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Se eu disser que pensei dez vezes antes de dirigir meia hora até a casa da Karen, é mentira. Pelo menos cinquenta foi o número de vezes que eu avaliei essa possibilidade. Nós temos nossas diferenças e motivos para manter distância uma da outra, mas acho que ela é a única pessoa que pode me ajudar agora. A Luana é histérica demais e alarmaria toda a família deles por causa dessa gravidez, e dadas as circunstâncias, eu não sei mais se quero levar isso adiante.
A lembrança da minha conversa com o Daniel está tão fresca e dolorosa na minha cabeça como se tivesse ocorrido agora. Eu já sabia dessa gravidez há uma semana e estava pensando se ela teria o impacto que eu desejei, mesmo que não estivesse em meus planos. Foi só eu notar meu ciclo atrasado e ver o resultado dos testes para juntar uma coisa e outra.
Daniel e eu temos passado por alguns maus momentos. As raízes desses problemas estão sempre em torno da Karen e ficaram um pouco piores quando a bebê dela nasceu. O Daniel parece pai dela e age como tal. Não sei como o Douglas ainda não se manifestou contra isso, mas de verdade, agora eu não tenho mais condições psicológicas para tentar entender os problemas dele com a Karen e por quê não se entendem logo para eu poder viver em paz com o meu namorado. Só sei que o Daniel parecia tanto querer ser pai dessa menina, que achei que ele gostaria de saber que vai ser pai de um bebê que é realmente dele, feito por ele.
— Nossa... Eu não sei o que dizer. Você não tá feliz com isso?! — Karen questiona com as palavras entrecortadas e o rosto pálido. — O Daniel deve estar nas alturas...
— Ele agiu feito um moleque quando contei. Não mostrou um pingo de emoção e perguntou se eu tinha certeza de que era dele — revelo perdendo o controle. Eu prometi à mim mesma que não choraria na frente dela porque não queria mostrar fraqueza. Não diante da minha maior rival. Vai ser o cúmulo se ela tentar ser amigável comigo por obrigação.
— Isso é impossível! — exclama como se estivéssemos falando de outra pessoa. — Ele jamais faria isso.
Da forma como ele saiu da minha casa ontem à noite, imaginei que ele teria vindo aqui para conversar com ela. Será que essa amizade não era tão verdadeira e eu fui insegura atoa?
— Mas ele fez isso e, pra piorar, não atende minhas ligações — digo com um nó na garganta.
— Qual exame você fez pra saber se está grávida?! — questiona em tom de desconfiança e isso chega a me causar um desconforto.
— Fiz dois testes de farmácia e um Beta HCG — falo retirando os exames de dentro da minha bolsa. Entrego-lhe os papéis e mostro os dois testes positivos. Ela folheia os papéis até se certificar de que estou falando a verdade.
— Ele viu isso? — questiona.
— Karen, ele não duvida da minha gravidez. Ele duvida da minha fidelidade.
Meu sangue parece esquentar dentro das minhas veias quando suas palavras voltam na minha memória.
"Você esteve com outra pessoa enquanto esteve comigo? Quer saber? Preciso de um tempo."
Não consegui acreditar que aquelas frases haviam saído da boca dele. Eu sei que agi mal diversas vezes e acabei dando motivos para que ele desconfiasse de mim, mas não imaginei que me acusaria de traição quando contasse sobre essa gravidez. Eu fui baixa e até infantil por ter usado a Luana como uma aliada. O Daniel não só notou o que eu fiz, mas ficou muito revoltado comigo e, por esse motivo, procurei ser o mais transparente possível com ele. Eu realmente usei a Luana, porém, amar alguém como eu o amo é uma novidade para mim e decidi que usaria toda e qualquer arma para não deixar esse relacionamento acabar.
— Desculpa, Marcela. Mas preciso te fazer uma pergunta...
— Não, Karen! Eu não traí ele!!! — uma náusea me sobe a garganta com essa acusação.
— Marcela, o que quer que eu faça?!
Finalmente ela faz a pergunta que eu queria que fizesse. Não era apenas isso que eu queria quando decidi vir até aqui. Eu não sou boba e percebi que ela tem atração por ele sim. É claro que eu quero que ela tire da cabeça qualquer possibilidade de ficar com meu namorado. E esfregar essa gravidez na cara dela é a melhor forma de fazer isso.
— Você é a melhor amiga dele e tenho certeza que se tem alguém que ele vai ouvir, vai ser você.
Karen franze o cenho numa expressão entre confusa e surpresa.
