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— Deixa que eu vou ver quem é — Douglas toma a frente e não espera por aprovação minha, simplesmente sai.
Kássia, minha mãe e eu vamos para a janela da cozinha, onde é possível ver sem ser visto de cara, já que as paredes da frente e da lateral da sala são todas de vidro e estão sem cortinas. Um misto de sensações me atinge. Medo, ansiedade, preocupação, medo. Muito medo.
Antes de abrir o portão, Douglas tenta olhar pela pequena fresta entre o muro. Em seguida, ele relaxa os ombros e finalmente o abre. Sem pronunciar nada, ele coça a cabeça e fica parado olhando para quem quer que seja.
— Será que é a vaca da Vivian? — questiono em voz baixa. A tensão não dura muito e logo o Delegado Kepler entra e Douglas fecha o portão.
— Não estou surpresa — diz minha mãe deixando a janela e indo em direção à sala novamente.
— Quem é esse?! — questiona Kássia e segundos depois o Delegado Kepler entra seguido do Douglas.
— Eu pedi que você fosse discreto — Kepler diz ao Douglas em tom opressivo e respiração agitada.
— Eu sei, só que não deu... — Douglas se justifica.
— Desculpa por aparecer sem avisar, Dra. Karen — o delegado diz enquanto me aproximo dele. — O que aconteceu? — pergunta fixando o olhar no curativo na minha testa.
— Um pequeno acidente — falo. — Foi por causa disso que o Douglas foi visto. Espero que tenha como contornar essa situação.
— Contornar?! — ele questiona estupefato e pega o celular do bolso. Após alguns cliques na tela, ele vira o aparelho para mim. O aplicativo é o Youtube e todos os vídeos que cabem na tela do aparelho tem o Douglas estampado nela. - Como eu faço pra contornar isso?
Engulo em seco à medida em que minha mãe toma o celular da mão do delegado para ver do que se trata. Será que ela percebeu que pegou o celular da mão do Delegado Kepler?
— Ronisthei, será que podemos tratar disso em outro lugar, em outro momento? — Douglas questiona parecendo estar incomodado com alguma coisa.
— Não! — Kepler exclama no mesmo instante. Kássia, minha mãe e eu observamos a cena como se fosse um jogo de ping pong. — Temos que falar disso agora! Daqui a pouco toda a imprensa vai estar falando disso e a Interpol vai cobrar de mim!
— Isso é muito delicado — minha mãe expressa ao devolver o celular ao delegado. — Sentem-se. Eu vou fazer um café. Isso deve ajudar a abrir a mente de vocês.
— Obrigado, Dra. Heloísa — o Delegado Kepler expira o ar de forma exasperada, porém nem ele, e nem o Douglas se senta.
— Quanto tempo ainda falta pra isso acabar?! — questiono chamando a atenção dos dois. O delegado me encara perplexo, como se eu não tivesse o direito de tocar nesse assunto. — É sério! Se tem alguém que também não aguenta mais essa situação sou eu!
— Mas acontece, Dra. Karen, que essa investigação não está sendo feita para a senhorita — o delegado diz em tom um tanto arrogante e Kássia o encara com desdém. — É para o país inteiro! Para diminuir o índice de criminalidade e a entrada de drogas no Brasil!
— Olha o jeitinho de falar com minha filha, hein?! — mamãe exclama com o indicador erguido.
— Nossa... — falo sorrindo falsamente, enojada com as minhas constatações. — Agora eu entendo os motivos que o Douglas teve pra se aliar ao senhor. Vocês são iguais. Querem estender uma investigação por tempo indeterminado e prender milhares de criminosos...
— Acho que o propósito é justamente esse, doutora. Ou eu estou fazendo o meu trabalho errado?!
— Eu não sou ninguém, Delegado Kepler — falo reconhecendo que extrapolei meus limites.
