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— Você não acha que exagerou um pouquinho, não?! — pergunto irritada à Kássia assim que o Douglas bate a porta. Minha irmã começa a dobrar a roupa de cama que ele usou e nem me dirige o olhar. E eu sei o porquê. Ela já reconheceu que exagerou e está refletindo sobre isso. Se a ocasião fosse outra, eu deixaria passar. — A mãe dele acabou de morrer Kássia! Sendo que ele já está se culpando.
— Eu sei... — ela diz sem vontade.
— Ah, sabe?! — ironizo. — De onde você tirou a ideia de que o fato do Daniel ter feito o parto da Bia significa que ele está tomando o lugar do Douglas como pai?
— Eu...
— Pior! Você provocou ele contando que ela foi pro hospital enrolada na camisa do Daniel!!! Você enlouqueceu???
— Desculpa, Karen! — ela pede mais por obrigação do que por vontade própria. — Eu não gostei do ataque de ciúmes dele por causa do Vinícius! Ele deveria saber que esse é dos males o menor... Tem coisas muito mais sérias acontecendo.
— Então por que você não falou desse jeito que você tá falando comigo agora? Não precisava de toda essa provocação ridícula.
Kássia coça a consciência e se senta ao lado da pilha de cobertores. Eu não sei mais o que dizer, embora a vontade de estender o sermão seja gigante. Estou exausta de ter que enfrentar tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo... Bia prematura e internada; meu pai e eu não nos falamos mais; eu tendo que manter distância do Daniel; Dona Ana faleceu. Dona Ana faleceu. Dona Ana faleceu.
— Eu não queria piorar as coisas, Karen... — diz minha irmã. Então percebo que estou em pé no meio da sala aos soluços.
Minha irmã se levanta e vem até mim abrindo os braços para me abraçar. Eu nego com a cabeça e estendo a mão para que não chegue mais perto. Além de exausta, estou farta de ficar demonstrando ser fraca ou não tão forte quanto deveria ser. Já tentei desistir de tudo, mas por alguma razão, não consegui. Tentaram me matar e não conseguiram. Eu sou a mulher mais forte do mundo. Só estou triste porque a avó da minha filha não viveu por mais alguns dias para, pelo menos, pegá-la no colo. Agora minha luta é pela minha filha, que está num hospital sem mim.
Sinto o olhar indecifrável da minha irmã sobre mim equanto lágrimas e mais lágrimas descem pela minha face. Talvez ela esteja com pena, talvez esteja com dúvidas se deve ou não me deixar sozinha, talvez ela só queira estar perto de mim. Eu não sei. Só sei que dói e todo o meu corpo começa a pesar. Me sento na poltrona vazia e enxugo meu rosto. Inspiro e expiro o ar tentando expurgar um pouco de toda a pressão que ocupa meu peito e me impede de colocar meus pensamentos em seus devidos lugares.
— Fala alguma coisa, Karen — as palavras da Kássia saem como um pedido de socorro.
— Minha noite foi péssima - começo a pôr para fora à medida em que minha irmã se senta e me observa atentamente. — Todas as minhas noites são assim, mas essa... Essa foi diferente. Eu estava chorando no andar de cima e o Douglas chorando no andar de baixo. Eu sabia que esse momento chegaria, só não sabia como. Não passou pela minha cabeça que, de certa forma, eu assistiria o sofrimento dele pela perda da mãe.
— Isso tá te deixando confusa? Já sei — diz me analisando delicadamente. — Ver o Douglas sofrendo tá mexendo com você, não é?
— Sim e não, Kássia. — uma leve pressão na cabeça começa a me incomodar. — Se você acha que isso tá me fazendo mudar de ideia sobre nosso término, está errada. O problema é que... Eu não queria que ele passasse por isso. No fundo eu estava torcendo para que desse tempo dele voltar definitivamente e que a Dona Ana fosse curada... Sei lá...
— Perder alguém mexe mesmo com o nosso psicológico, Karen. Não precisa ficar se explicando.
— Não é isso... Acho que depois de toda essa farsa da morte do Douglas, eu passei a ficar na expectativa de que coisas impossíveis possam acontecer. — Kássia suspira fundo com a minha confissão e fica em silêncio. Chego a conclusão de que deveria ter guardado isso para mim mesma. Quem saberia o que dizer sobre isso? — Só espero que eu tenha conseguido tirar um pouco do peso que ele estava colocando sobre si.
Eu carreguei um peso parecido e sei o quanto isso dói. A diferença é que a mãe dele morreu de verdade e ele pode acabar carregando isso pelo resto da vida. Já eu, vou lembrar do quanto ela me deu força para suportar a minha dor, isso tudo com o coração dela sangrando ainda mais que o meu pela saudade do filho. Tudo bem que a maior parte disso é culpa do meu pai, mas não é possível mudar o passado. Apenas fazer melhores escolhas que vão impactar no nosso futuro.