— Mas isso é um problema entre vocês dois — diz ela. Quero dizer que isso não faz mal, mas não quero que ela se sinta forçada. — Ele errou com você, mas dê um tempo pra ele perceber isso. Tenho certeza que ele vai te procurar em algum momento e até te pedir desculpas.
— Eu também acredito nisso, Karen. Mas você sabe como é estar grávida e querer ter o pai do seu filho com você. Não sabe?!
Sua expressão fica quase impossível de digitalizar, mas tendo conhecimento de tudo o que ela já passou, sei que toquei em sua ferida. Talvez em duas ao mesmo tempo.
— Eu não posso chegar me intrometendo assim na vida de vocês, ou na vida dele. Se ele quisesse que eu tivesse conhecimento disso, teria me contado.
Imagino que ela não queira me ajudar por querer que eu me ferre. Ou não acredite em mim, assim como o Daniel. É óbvio que ela precisa de mais um empurrãozinho, assim como daquela vez em que uma funcionária da clínica deu uma entrevista falando tudo que ela precisava ouvir para reconhecer que estava acabando com o patrimônio dos pais. Fiquei impressionada com a minha capacidade e talento para encenar.
Me levanto e finjo estar farta disso. Talvez eu não esteja fingindo dessa vez.
— Foi um erro ter despejado isso tudo em cima de você.
— Espera — ela pede. — O que pretende fazer?
— Sendo bem sincera, eu não tô a fim de ser mãe solteira.
Os olhos dela se abrem feito dois pratos e chego a conclusão de que não haveria outra frase de mais impacto do que essa.
— Calma, Marcela. Não toma nenhuma decisão de cabeça quente, por favor!
— Então o que você me sugere?! — questiono aflita por sua resposta.
— Tempo. Vamos tentar ganhar tempo até ele ficar mais receptivo. — ainda não é o que eu quero ouvir. — Dentro de você tem uma vida que não pediu pra causar todo esse reboliço e merece atenção. Você chegou a marcar uma consulta pré-natal ou uma ultrassom?
— Não... Achei que ele fosse querer escolher algum médico que ele já conhecesse, mas...
— Olha, o que você acha de irmos ver a que pé está essa gravidez primeiro?
— Tá me propondo isso porque não faz ideia de como é ser humilhada pelo pai do seu filho e acusada de traição! Você só é contra o aborto e não está nem aí para o que eu tô passando!
— Marcela, imagino que você tenha criado uma imagem muito errada de mim de uns tempos para cá. É claro que eu me preocupo com você e é essa mesma preocupação que estou tendo com esse bebê. Prometo que vou conversar com ele se você concordar em fazer alguns exames antes. Uma ultrassom vai ajudar independente da sua escolha.
Ela tem razão. Se depois de tudo isso o Daniel ainda não acreditar em mim, posso procurar uma clínica que faça o procedimento, e eu sei que vou achar. Uma ultrassom vai dar a direção para um método adequado para o tempo de gestação que estou.
— Vou marcar uma consulta pelo meu plano — falo me rendendo. — Vai levar no mínimo uma semana.
— Pra que esperar uma semana quando podemos ir na clínica da minha mãe?
•°• ✾ •°•
Tenho que admitir que a ideia da Karen foi mesmo boa. Combinamos que eu viria para a clínica enquanto ela pegaria as chaves com Dona Heloisa dizendo que vai apenas pegar uma bomba de infusão emprestada porque a da Bia queimou.
Se tudo der certo, vamos poder ver de quanto tempo estou e nem precisaremos imprimir o exame oficialmente. Não haverá nenhum registro em meu nome, e se eu optar por interromper a gravidez, nunca estive grávida. Eu só tenho um único e gigantesco medo: criar algum vínculo com esse bebê e não conseguir fazer o aborto.
É meu último ano na faculdade e, mesmo que eu consiga concluir, não vou poder começar a exercer minha profissão de imediato. Não foi isso que planejei para a minha vida. Não foi assim que imaginei que me tornaria mãe. Na verdade, nunca cogitei essa hipótese. Eu sou o tipo de pessoa que prefere animais, por isso escolhi medicina veterinária. O único ser humano que me despertou um sentimento digno, foi o Daniel.
Pego meu celular e abro o Whatsapp. Nenhuma das mensagens que mandei para o Daniel chegou e sei que não vai chegar. Hoje é domingo e ele está de plantão. Ele não costuma usar o celular quando está no hospital a trabalho. Quem quiser falar com ele tem que ligar pro andar da ortopedia e deixar recado com a recepcionista para que ele retorne. E sendo eu, ele não vai retornar.
