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Tranco a porta após Wesley, Paola e Diego irem embora e me jogo no sofá. A exaustão toma conta do meu corpo, então levantar daqui vai ser algo bem difícil. Só espero que Bia durma por mais alguns minutos para que eu possa tentar colocar a cabeça no lugar.
Eu vinha carregando um peso grande desde que Douglas e eu nos beijamos no estacionamento do hospital. Aquela conversa havia mexido muito comigo, e juntando isso à essa história do meu pai ser um psicopata, senti que precisava conversar com meus amigos. Isso pareceu ser o que me ajudaria a tirar esse peso, mas troquei seis por meia dúzia. Agora eu estou aqui pensando se todo esse amontoado de medos e inseguranças vão acabar afastando o Douglas, me impedindo de ver se ele mudou mesmo ou não.
Tenho muitos traumas para serem superados e vozes incansáveis na minha cabeça dizendo o que devo ou não fazer para ultrapassar essas barreiras. Acho que preciso fazer algo que me distraia. Talvez aprender a tocar um instrumento ou fazer qualquer outra coisa que ocupe minha mente, como artesanato. Só que não vai ser nada fácil encaixar um hobby entre minhas tarefas de mãe e dona de casa. Talvez tenha sido uma péssima ideia abandonar a terapia.
É isso. Vou criar coragem amanhã e ligar para a Dra. Juliana e marcar um horário. A Kássia com certeza vai adorar ficar de babá da Bia enquanto me ausento por uma ou duas horas uma vez por semana. Mesmo assim, talvez eu compre um teclado e me matricule em algum curso de música. Se der errado, tento fazer crochê. É silencioso e Bia ainda vai poder usar os sapatinhos que eu fizer. Só que por hora, preciso tentar dormir um pouco.
Levanto-me e estico as costas enquanto respiro profundamente. Olho ao redor à procura de algo que eu precise levar lá para cima antes de levar Bia. Praticamente tudo o que está espalhado pelo sofá. Meu celular, manta, chupeta, fraldas e pomada contra assaduras. Fico ainda mais cansada só de imaginar as duas viagens que vou ter que fazer, e até meu joelho chega a latejar em concordância com minha forma de analisar as coisas. Olho para Bia dormindo como um anjo em seu carrinho e desisto de subir. Pego alguns cobertores e, com cuidado, puxo o carrinho mais para perto de mim. Me ajeito no sofá em instantes, sinto meu corpo adormecer lentamente.
•°• ✾ •°•
Como estava marcado, levei Bia na consulta com a pediatra da clínica da minha mãe. Douglas fez questão de ir e eu gostei disso, pois é exatamente o que nossa filha merece, que seu pai esteja presente em todos os momentos que ele puder estar. Foi doloroso? Muito. Ver nossa filha chorar tomando as vacinas pode ter sido sofrido, por outro lado, ver seu progresso foi maravilhoso.
Faz cerca de meia hora que voltamos da consulta. Como não pudemos passar em outros lugares por estarmos com Bia, viemos direto para minha casa e resolvi oferecer-lhe um café. O que é engraçado, é que quem faz o café quando ele está aqui é ele mesmo. Eu gostaria de poder fazer um almoço decente, mas pelo horário não dá mais tempo. Então, servi um bolo de laranja.
— Você não ficou irritada com aquelas pessoas lá na clínica?! — pergunta. Em seguida beberica o café.
— Que pessoas?
— Os outros pais que perguntaram quantos dias de nascida Bia tinha... — sorrio e levo a xícara à boca. — Quando você disse que ela já tinha um mês, eles fizeram uma cara, Karen... — Douglas semicerra os olhos.
— Eu vi — respondo evitando deixar uma risada escapar. Seria inconveniente. — Eu não me importei, Douglas. Eles não estão acostumados a ver um bebê que nasceu prematuro.
— Tá, mas ela já tá pesando 2,540kg e medindo 48cm! — diz como se para eles, essa informação tivesse que significar alguma coisa. Olho para Bia começando a acordar e se remexer no carrinho.
