O que se esconde no breu
O cheiro do querosene fazia cócegas em seu nariz, Alzébio não achava o odor desagradável, o odor era seu conforto, pois enquanto sentisse o cheiro que a fria brisa daquela noite espalhava, ele sabia que sua única fonte de luz resistia firme e forte à escuridão opressora que se derramava ao seu redor.
Escuro não era o suficiente para definir. Breu era a palavra mais apropriada, porque sem aquela pequena chama que queimava em suas mãos, Alzébio não seria capaz de dizer sequer se estava indo para frente ou para trás.
O homem de meia idade apertou a lamparina de lata com mais firmeza com sua mão esquerda enquanto mantinha a direita no cabo de seu facão, cuja bainha estava presa em seu cinto. Avançava devagar, tomando cuidado para não tropeçar nas raízes e pedras. Para falar a verdade, Alzébio odiava entrar na mata no relento, mas o açude tinha dono e ele ainda não havia recebido o combinado daquela quinzena, ou ele pescava na surdina ou seus meninos iam ter que comer feijão verde com farinha e nada mais.
O caminho que tomava era uma trilha aberta pelos pés que de tanto pisarem na mesma terra, o mato já nem nascia mais, já que Alzébio não era o único a tomar aquele rumo quando as coisas apertavam em casa.
Alzébio prendeu a respiração e estagnou no lugar, afiando os ouvidos para o menor sinal de problema. Ao contrário do que se pensa, a mata a noite não é um lugar tranquilo e silencioso, tem sons vindo de todos os cantos e na maioria das vezes não tem como saber o que foi que produziu.
Você nunca sabe o que tá te espreitando no breu, mas sempre tem algo te espreitando no breu.
O homem soltou a respiração e continuou andando. Após vários minutos de uma tensa caminhada, a trilha bifurcou e Alzébio tomou o rumo da direita, subindo uma ladeira até que a mata abrisse e espaçasse, dando razão para várias pedras na margem da água.
Subiu as maiores, apagando a lamparina agora que a luz da lua era o suficiente para ver ao seu redor. Acocorou-se no canto em que gostava de pescar, um pico que dava vista para todo o açude. Depois de prender a vara entre as pedras, ele enrolou um cigarro de palha e começou a fumar para passar o tempo. Levaria por volta de três horas para pegar peixes o suficiente para passar aquela semana se fosse uma noite fraca e se fosse uma boa, em pouco mais de uma hora ele já estaria se aprumando para voltar.
Depois de prender mais uma isca no anzol, se abaixou após ouvir o som de passos. Observou em silêncio um homem sair da mata pela outra ponta da trilha, na parte baixa do açude, poucos metros de distância abaixo e diante dele. Na pouca distância, Alzébio espremeu a vista tentando reconhecer o sujeito, torcendo para ser algum conhecido do bairro, mas por mais que tentasse, não conseguia ver o rosto do cabra, que teimava em ficar coberto pela sombra do chapéu.
As roupas do homem eram folgadas e rasgadas, inclusive o chapéu faltava um pedaço da aba sobre o ombro. Alzébio poderia não reconhecer o sujeito, mas estando malamanhado daquele jeito, o dono do açude ou os peões dele com certeza não eram.
Sentindo alívio com a constatação, ele se levantou de seu canto. O homem do chapéu girou todo o corpo na sua direção quase de imediato, como se finalmente tivesse sentido sua presença. Alzébio acenou, mas o homem apenas permaneceu lá, parado e encarando-o com o rosto coberto pelo chapéu.
Um arrepio subiu pelos braços de Alzébio quando o homem permaneceu travado encarando-o sem um único movimento ou som. Sua outra vara de pescar deu um fisgo e ele desviou a vista para impedir que o peixe arrastasse seu material pra água. No segundo seguinte que olhou para baixo, já não havia mais ninguém.
— Deixa essa merda prá lá, homi! — murmurou para si mesmo, decidindo que aquilo era o suficiente para a noite.
