiu.
— E Jake — ela balançou a cabeça. — Não, Jack! — corrigi.
— E o objeto em seu anelar direito?
— É o anel de noivado da minha mãe.
— Então você se lembra só disso? — ela perguntou, terminando de anotar na prancheta.
— Bem, lembro-me do básico, como que a minha cor predileta é cinza, amo chocolate amargo, gosto de dias nublados, peônias lilases são minhas flores prediletas...
Peônias? Sim, acho que gosto de peônias. Como é mesmo o gosto de chocolate amargo?
— Está um pouco confuso. Estão bem embaçadas, mas acho que consigo lembrá-las.
— Qual o dia do seu aniversário?
— 7 de outubro ou novembro. Acho que outubro.
— Sim. Por sinal, estamos no dia 27 de setembro. Falta exatamente 11 dias para que complete dezessete anos — comentou, abrindo um sorriso.
Fiz o mesmo. Devia ser bom, né?
Ela botou a prancheta no colo analisando-me.
— Gostaria de perguntar alguma coisa?
Muitas, mas estava tão desorientada que nem sabia direito o que desejava saber. Fui pelo básico.
— Estou há quanto tempo nessa enfermaria?
— Uns quatro meses.
— Meu Deus, fiquei quatro meses em coma? O que aconteceu comigo?
— Não exatamente em coma. Eu diria que em um sono profundo, encaixa-se melhor a situação. Ah, e não foi nada demais, só estava um pouco debilitada.
Hm... não sabia que uma pessoa um pouco debilitada precisava passar quatro meses em "sono profundo". Tentava esconder alguma informação de mim? Evitar fortes emoções?
Não perguntei sobre. Se ela fazia isso mesmo, provavelmente, havia necessidade.
— E agora que acordei desse sono profundo vou ter alta quando?
— Pelo jeito, amanhã.
— Meus pais estão aqui? Quero falar com eles.
Ela me olhou cautelosa e segurou a minha mão. Algo ruim estaria por trás de tal olhar.
— Eles não vieram me visitar, é isso? — perguntei sem conseguir esconder meus temores.
— Anne, você não está mais no Estado 23. Os seus pais não estão aqui, eles ficaram lá.
— E onde eu estou?
— No Refúgio.
[...]
Eu ainda não entendia o que aconteceu para ter parado nessa enfermaria sem cor. Ela era completamente branca! Ontem à noite, bem aleatoriamente, comecei a contar objetos — pela simples falta do que fazer.
Dezesseis macas, oito de cada lado, a minha sendo a última da sala, fato que me deixou com a sensação de estar um pouco isolada — mas isolada ali eu já era. Naquele dia só teve eu e mais três pessoas no lugar, apenas um passou a noite para me fazer "companhia".
Ele era ruivo, meio franzino e ficou tremendo até pegar no sono. Tive pena dele, parecia ser bem legal. Tentei ler a placa na frente de sua maca, o que seria idiotice com a sala à meia luz e ele na segunda maca da fileira oposta a minha. Porém, por incrível que pareça, depois de um esforço consegui ler o que poderia ser "Dean L. Green".
"Dean?" repeti mentalmente.
O nome não me era estranho.
Naquela manhã Dean fora liberado, parecendo bem melhor. Eu só seria depois do almoço, umas duas horas da tarde.
Descobri ter três enfermeiras só para mim, o que não sei dizer se era exatamente bom ou ruim, mas gostei delas. Lauren, Madeline e Juli eram muito simpáticas. Lauren, aparentemente, a mais extrovertida; Madeline, a mais centrada — líder das três — e Juli, tímida e de voz doce.
Para uma enfermaria, aquele banheiro era bom por demais. Gigantesco e até mesmo confortável, tirando o fato de também ser todo branco. Tinha cheiro de lavanda e tudo, extraordinariamente, muito limpo.