— Não — diz ele. — Eu quero ouvir o que você tem a dizer. Como acha que eu deveria estar fazendo o meu trabalho?
Fico tentada a responder sua pergunta. Primeiro porque não consegui entender se o interesse é real ou se ele está sendo irônico. Os olhares que antes estavam voltados para o Douglas e o delegado, agora estão voltados para mim. Respiro fundo e antes de responder, olho para o Douglas, porém, não encontro nenhum indicativo de que eu deva mesmo prosseguir. E por que eu estou esperando aprovação de alguém para dizer o que eu penso?
— Todos vocês estão sendo ambiciosos demais — começo. Logo o modo como o delegado me observa muda de curioso para impassível. — Enquanto vocês montam essa teia gigantesca, todos eles ainda estão cometendo crimes atrás de crimes. Pode ter centenas de pessoas sofrendo as consequências disso por aí. Por que vocês não se contentam com os que já têm? — Douglas me olha com um sorriso fino no rosto, mas assim que noto isso, volto a focar no delegado e continuo dizendo o que eu acho. — Eu tenho certeza de que esse passo já vai enfraquecer o tráfico e muitas pessoas no país e pelo mundo já vão sentir a diferença. A qualidade tem muito mais poder que os números, Delegado Kepler.
Ao fim das minhas palavras, um pequeno silêncio predomina no ambiente. O delegado olha de lado para o Douglas e meneia a cabeça. Minha mãe retorna com o café e troca olhares com a Kássia e elas assentem uma para outra. Devem estar concordando comigo em pensamento.
— O que eu vou dizer à Imprensa? — Kepler direciona a pergunta ao Douglas ao pegar a xícara de café das mãos da minha mãe. Douglas, por sua vez, passa a mão pelos cabelos num ato pensativo e se senta no sofá.
— Pode dizer qualquer coisa — falo —, menos a verdade. Se souberem que ele estava trabalhando na investigação, vão vir atrás dele e, de repente, até de mim ou da Bia.
— Eu concordo — diz minha mãe rompendo o silêncio que tinha feito até agora.
— Mas o programa de proteção no qual eu coloquei vocês não tem data pra acabar — argumenta o delegado fazendo gestos com as mãos. — E se você preferir, posso tirá-las da cidade e fornecer tudo o que precisarem para se sentirem seguras.
— Aí eu que vou ter que viver escondida por causa do Douglas?! — pergunto apontando para ele. — Não mesmo!
— Então o que você sugere?! — Douglas questiona aumentando um pouco o tom de voz. — Eu tô querendo ficar por perto pra proteger você e a nossa filha, mas você não quer; o Ronisthei sugeriu que você saísse da cidade e você recusou... O que você quer então?
— Quero ter a minha vida de volta! — vocifero. — Quero que a equipe de espiões que você escolheu a dedo vá pra puta que pariu! E você pode ir junto!!!
— Calma, Karen! — pede Kássia se aproximando e me fazendo recuar os cinco passos que eu dei na direção do Douglas sem perceber.
Meus batimentos cardíacos fazem parecer que meu peito está sendo atingido por descargas elétricas. Douglas encara o chão e coça o cavanhaque. O delegado beberica o café com uma expressão ainda mais tensa, e minha mãe parece tomar fôlego para dizer alguma coisa. Lá vem.
— Eu tenho certeza de que vocês vão encontrar uma solução pra isso, mas no momento peço que vão embora. A Karen teve uma gravidez muito turbulenta e eu gostaria que ela tivesse, pelo menos, uma recuperação menos ruim.
— Tudo bem. A senhora tem razão — Kepler concorda pousando a xícara sobre a mesa de centro. Em seguida vem até mim. — Me desculpa pelo incômodo, Dra. Karen. Peço que me ligue se mudar de ideia sobre o que conversamos.