— Eu sei. Mas eles não fazem ideia de que ela nasceu tão pequena. Aos olhos das outras pessoas, ela ainda é um bebê minúsculo, mas aos nossos, é gigante.
— Principalmente em termos de luta pela própria vida e força — ressalta sorrindo e admirando Bia. Não consigo fazer outra coisa a não ser sorrir também enquanto nossa filha desperta irritada de seu soninho.
— Eu espero que tenha algo que eu ainda possa ensinar à essa menina, já que desde que ela nasceu, é ela quem me dá lições de vida.
Pouso minha xícara sobre a mesa e me levanto para pegar Bia. A última vez que ela mamou foi alguns minutos antes de tomar as vacinas, então, provavelmente ela está com fome de novo. Assim que a encaixo em meu colo, noto seu corpo um pouco mais quente que o de costume.
— O que foi?! — Douglas pergunta. Acho que deixei transparecer que algo não está certo.
— Febre. Mas é normal — explico. — É uma reação da vacina, lembra que a pediatra falou?
— Lembro, mas... — ele faz uma pausa e coça a cabeça. — Será que é reação mesmo ou ela pegou alguma coisa na rua? Ou na própria clínica?!
— É só febre, Douglas. Vou dar um antitérmico e vai passar.
— Eu vou pegar. Me diz onde tá.
— No quarto dela. Numa caixa rosa escrito "farmacinha".
Douglas dá meia volta e vai em direção à escada tão nervoso que chega a me surpreender. Pouco tempo depois volta com o remédio. Ele mesmo abre a caixa e me dá o frasco depois que me sento no sofá com Ana Beatriz.
— E se a febre não passar? — questiona preocupado enquanto eu pingo duas gotinhas do remédio na boca de Bia.
— Vai passar. Fica tranquilo. — ele olha o relógio e depois volta a prestar atenção na reação chorosa da nossa filha devido o sabor do medicamento. — Leva uns minutos pra fazer efeito.
— Eu sei — diz. — É que eu marquei com um eletricista lá no restaurante às 13h e já é quase isso.
Uma avalanche de frustração cai sobre mim por ele ter que ir agora. Confesso que minha vontade é que ele fique mais tempo, pois temos nos dado bem, mas não consigo demonstrar. O medo ainda é maior que isso.
— Pode ir tranquilo. A Kássia disse que vai vir aqui mais tarde. Se eu precisar de alguma, coisa ela vai me ajudar.
— Karen — fala me olhando fixamente —, se ela não melhorar, liga pra mim, tá?
— Tá bom.
Douglas se aproxima de mim parecendo estar ainda um pouco incerto sobre ir ou ficar. Em seguida toca a cabeça de Bia acariciando-a levemente. Estamos tão próximos agora que consigo sentir seu perfume ao mesmo tempo em que o ar que ele exala atinge meu rosto. Seus traços angulosos, que me chamaram a atenção enquanto ele ainda estava inconsciente antes da cirurgia, me despertam a vontade de resgatar o que tivemos.
Ele beija o topo da cabeça de Bia e volta a me olhar. Seus olhar fixo no meu exerce algum tipo de poder sobre mim, me enfeitiçado novamente. Por um breve instante, fico com a sensação de que ele vai me beijar também, mas ele apenas se vira e vai embora.
Me xingo em pensamento por ser da maneira que sou, ou como estou no momento. Insegura, com medo de dar outra chance à nós e me decepcionar. Mas olho para Bia e vejo que esse não é o melhor momento para ficar pensando no pai dela e no quanto eu gostaria que ele ficasse mais um pouco. Nossa filha está febril e minha atenção será toda dela agora. Sei que essa reação é comum, mas também estou preocupada. Eu só não queria demonstrar fraqueza ou induzi-lo a ficar apenas porque eu estou tensa. Não é assim que eu quero que as coisas aconteçam.
Meu estômago ronca me fazendo lembrar que nem cheguei a comer uma fatia do bolo. Tomei apenas metade do café e agora estou com fome. Comer vai ter que ficar para depois. Minha missão agora é tentar fazer com que essa reação às vacinas não incomodem tanto a minha filha.