Nunca teria passado por minha cabeça tomar banho na frente de três pessoas — era inevitavelmente constrangedor a princípio —, mas afastei o pensamento rápido. Com certeza, para elas me ver nua era nada. Mas o pior momento foi saber que não estava andando direito, minhas articulações doíam.
— Fez fisioterapia durante esse tempo para seus membros não atrofiarem. Mesmo assim, é normal sentir um incômodo de início — comentou Madeline.
Ela e Juli me ajudaram a sentar em um banco.
— Tem algo estranho em mim — comentei.
Eu não sabia exatamente o que era, mas sentia a diferença.
— Ah, com certeza é um estranho bom — afirmou Lauren com um sorriso.
Não entendi.
— Por que seria? — perguntei confusa.
— Venha aqui — pediu, segurando o meu braço esquerdo.
Juli veio ajudar, escorando-me pelo lado direito.
Elas me levaram até um espelho grande ao canto do banheiro. Não sabia qual era a serventia daquilo, para os doentes verem quão lamentáveis estavam?
Fiquei aflita apenas de imaginar como o meu reflexo pudesse ser, não lembrava com clareza do meu próprio rosto. Havia o receio de que não gostasse do que veria. Juli percebeu, retribuindo com um sorrisinho constrangido para me acalmar.
Olhei a frente e vi três garotas, todas de roupas brancas. Sendo que uma usava um pequeno vestido largo e amarrotado, diferentemente, das outras duas que estavam com suas roupas limpíssimas e impecáveis.
A da esquerda tinha cabelos lisos pretos presos em um coque, um sorriso aberto e olhos esverdeados. A da direita não era muito diferente, tirando sua estatura mais baixa, olhos castanhos e feição mais fechada. Já a do meio destoava entre as três com seus cabelos uns cinco dedos maiores do que poderia lembrar, parecendo mais alta — uns três ou quatro centímetros? — e sua pele brilhante à luz da sala — não era um brilho de oleosidade, suor ou algo assim, estava mais radiante, lisa e... macia?
Soltei-me delas começando a passar as mãos pelos meus braços.
"Sim, macia!" respondi. "Eu estava... bonita?!"
— Oh, sim... Um estranho bom. Muito bom! — disse maravilhada com aquilo.
Piscava como quem não acreditava. E até mesmo neste simples ato pude perceber uma sombra preta mais densa sobre os meus olhos.
— Olhem os meus cílios!
Não estavam estilo cílios postiços. Não, longe disso! Estavam, simplesmente... grossos e mais longos. Eu não sabia explicar, mas eram mais atraentes.
Minha boca se encontrava rosada e as bochechas avermelhadas, apesar de estar mais pálida.
— Vocês têm certeza de que estava doente? Pois pareço muito bem, até melhor do que antes.
Elas riram.
— Okay, acabando com isso. Você terá todo o tempo do mundo para ficar se olhando no espelho, o que não temos quanto ao seu banho — interviu Madeline.
Às duas horas, eu estava pronta — de camisa vermelho escuro, jeans e coturnos — e tinha almoçado, quando me disseram que a pessoa, a responsável por me buscar, tinha chegado. Não me disseram quem, havia ciência de duas informações. Primeira: Estava em um lugar chamado Refúgio. Segunda: Meus pais não estavam aqui.
As minhas enfermeiras avisaram-me para voltar quando precisasse e de início era obrigada ir toda semana à enfermaria, e se eu não fosse elas iriam até a mim. Não precisavam fazer isso, estava tão nervosa que não queria nem se quer sair dali. Aquele medo por não saber o que te espera, tudo parecia muito novo e me achava incapaz de acompanhar.
Passei pelo corredor até a entrada, avisaram que a pessoa quis esperar do lado de fora. Pelo vidro da porta de entrada vi um homem de costas com uma camisa cinza de manga curta e cabelos escuros super molhados. Dando a impressão de ter tomado um banho correndo e ido até ali.