Assinto enquanto apertamos as mãos, mas confesso que nem estou olhando em seus olhos direito. Ele cumprimenta minha mãe e minha irmã da mesma forma e eu apenas assisto a cena aguardando sem paciência pelo momento de respirar um ar menos pesado. Douglas se levanta quando o delegado passa por ele, mas em vez de seguí-lo, ele anda em minha direção. Não consigo desgrudar os olhos dos dele porque acho uma atitude muito destemida para quem só está me trazendo problemas.
— Tá doendo ver você desse jeito. Assustada, preocupada... — paro de encará-lo e me limito apenas a ouvir, já que não tenho como desligar minha audição. — Eu queria poder mudar tudo isso e fazer você ter sua vida de volta. Parece que eu a destruí.
— Você não destruiu a minha vida — falo baixo e encarando meus pés, mas ergo o olhar ao dele novamente. —Você se autodestruiu, e isso acabou com o que a gente tinha.
— Me perdoa, Karen — ele pede com a voz embargada. — As coisas fugiram do meu controle.
Faço silêncio por não saber o que responder. Eu ainda sofro por tudo o que aconteceu e dizer que eu o perdôo para que ele não se sinta pior, não vai fazer com que eu me sinta melhor, porque seria da boca para fora.
— O delegado tá te esperando — falo evitando respondê-lo. Ele não se move de imediato, mas acaba entendendo que nada vai ser suficiente para resolver isso e vai embora.
Mal a porta se fecha e eu sigo em direção à escada, pisando firme.
— O que você vai fazer? — minha irmã indaga me seguindo com os olhos.
— Vou tirar essa roupa de cemitério, tomar um banho e ir pro hospital ver minha filha.
•°• ✾ •°•
Sob muitas reclamações, consegui convencer minha mãe e minha irmã a me deixarem ir para o hospital sozinha. Parece que uma mulher de resguardo e com o joelho ferrado não pode dirigir. Talvez eu não possa, mas não ligo. Eu preciso olhar para minha filha e ver que nem tudo entre o Douglas e eu foi destruído; que ela é fruto do amor que a gente sentiu um pelo outro, só que hoje em dia esse sentimento não significa mais nada para mim.
Em meio ao trânsito, minha mente retorna ao momento em que falei para o Douglas que ele pode ir para a puta que pariu com a equipe dele. Na hora foi um peso que eu coloquei para fora através dessas palavras, mas agora parece cruel. Ele estava assistindo o enterro da mãe à distância quando surgi perto do carro. Ele está abalado e eu não consigo escolher palavras para falar para ele. Minha mente está uma tremenda bagunça. Às vezes eu quero xingá-lo até ficar sem voz. Outras vezes quero dizer algo que possa acalentar um pouco seu coração. E é por isso que eu nunca vou conseguir olhar para ele com o mesmo olhar de antes, porque a dor de tudo ainda existe e eu o culpo por isso. Chego a pensar que eu fiz uma péssima escolha ao abandonar a terapia com a Dra. Juliana, mas a eficácia não seria a mesma. De acordo com a realidade em que eu estava, eu só precisava superar a morte do Douglas, mas agora, o que eu deveria estar tentando superar? Que fui enganada? Que fui trocada por uma missão pela nossa pátria? Que passei por uma gravidez complicada e um parto prematuro sem o pai da minha filha ao meu lado?
Chego ao hospital com a mente ainda um turbilhão. Faço todo o trajeto até a UTI neonatal com as mãos suando e o peito carregado de inúmeras coisas. Coisas essas que nem consigo dar nomes. Medo? Angústia? Melhor nem tentar nomear porque eu não quero trazer essas coisas para o ambiente onde a minha filha está se recuperando.
Paro na janela de vidro e não avisto a incubadora onde Ana Beatriz estava. Uma sensação estranha começa a me assombrar no mesmo instante, então viro na direção da recepção da UTI já com os nervos à flor da pele. O caminho parece distante para o meu joelho dolorido e eu sibilo um palavrão devido à raiva daquela maldita maca que me atingiu dias atrás. Uma figura se coloca em minha frente e me impede de continuar andando.