•°• ✾ •°•
Uma hora se passou desde que dei o remédio à ela. Foi o tempo de eu dar um banho nela para ajudar a febre a baixar e o remédio fazer efeito. Assim que terminei de vesti-la Kássia chegou. E chegou indo direto para a cozinha. Talvez seja hora de contratar alguém para me ajudar em casa, como Douglas havia sugerido. Minha irmã está no Rio com planos de mudar para cá. Em breve ela vai encontrar um lugar para ser seu estúdio e terá uma turminha de crianças querendo aprender balé. Então não posso contar com ela por muito tempo. Pelo menos não da forma como as coisas estão agora, mas devo admitir que, mesmo que a Kássia volte a ser professora de balé e ter pouco tempo para vir aqui, já vai ser uma alegria imensa tê-la morando mais perto. Já imagino Bia se alongando em frente à parede de espelhos com a ajuda da titia.
É uma pena que nossa família esteja abalada por causa do meu pai. Kássia sempre foi mais afastada dele por não concordar que deveria seguir os passos dele em fazer medicina e preferiu até mudar de cidade. Poderíamos estar todos felizes por sua mudança para cá, mas infelizmente descobrimos que nosso pai é um psicopata mentiroso e frio. Eu só não consigo entender como minha irmã ainda consegue não acreditar nisso. Talvez porque não tenha sido ela quem sofreu um luto
— Acho que o Edu e eu vamos precisar do contato daquele seu corretor — diz minha irmã enquanto guarda a louça que acabou de lavar.
— Não sei se vale a pena — falo enquanto balanço levemente o carrinho para que Bia durma mais um pouco.
— Por que não? Ele fez um ótimo trabalho vendendo a sua casa. E ainda conseguiu essa pra você no mesmo dia!
— Você não sabe ou tá fingindo? — Kássia franze o cenho, mas não me convence. Lembro claramente de como ela defendeu nosso pai enquanto eu estava internada logo após Bia ter nascido. Era sobre ele ter comprado a minha casa que ela se referia com tantas insinuações estranhas na tentativa de me convencer a deixá-lo ver minha filha. — Esquece, Kássia. Eu prefiro não ter certeza.
— Eu não sabia, Karen. Eu juro. Mamãe me contou ontem. — ela faz uma pausa esperando uma reação minha, porém, não sei o que falar sobre isso. — Ela tem estado deprimida e cansada. Ele passa a maior parte do tempo dentro daquele escritório. Sai pouco. E quando sai, não diz pra onde. O casamento dos nossos pais tá em crise.
— Por culpa dele mesmo! — falo sentindo uma fúria me consumir.
— No domingo, mamãe disse que a Dra. Amanda fez uma visita a eles. Foi um momento agradável, relembraram os tempos em que ela trabalhou com nossos pais na clínica, mas...
— Mas... — repito com aversão. Odeio que tenha alguma objeção, entretanto, eu já esperava por isso.
— Sempre que o assunto se desdobrava para o momento atual da vida do nosso pai, ele dava um jeito de desconversar.
— É claro! Ele deve se envergonhar do que fez pra chegar onde chegou. Vai recusar ajuda de qualquer pessoa. Por mais profissional e amiga que seja.
— O que ele fez foi muito grave, Karen. Tão grave que teve consequências horríveis. Mas acredito que ele tenha aprendido com o próprio erro e mude.
Eu duvido muito que ele mude, mas não vou dizer isso para minha irmã. Primeiro porque não quero contrariá-la. Segundo porque não quero mais estender esse assunto. Kássia já sabe que foi o nosso pai quem comprou a minha casa e só Deus sabe se ela interpretou isso como uma coisa boa ou ruim, mas de certo, viu como algo bom. Imagino isso pelo fato da minha irmã ter uma boa capacidade de olhar as coisas pelo ângulo bom. E esse lado bom, ela já deixou bem claro quando disse que o corretor vendeu a minha casa e ainda conseguiu me vender esta sem que eu precisasse passar uma noite sequer em outro lugar.
Não quero passar meus próximos dias esperando por algum sinal de sensibilidade do meu pai. Minha vida continua em ritmo frenético e vou seguindo sem olhar para trás.
Capítulo publicado em 08/09/2020
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