Uma mulher — provavelmente uma recepcionista — sorriu e apontou com a cabeça ao homem, confirmando ser ele a pessoa a minha espera. Antes que terminasse de abrir a porta por completo, ele disparou em mim com um abraço bem apertado — chegou a me machucar um pouco.
— Anneeee! — gritou ao me girar no ar.
— Que saudade que senti de você! Está bem? — perguntou, botando-me de novo no chão.
— Nossa, está é muito bem!
Ele passou os olhos dos meus pés à cabeça, bastou para que eu ficasse ainda mais exasperada. Quem ele achava que era? Tinha tanta intimidade comigo assim?
Não soube o que dizer.
— Está tudo bem mesmo, Anne? — perguntou, passando a mão no meu rosto. — Não está me reconhecendo é?
Continuei quieta. Não queria responder que não, porque tudo indicava que eu deveria reconhecer. No fundo, podia sentir que o conhecia, porém não sabia dizer exatamente quem ele era.
— Jack! Jack Howard. Estudamos juntos na West, éramos vizinhos, voltávamos juntos da escola, éramos melhores amigos... Ou além de apenas isso.
Recuei. O que ele estava insinuando?
— Almas inseparáveis! Quero dizer, tipo essas almas gêmeas, mas apenas de amizade. Nada além mesmo de amizade, nadinha — avançou vendo minha reação.
Relaxei, eu conseguia lembrar. Lembrava o nome dele, lembrava dele em si. O problema era: não o ligava com aquele garoto chamado Jack na minha cabeça.
— Desculpas, eu me lembro de você sim. Apenas não estou fazendo associações muito bem...
— Não, claro! Entendo. Eu que não te dei um tempo até se situar direito — disse em tom compreensivo. — Ah, e falando em se situar. Seja bem-vinda ao Refúgio! — e abriu o braço para que visse a paisagem atrás de si.
Era uma espécie de camping misturada a algum lugar perdido bem no passado, se assim pudesse dizer, com inúmeras tochas espalhadas por todo o seu interior.
Ao longe, enxergava-se uma densa floresta sobre altos e grossos muros de pedra cercando o lugar por inteiro. Imaginei estar dentro de um círculo de terra no meio do mato com escapatória apenas pelos três enormes portões — ao norte, oeste e leste.
À esquerda, vi uns três galpões bem reformados, sendo um deles com fluxo constante.
"Sua finalidade era de uma... academia?" questionei-me.
Bem, não dava para ver direito.
No meio, grandes fogueiras com lenha e animais abatidos sendo assados preenchiam o espaço, dando-me certa repulsa. Toras grossas e longas de árvores eram dispostas ao longo como assentos e mesas imensas de madeira junto com bancos compridos sem encosto existiam perto delas. Algumas conveniências — não era capaz de identificar suas finalidades exatamente — ficavam pelas laterais e mais nas extremidades posteriores, perto do portão ao norte — pelo o alcance dos meus olhos ele era o único aberto oferecendo acesso direto à floresta —, e havia pedaços reservados para treinamentos de...
Lança e arco e flecha? Que lugar seria esse?
Agora eu tinha entrado em estado de pânico.
— Calma, calma! Não passam de aulas — afirmou ao perceber minha atenção voltada ao pessoal selecionando lanças animadamente.
Concordei com a cabeça ainda apavorada. Muito normal terem aulas sobre isso, poxa!
Já à direita, o cenário era mais aceitável, com vários pequenos e uniformes alojamentos, prováveis dormitórios, enfileirados em quatro Vilas enormes ao nordeste; e na posição oposta, uma única Vila de casas tão agradáveis e normais quanto às dos Estados — até poderia caracterizá-las como um pouco luxuosas.
— Venha — pediu, estendendo a mão a mim.
Segurei, driblando o temor. Algo persistia em me fazer confiar nele, apesar de não querer ir.
— Vamos começar por ali — e direcionou com a cabeça para à esquerda.
