Tiktok, Conversas De Autocarro E Namoro De Um Ano
ACREDITEM OU NÃO, O CAPÍTULO QUE SE SEGUE É INSPIRADO EM FACTOS É CONVERSAS ABSOLUTAMENTE VERÍDICAS.
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Lena caminhou apressada da paragem de autocarro para o prédio. Tinha na cabeça a conversa que acabara de ouvir na viagem para casa e precisava de a partilhar com alguém antes que se esquecesse dela. Aquilo era digno de romance ou novela, algo que teria muito mais sucesso que a After ou outro livro da moda.
Mal atravessou a porta do Condomínio, correu escada acima, ansiosa demais para se dar ao trabalho de cumprimentar o novo morador do 0°A — temporário, claro. Eles nunca ficavam muito tempo. Talvez na semana seguinte já lá não estivesse.
O seu apartamento, no 4°B, era demasiado longe da área comum no segundo andar, pelo que ela não se deu ao trabalho de ir a casa deixar os seus pertences. Em vez disso, entrou directamente na biblioteca, enviando uma mensagem para o grupo das condóminas.
Reunião. Já.
Elas começaram a aparecer pouco depois, esbaforidas, como se tivessem vindo a correr pelas escadas.
— O que foi? Onde é que é o fogo? — perguntou a Ells, colocando a cabeça para dentro da biblioteca.
A Lena fechou-se em copas, sem revelar nada da história. A Carol entrou pouco depois, seguida da Lah.
— Qual é a emergência? — perguntaram, em coro.
O suspense permaneceu no ar por mais uns minutos, enquanto o resto das meninas que estavam em casa se juntavam à plateia.
— Agora que estão aqui todas, vou contar-vos a conversa que vinha a ouvir no autocarro entre duas miúdas de 16 anos e que dava um best seller melhor que a After.
— Eita... Medo de imaginar o nível... — murmurou a Ells, sentada no sofá, agarrada a uma almofada.
— Conte, conte! — pediu a Carol, entusiasmada. — Só falta vir falando do boy que é igual à cria de Satã daquele livro...
As meninas sentadas nos sofás e almofadas da divisão riram-se com o comentário e a Lena fez um gesto com a mão mal recuperou o fôlego, pedindo silêncio.
— Então foi assim: eu estava sentada no autocarro e atrás de mim sentou-se uma rapariga. Na paragem a seguir entrou uma amiga dela e elas começaram a falar qualquer coisa a que não prestei atenção. A dada altura, ouço: então como é que foi o encontro?, ou qualquer coisa assim do género. Eu teria deixado de ouvir a conversa por ali, não fosse a que já lá estava há mais tempo ter começado a dissertar sobre os dilemas que o encontro provocou.
Mais risos percorreram a plateia. A Lena tinha um talento especial para não conseguir deixar de ouvir conversas alheias e as amigas sabiam-no muito bem.
— Passa lá isso à frente, O que é que aconeceu a seguir? — perguntou a Li, extremamente atenta.
— Então, ao que parece, a rapariga que já lá estava sentada há mais tempo é lésbica. Ela sabe bem que gosta de raparigas, mas não tinha a certeza se gosta de rapazes. E ela tem um Tiktok e, ao que parece está a ter... relativo sucesso. — A Lena sentou-se direta, levantando os braços a cima da cabeça em rendição. — Não me perguntem qual é o user porque eu não a conheço e não se referiu nomes a conversa toda.
Os suspiros desanimados encheram o espaço quente e aconchegante.
— Adiante — continuou a narradora. — Ela tinha conhecido um rapaz pelo Tiktok, com o qual conversou durante bué tempo. Como ele tinha gostado dela, eles marcaram um encontro que, segundo a moça, foi lindo e maravilhoso. O rapaz, segundo o que ela disse à amiga, é super simpático, super educado (inclusive, falou dela e do encontro deles aos pais antes do mesmo acontecer), aprendeu a jogar um jogo de cartas um bocado nerd, talvez derivado de animes, de propósito para jogar com ela, gastou um balúrdio para vir de outra cidade para o encontro... Mas o coitado, apesar de ser lindo de morrer, já tinha levado com os pés quatro vezes seguidas por quatro raparigas diferentes.
— Ai gente, tadinho! — Carol não conteve o lamento de empatia pelo rapaz.
— Né?
— Isto é que é azar!
— Não, pera... — Lah interrompeu a balbúrdia com uma mão balançando no ar. — Deixa eu ver se eu entendi direito: a moça era lésbica, e quis continuar o relacionamento com o moço por pena?
Do canto podiam-se ver as outras meninas ironizando a mesma questão.