— Eu já ia te ligar — diz Dra. Layla.
— O que aconteceu? — pergunto aflita. - Cadê a minha filha?
— Acabei de tirá-la do isolamento. Ela está ótima — diz animada fazendo meus ombros relaxarem à medida em que minha aflição vai dando lugar à felicidade. — Ela ainda precisa ficar na incubadora, mas você pode segurar a mãozinha dela.
— Jura?! — pergunto quando a emoção me faz achar que estou sonhando. O nó que eu tinha na garganta se desfaz e me dou conta de que a Ana Beatriz agora é minha principal fonte de força e amor.
— Vamos vestir uma roupa estéril e...
— Fazer assepsia das mãos — completo eufórica. — Vamos logo!
Layla sorri com a mesma animação que eu e partimos juntas rumo ao vestiário, onde estou bem habituada e nem preciso de mais nenhuma instrução dela. Me sinto em casa e cada milímetro da minha pele chega a ficar arrepiada sabendo que daqui a alguns minutos estarei segurando a mão da minha Bia.
Para toda coisa ruim que acontece na minha vida, tem uma coisa boa que supera qualquer acontecimento, por pior que ele seja. Quando tentei suicídio, ouvir as batidas do coração da minha filha foi o ponto mais alto daquele dia. Talvez o único. O Daniel soube exatamente como me mostrar que eu tenho motivos para continuar. E valeu cada minuto.
— Pronta?! — Layla pergunta antes de abrir as portas do quarto novo onde Bia está, ainda na UTI. Assinto e então nós adentramos o quarto.
O ambiente ainda exala aquele ar de que todos os bebês aqui dentro ainda inspiram muitos cuidados, mas só de eu poder estar aqui dentro, já sinto que concluímos mais uma etapa. Sigo Layla até a incubadora onde Bia e está e logo que a avisto, meu coração se derrete por ela. Meu sorriso tem uma curva nas laterais, mas é só por lembrar da nossa trajetória até aqui. Seu tom de pele está bem mais rosado, diferente do roxo que eu vi assim que ela nasceu. É tão bom poder vê-la sem uma imensa camada de vidro entre nós!
— Essa cadeira é pra você.
Dra. Layla puxa a cadeira mais para perto de mim, ao lado da incubadora. Não penso duas vezes e me sento. É um momento único, singular e muito especial para mim. Coloco a mão no espaço em formato circular e, antes de segurar a mãozinha da Bia, acaricio seus dedinhos finos. Ela sente o meu toque e por reflexo, ela abre a mão e agarra o meu dedo. Sinto um sobressalto no coração e sorrio com o inesperado.
— Curta esse momento — fala a doutora. — Vou deixar vocês a sós.
— Obrigada — manifesto emocionada.
Volto minha atenção à minha filha enquanto ela aperta o meu dedo com uma força que eu não sabia que ela era capaz de ter. Os papéis acabam de se inverter. Achei que viria dar força à Ana Beatriz, mas ela é quem acaba de me deixar mais forte.
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Oiiiii genteeeeeeee!!! Hoje o livro bateu 30mil leituras e, seguindo sugestões, publiquei esse capítulo em comemoração! Tenho muito a agradecer a vocês, tanto por lerem, quanto por terem tanta paciência comigo.
Espero que estejam todas bem e mantendo as recomendações no ministério da saúde, mas não vou aprofundar nisso não. Os livros nos ajudam a fugir da nossa realidade particular, então vamos apenas nos deixar levar pela leitura. Tenho me esforçado muito para escrever e durante essa semana consegui sair de um bloqueio de... até perdi as contas. Peço que votem e comentem o que quiserem, desde que seja motivador.
Enfim, obrigada e até o próximo capítulo.
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Capítulo publicado em 01/05/2020
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