— Esse é o Galpão 1 — informou, apontando para o mais próximo do centro. — Aqui é onde acontece a maior parte dos treinamentos. É como uma academia, só que não chamamos assim. Tanto porque eles não sabem o que é uma, quanto por ter atividades que nunca teríamos em uma tradicional academia estadual.
Como havia suspeitado pela forma devastada que saíam de lá.
— O ao lado é o Galpão 2, um refeitório. Onde ocorrem as refeições principais, com exceções aos jantares. Quase sempre fazemos nas Fogueiras, nome dado para aquele espaço livre ao meio. Particularmente, é meu galpão preferido. Se você conversar com as mulheres que trabalham lá, elas te sedem um pouco mais de comida. Faço isso todos os dias.
É... agora eu estava me lembrando com clareza deste Jack.
— Aquele é o famoso Galpão 3 — disse, apontando para o único galpão ao sul. — Pelo o que contam não passa de um depósito, nada demais. A fama deve vir do porquê de apenas alguns poderem entrar lá ou por ter armas de fogo. Sabe, tudo o que é proibido é mais interessante. Mas se você quiser ajuda para furtar uma metralhadora ou algum outro utensílio do tipo, posso te ajudar. Será um prazer!
Assustei-me.
— Brincadeira! Brincadeira! — exclamou ao ver os meus olhos arregalados.
— Acho que podemos começar pelas Fogueiras, né?
Concordei, ele riu.
— Okay, é o melhor de tudo!
Fomos andando no sentido contrário ao anterior.
Eu estranhava um pouco o fato dele estar segurando a minha mão, entretanto iria tirá-la. Ele a segurava tão firme. Acho que eu apreciava isso...
— Essas são as mesas dos jantares. Ah, claro, as fogueiras deram o nome ao lugar — mostrou um conjunto de quatro grandes fogueiras ao longo.
— É incrível como esse lugar é cheio! — decidi comentar sobre os conjuntos de adolescentes rondando por todos os lados.
Jack ficou animado por eu ter me pronunciado.
Eles entravam e saíam a todo o momento das Vilas e Galpões e davam a impressão de estarem prontos para matar alguém a qualquer instante, apesar dos sorrisos nos rostos.
— Sim, bem cheio. Mas não reclamo, todos são muito legais e já me acostumei com eles.
Discordo.
— Aqui é uma lojinha de roupas. Sabe, você não compra nada por aqui, mas é ai que achará roupas. Não tem uma variedade muito grande, como pode perceber, mas pode pegar uma nova sempre que a sua rasgar ou estiver bem detonada. Sendo que alguns gostam de usá-las até restar mais nada — e direcionou o olhar para uma das conveniências.
Reparei nas pessoas com roupas bem básicas, como se todas estivessem saído da mesma sessão.
— Esta é a Carpintaria e essa a Jardinagem. Bem, nunca entrei ali, mas os "nerds" ficam aí fazendo coisas com plantas, por isso botaram o nome de Jardinagem. Aquela, a mais distante, é uma biblioteca.
Notei a imponente edificação, desnorteava.
— Também nunca fui, mas como o povo vive saindo dali com livros e todo mundo chama de biblioteca, então deve ser — brincou.
Dei um sorriso discreto, porém, para a minha surpresa, repentinamente seus risos cessaram bruscamente ao ver um garoto saindo da Biblioteca com um livro grosso, verde-musgo, de letras grandes e douradas estampadas na capa, em um dos braços. Usava camisa azul e parecia distraído.
Quando viu a gente ficou com uma feição estranha, tanto que desviou o olhar de Jack e seguiu rapidamente até a Jardinagem.
Jack sabia que não tinha passado despercebido por mim. Os dois haviam se encarado e surgido um clima chato, mas fingiu não notar e também não tive coragem de perguntar. Eu tinha uma intimidade maior com ele do que realmente sentia ter, mas não me via no direito de me intrometer em sua vida.
Continuamos a andar e ele fez questão de me apresentar todos os consideráveis lugares do Refúgio.
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