— Pois, exatamente.
— AH Não! — A garota gótica do grupo mal podia segurar a histeria da risada de desespero, sendo acompanhada pelas amigas. — Mas que filha da... Quero só ver a desgraça disso!
— Mas vai Lena, continua, como foi? — Kells incentivou a amiga do piso japonês e todas voltaram a escutar atentamente.
Com um gesto de cabeça, Lena continuou.
— Pronto. A nossa tiktoker portuguesa foi num encontro com ele, divertiram-se muito os dois, tudo muito educado, tudo muito bonito. Depois no final, beijaram-se. Quando chegou à parte do beijo, a dita cuja não sentiu nada e descobriu que afinal, só gosta mesmo de raparigas. Ou que, pelo menos, daquele rapaz ela não gosta. Ah! — acrescentou a Lena, assustando as amigas que se tinham sentado ao seu lado. — Acho que em conversa com o rapaz, ela tinha admitido que era bi.
— Sinto que isso vai dar muito errado... — murmurou a Ells.
— E depois no autocarro, a moça estava a dizer à amiga: ai, ele é super atencioso e eu gosto muito dele e preocupo-me muito com ele, mas agora não sei o que é que hei de fazer, porque nos beijámos e eu não senti nada! O que é que eu faço? Já quatro raparigas antes de mim lhe deram com os pés e eu não quero que ele fique de coração partido outra vez! E depois começaram as duas a discutir as opções do que fazer a seguir, colocando logo de parte a solução mais lógica: contar a verdade.
— Santo Deus.....
— Isto porque ela gosta muito dele e não lhe queria partir o coração por não corresponder aos sentimentos dele. Assim, as hipóteses eram: namorar com ele durante um ano e depois acabar tudo; ignorar o rapaz e fugir para as montanhas, fingindo que ela é super mal educada na esperança dele deixar de a chatear no tiktok e outra que já não me lembro.
— Como assim namorar com ele durante um ano? Qual a lógica? Gente, se ela sabe a sua natureza no seu íntimo, porque é que ela não conta!? — exclamou a Carol, indignada.
— Namorar por um ano só iria ser pior... — Ells mudou a posição no sofá, para ficar mais confortável. — E fugir, amada? Ela gosta tanto dele que não partiria o coração, ela só namoraria para terminar!
— É... — A Lena encolheu os ombros. — O bom senso não entrou no autocarro com elas.
— Igual ao que a Tsuin falou. Quem é que fica um ano gastando energia mental, física e tempo de vida que não... Vai ser uma perda de tempo! Para ele e para ela também. Eu estou chocada.
Fez-se uma pausa para ir buscar bebidas quentes, durante as quais todas se perderam em reclamações sobre a tal jovem de 16 anos que parecia não ter nada na cabeça além de cabelo. Assim que todas as condóminas se voltaram a sentar com a sua bebida quente favorita em mãos, a Lena retomou a história.
— Elas estavam a debater isto e a dar muitas opções, mas nunca voltaram a colocar o contar a verdade em cima da mesa. E eu só revirava os olhos e pensava: CONTA A VERDADE! Se namorares um ano e ele ficar mais agarrado a ti, o coração vai ficar mais partido e esfrangalhado do que agora e se, por outro lado fingires que não é nada contigo, pá... Sim, porque ela disse que não queria ser má pessoa e partir-lhe o coração. E eu pensei: e ficares bué tempo sem falar com ele e não responderes à mensagem não é seres má pessoa?
— Enfim, a hipotenusa... — murmuraram todas, mais ou menos em coro.
— A moça ainda se virou para a amiga e disse que não o queria por a chorar porque, ao que parece, ele chora quando ela lhe deixa de responder às mensagens por qualquer coisa, tipo... Se ela se esquecer do telemóvel e não responder, ele fica triste, quase a chorar. E eu fiquei tipo: what? O rapaz não existe. Bonito, inteligente, simpático, atencioso, com relativo sucesso no tiktok... Ah, e outro dos dilemas dela é que os fãs deles já sabiam que eles tinham saído e já eram fãs do casal antes mesmo deste existir.
O veredito final daquela conversa era que a rapariga era mesmo a única culpada por se passar por uma pessoa que não era, apenas por "pena" do rapaz — o que era demasiado errado do ponto de vista de todas ali. Baseando-se nisso, o relato trazido por Lena havia servido de ponte para debater questões morais ainda mais profundas em uma conversa que duraria por horas, quase a parecer um debate político.
Porque o condomínio sem reuniões aleatórias para conversar de tudo e nada, não era o condomínio.
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