Noto o carro da Karen estacionando na vaga em frente ao meu a alguns metros da clínica. A náusea volta mas eu inspiro e expiro calmamente para fazê-la passar sem que eu precise vomitar pela terceira vez no mesmo dia. Saio do carro e vou ao encontro da Karen. Eu tinha certeza de que mencionar o aborto a faria mover céus e terra para me ajudar. Tenho a plena certeza de que todas as chances do Daniel me deixar para ficar com ela vão a zero depois disso. Ele vai ouvi-la e me procurar arrependido do modo como me tratou. Ela vai nos deixar em paz, pois é certinha demais e não vai querer ser uma destruidora de famílias.
Por outro lado, a ideia que ela esteja desconfiada de que estou mentindo me faz querer gritar. Será que ela pensa que forjei um Beta HCG para não deixar o Daniel terminar comigo? Porque eu faria isso se fosse preciso. Se ela estiver mesmo desconfiada, vai ver com seus próprios olhos.
— Está pronta?! — Karen questiona ao destrancar as portas de entrada. Assinto em silêncio e entramos.
Por um instante a clínica parece ter se transformado em lugar sombrio. Geralmente quando eu chego, as luzes já estão acesas e todos os aparelhos prontos para serem usados. Hoje apenas as luzes da recepção e dos corredores estão sendo acesas e o único aparelho que estará ligado vai ser o que vai me dar um passe para a próxima etapa dos meus planos.
Em menos de dez minutos tudo já está preparado.
— Sabe mesmo usar isso?! — pergunto quando vejo a Karen em dúvidas de quais botões apertar para escolher o tipo de exame a ser feito na tela da máquina.
— Sei, só que faz muito tempo que não mexo nisso — diz ela ao apertar alguma tecla. — Pronto!
Uma sensação literalmente gélida paira sobre a minha barriga a medida em que ela espalha um gel lubrificante sobre a região da minha pele onde o doppler vai passar. Daí em diante minha ansiedade só aumenta. Karen movimenta o aparelho pela minha barriga fazendo pequenos segundos parecerem uma eternidade. Porém, chego a levar um susto quando o som do coração do bebê preenche o cômodo. Se essa era a prova que ela queria, aí está.
— Isso não é lindo?! — ela pergunta aparentemente fingindo que está feliz por mim, ou por esse bebê.
— É incrível — falo apreciando o triunfo.
— Você tá grávida há pelo menos seis semanas e o bebê está saudável. Mas depois você vai precisar repetir o exame com um profissional pra ter informações mais precisas. — assinto fazendo uma expressão pensativa. Abortar ainda é uma opção e eu quero que ela saiba disso. — Talvez mostrar esse exame ao Daniel possa ajudar a resolver os problemas de vocês.
— Mas eu já te falei que ele não duvida da minha gravidez...
— Eu sei, mas é que ele... Gosta de bebês. — minha náusea volta ao perceber em suas palavras o quanto ela o conhece. Principalmente por parecer que ela sabe mais sobre ele do que eu. — Enfim... Meus parabéns! Ainda vai ser uma jornada difícil, mas tenho certeza que ele vai ficar, no mínimo, curioso e se fazer inúmeras perguntas. Ele vai te ouvir se você mostrar esse exame a ele.
— Não sei se quero ouvir ele me humilhando de novo, Karen. Não estou preparada para isso — falo tentando anular a ideia de que ela é dispensável. Eu ainda quero que ela se envenene com cada palavra que vai dizer a ele.
— Quer que eu converse com ele?! — ela questiona exatamente como eu quis.
— Você não faz ideia do quanto isso seria importante pra mim, amiga.
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EM LETRAS GARRAFAIS PORQUE É IMPORTANTE!
ESSE CAPÍTULO ESTAVA ESCRITO DESDE O DIA 04/08/2020. SE ELE TEM ALGUMA SEMELHANÇA COM SITUAÇÕES REAIS QUE ESTÃO PASSANDO NA TV OU OUTRO MEIO DE COMUNICAÇÃO É MERA COINCIDÊNCIA.
NÃO USEI O CAPÍTULO PARA MANIFESTAR MINHA OPINIÃO QUANTO AO ABORTO. O QUE ESTÁ ESCRITO AQUI É FICÇÃO, E AS ATITUDES DOS PERSONAGENS NÃO REFLETEM O QUE EU PENSO A RESPEITO.
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Capítulo publicado em 20/08/2020
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