A cada instante em que Alzébio arrumava de volta suas coisas, ele se sentia agoniado, olhando ao redor com desconfiança e ansiedade, pois ele podia jurar que ainda sentia alguém encarando-o de algum lugar. Irritado consigo mesmo, ele desceu as pedras até onde o homem do chapéu esteve alguns minutos atrás. Viu que ele tinha material de pesca, então procurou na margem para ver se ele também estava pescando, mas não encontrou um único traço do sujeito.
Alzébio parou, encarando a água escura como breu.
Talvez o cabra se mandou com medo de pegarem ele pescando?
Era uma explicação plausível, considerando que nenhum dos dois poderia estar ali, para começo de conversa. Ele continuou encarando a água quando viu pequenas bolhas subindo a superfície. Geralmente aquele movimento na água indicava que havia peixes no local, mas por algum motivo, os pelos na nuca de Alzébio se arrepiaram, ele continuou encarando a água fixamente, incapaz de desviar a vista mesmo que seu coração estivesse acelerando e sua respiração se tornasse mais pesada.
Foi quando percebeu que a luz que a superfície escura refletia se tornava mais forte pela única razão de que ele mesmo estava, com suas próprias pernas, aproximando-se da água sem dar-se conta.
Piscou confuso e assustado e começou a recuar sem dar as costas para a água. Na beira da mata, virou-se e começou a andar o mais rápido que pôde, olhando para trás para garantir que não estava sendo seguido, embora a incômoda sensação de estar sendo observado o acompanhasse.
Foi quando ouviu um alto barulho de baque na água, que Alzébio correu.
Só voltou a se sentir aliviado quando saiu da mata e entrou na rua vazia, nunca se sentiu tão feliz pela taxa de iluminação que pagava na conta quando viu a luz fraca e amarelada dos postes presos no chão de terra batida.
Quando chegou em casa, sua esposa, que sempre ficava acordada preocupada com a saída noturna do marido e só descansava quando ele voltava, não sorriu como geralmente fazia.
— Que foi, Rosa?
Rosa girava as miçangas do terço entre dos dedos da mão esquerda.
— O seu Carlos.
As pernas de Alzébio enfraqueceram e ele se sentou na cadeira de balanço ao lado de Rosa. O único Carlos que conhecia era o dono do açude.
— Que que tem seu Carlos?
— Disseram que ele foi achado morto.
Alzébio arregalou os olhos, surpreso.
— Que tragédia meu deus. Como foi que isso aconteceu? Seu Carlos era novo ainda.
— Ele tinha sumido e um dos peão acharo o corpo dele quando foi levar os gado pra pastar.
Alzébio tirou os sapatos e limpou o suor da testa, lembrando que seu Carlos era viúvo e não tinha filhos.
Quem vai tomar conta da fazenda dele agora?
—... tava boiando no açude com as roupa tudo rasgada...
Alzébio travou e olhou para Rosa com os olhos arregalados.
— Que que tu disse, Rosa?
Rosa parou de revirar as miçangas do terço, tendo terminado sua reza.
— Seu Carlos, que deus tome conta da alma, foi achado boiando no açude com a cabeça partida.
Alzébio esfregou a mão na boca com o coração palpitando.
— E tu sabe me dizê que qualidade de roupa que seu carlo tava?
Rosa franziu o cenho pra pergunta estranha de seu marido.
— Tava com uma roupa carinha e um chapéu. Mas o chapéu acharo nas pedra e as roupa tava tudo rasgada. Ninguém sabe por causa de quê.
Alzébio sentiu o mal estar piorar quando lembrou-se do homem de chapéu que o encarou em silêncio na beira do açude naquela noite.
Suor desceu por suas têmporas, a memória fixa na superfície escura como breu... A sensação de ser observado, o fogo da lamparina refletindo as pequenas ondas que se formavam do movimento que vinha de dentro...
— E quando foi que acharo o corpo do seu Carlos? — Sua voz falhou al final.
— Hoje de manhã.
... e o baque de algo pesado caindo na água.
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