•°• ✾ •°•
Dar adeus à minha sogra está sendo a segunda maior dor da minha vida. A primeira foi perder o Douglas. Isso ainda é muito real e fresco na minha memória. A verdade pode ser contada, mas a dor que a mentira causou não pode ser mudada. A tarde está chuvosa e todos os membros da igreja dela estão presentes. Não só eles, mas alguns pais das crianças com câncer também estão se despedindo dela. Alguns já até enterraram seus filhos neste mesmo cemitério, mas a gratidão pelos momentos em que ela proporcionou sorrisos aos seus pequenos os fizeram prestar uma última homenagem.
Minha mãe, Kássia e Paola também fizeram questão de estar aqui hoje. Digamos que todo mundo que já teve algum tipo de contato com a minha sogra, foi contagiado por uma energia boa e lamenta a forma cruel como ela se foi.
Passagens da Bíblia Sagrada são lidas pelo pastor da igreja da Dona Ana. Minhas lágrimas já se misturaram às gotas de chuva enquanto minha mente se desliga do momento e me levam a questionar por que pessoas tão boas se vão. É claro que a vida tem um ciclo, mas por que tão cedo? Por que desse jeito? Inúmeras pessoas presentes aqui devem estar se perguntando a mesma coisa. Olho em volta e vejo a dor estampada em cada rosto. Menos um, que não exprime sentimento algum escondido atrás de óculos escuros. Vivian está de preto como a maioria, mas seus cabelos ruivos acabam fazendo com que ela se destaque na multidão. Já não sei em que versículo o pastor está, então tanto faz se eu sair de fininho um pouco. Recostada num Logan preto com vidros escuros como a noite, ela está cabisbaixa e não nota quando chego perto.
— Chegou conhecê-la pessoalmente? — questiono com um nó na garganta, mas confesso que estou intrigada por ela estar aqui. Vivian ergue o olhar e parece não se surpreender em me ver.
— Conheci, mas ela não gostava muito de mim. Dá pra acreditar?! — ela pergunta ironizando.
— Não. Realmente é difícil acreditar — falo. — Dona Ana era o tipo de pessoa que amava até a criatura mais horrível da face da terra. — Vivian ri, mas sem chamar a atenção.
— Você sabe que não estou aqui exatamente por ela, não sabe?! — mais intrigada que antes, dedico meu olhar à ela com mais atenção dessa vez. Vivian meneia a cabeça na direção do carro e eu junto os pontos na mesma hora.
— Você sabia de tudo, não é, sua...
— Respeita a falecida, não me xinga aqui. — meu sangue parece entrar em ebulição quando um filme passa na minha cabeça exibindo o Douglas com a Vivian todo esse tempo. — Presta atenção, Karen. Eu tentei fazer esse imbecil desistir disso, ok? Mas parece que tem um problema entre eu falar e ele entender.
— Vocês se merecem — falo dando as costas a ela, mas uma força puxa meu braço.
— É sério! — ela insiste. — Eu sei que o meu jeito faz parecer que sou insensível, só que eu o aconselhei a voltar quando ele disse que a mãe tava doente. Ele ficou dividido, mas achou que daria tempo.
— Mas infelizmente não deu — argumento.
— E ele tá arrependido agora — ela diz.
— Você virou porta-voz dele agora?! — indago irritada por infinitos motivos e puxo meu braço com força. Ela sabia de tudo e fez uma cena de teatro no apartamento dos meus pais. Ajudou todo mundo a me enganar enquanto estava ao lado dele o tempo todo.
A porta do carona se abre apenas o suficiente para que nós duas notemos. Se ele pensa que vou dar mais uma oportunidade para se explicar, está muito enganado.
— Karen, entra no carro — ele pede.
— Sem chance — falo friamente. — Você não vai mais conseguir me enrolar.
— Eu achei que você soubesse que a Vivian estava nessa missão comigo — diz ele num tom um pouco mais alto, já que não aceitei entrar no carro. — Ela me ajudou naquela noite em que alvejaram seu carro.
— Isso tudo é ridículo — digo e começo a me afastar deles, mas tropeço no meio fio e não consigo evitar a queda.
Uma dor excruciante se espalha pela minha cabeça logo depois do impacto sobre algo duro. Minha visão fica turva e algo quente escorre pela minha testa, mas ainda consigo ver a silhueta do Douglas abaixado na minha frente. Usando o mesmo boné de mais cedo e os óculos escuros. Suas roupas também são as mesmas de quando ele saiu da minha casa.
— Karen! — ele exclama meu nome segurando meu rosto. — Você tá sangrando.
Já é tarde demais quando o Douglas percebe que saiu do carro atraindo olhares de todas as direções. Membros da igreja estão se aproximando à medida em que a Vivian tenta, em vão, entrar na frente dele e evitar que o reconheçam.
— Cara, volta pro carro agora!!! — ela sibila.
Douglas continua me encarando parecendo estar em dúvidas entre me ajudar a levantar e pressionar a ferida na minha cabeça.
— Vai, Douglas — cuspo as palavras e toco a lesão. — Vão acabar te reconhecendo...
— Não — ele responde em tom firme. Vivian o fuzila com os olhos e franze o cenho como se não tivesse entendido o que ele falou. Eu também não sei se entendi. — Eu não vou. Chega de me esconder. — mais claro dessa vez, porém ainda estou intrigada e zonza demais para reagir. Douglas me segura e começa a me erguer do chão.
