O rádio velho tocava música de amor.

Seu corpo estava encolhido no chão. As unhas eram roídas num ciclo pré-programado. Começava pelo polegar da mão direita e seguia até o mindinho. Roendo, mastigando, saboreando. Gostava de sentir a textura das unhas quando seus dentes raspavam e arrancavam pedaços mínimos, calculados. Depois ia pra esquerda, repetindo o processo. Com o tamanho que estavam, se tivesse cuidado, poderia fazer aquilo por algumas horas. Como distração.

O rádio velho tocava música de amor.

Os dedos começavam a sangrar. A carne magoada expelia sangue, como lágrimas de dor pela maldade que lhe era feita. Depois de dias, finalmente vira cor. Vermelho. Vermelho sangue. Vermelho do sangue que corria nas próprias veias. Vermelho que era passado agora na parede à sua frente.

O rádio velho tocava música de amor.

Não sabia desenhar bem. Por isso em pouco tempo havia garatujas lambidas de sangue seco. Lambidas agora que eram dadas com o  intuito de apagar uma imperfeição aqui ou outra ali. Levantou depois de horas. Os dedos chorando, os olhos sangrando.

O rádio velho tocava música de amor.

Pegou aquele rádio velho que tocava música de amor e jogou na parede, destroçando-o em partes mínimas e agora, finalmente, mudas.
Num ato de rebeldia, gritou. O amor acabou. Saiu do quarto a passos duros, pesados. Carregados de fúria e de algo inominável. No porão, a filha aterrorizada agarrada ao bicho de pelúcia. Viu olhos animalescos, demoníacos. Gritou quando ele pegou a barra de ferro. Sabia que era o fim.
Ele desceu com força os golpes. Várias e várias vezes. A madeira no chão estalava. Ali, matava quem o agoniava pelas últimas semanas. Depois de calmo, largou o metal no chão e voltou pro quarto.
As paredes brancas, estupidamente limpas.

O rádio velho tocava música de amor.