— Você só pode estar louco!!! — exclama Vivian.
— Louco eu estava quando decidi largar tudo — ele rebate.
Minha mãe e Kássia surgem no meu campo de visão, ambas olhando o Douglas como se fosse o causador do meu ferimento.
— Mas o que você fez com ela?! — mamãe questiona com uma multidão em torno de nós. Pessoas estão com celulares nas mãos registrando toda a cena.
— Eu tropecei, mãe. Bati a cabeça naquela pedra — falo apontando para a tal pedra enquanto vou em direção à minha mãe com meus próprios pés, mas mesmo assim, Douglas continua me segurando e indo junto comigo. Isso me incomoda.
— Acho que ela vai precisar de pelo menos cinco pontos — diz ele.
— Você... tá... vivo? — sibila Irmã Helena, mãe de Sofia e melhor amiga da Dona Ana.
— Eu tô, Irmã Helena. Muito vivo.
Meu coração parece que vai sair pela boca a qualquer momento. As pessoas em torno de nós olham para ele boquiabertos enquanto minha mãe me puxa das mãos dele tomada em preocupação e me guia para longe do aglomerado de gente, que está dividido entre jogar flores sobre a sepultura e olhar o ex morto.
Dou uma breve olhada para trás à medida em que nos afastamos e vejo a Vivian falando ao telefone gesticulando de forma agitada. Kássia vira meu rosto para si colocando uma toalha sobre minha ferida, o que me impede de ver o que mais está acontecendo enquanto deixamos o local. Não adianta andar mais rápido, estamos sendo seguidos pelos curiosos e cinegrafistas amadores.
Alcançamos o carro e quando finalmente estamos dentro dele, a ficha do que está acontecendo cai. Douglas mostrou para o mundo e acabou sendo descoberto. Não vai demorar muito e a notícia do policial morto vai ganhar uma nova repercussão.
— Onde você estava com a cabeça?! — minha mãe pergunta retirando a toalha que a Kássia colocou e analisa o corte.
— Na sua filha — a voz grossa do Douglas invade meu ouvido esquerdo e então me dou conta de que estou sentada no meio dos dois.
— Você tinha que ter pensado nela um tempo atrás, antes de escolher morrer — ela responde colocando a toalha no lugar e pressiona, fazendo o local doer bastante. — Vamos pra casa da Karen, Kássia.
— Como pra casa dela?! — ele questiona no mesmo instante em que minha irmã dá partida no carro. — Ela precisa de pontos!
— Não precisa, não — rebate minha mãe. — Ela só rompeu uma veia. Um curativo resolve sem precisar alarmar o hospital inteiro com a sua presença.
A respiração exasperada do Douglas sai alta o suficiente para me incomodar ainda mais. Eu não entendo como ele está conseguindo ser tão inconstante nessas últimas horas.
— O que você tá pensando em fazer agora? — questiono. Qualquer que seja o plano dele, eu não consigo ver de uma forma que não atraia a mídia, como foi quando ele morreu.
— Não sei — diz ele. — Eu só não aguento mais isso.
Sua resposta não alivia a tensão dentro do carro, pelo contrário. Tudo daqui em diante é totalmente incerto e minhas preocupações giram em torno da Bia. Muitas pessoas podem querer fazer algum mal à ela para afetar o Douglas. Mesmo que eu quisesse tentar perdoá-lo e recomeçar nossa vida, eu não conseguiria. Tenho a sensação de que as consequências da escolha dele vão ser eternas.
•°• ✾ •°•
Minha pele arde quando minha mãe higieniza a área com álcool. Minha expressão não muda. Tendo em vista tudo o que passei nos últimos meses, o que é uma borrifada de álcool em uma ferida aberta? A visão ampla me permite ver a Kássia bebendo um copo d'água. Douglas está mudo alternando as janelas da cozinha por onde ele espia a movimentação do lado de fora. A cena chega a me arrepiar em alguns momentos porque eu não sei se isso é um bom ou mal sinal. Fico pensando se fomos seguidos por alguém ligado ao cartel que pode ter desconfiado de toda essa farsa e estava de tocaia vigiando nossos passos.
— Se alguma coisa acontecer com a minha filha...
— Nossa filha — ele me corta.
— A culpa vai ser toda sua! — exclamo enfatizando as palavras "culpa" e "sua". Ele deixa a janela e vem em minha direção.
— Não vai acontecer nada com ela — ele afirma sem fundamento algum. — O hospital está sendo vigiado desde que minha mãe deu entrada lá e a equipe não vai sair de lá porque ela morreu. Eles sabem que a nossa filha está internada lá.
Uma sensação gélida começa a me consumir por dentro. Tudo isso não está mexendo só comigo e eu preciso tentar ser menos rude com ele. Mas é mais forte que eu.
Com os nervos à for da pele, dou um salto da cadeira quando a campainha toca. Minha mãe e Kássia trocam olhares e Douglas põe a mão na linha da cintura, se preparando para sacar sua arma.
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Genteeeeeeee! Que saudade de vocês!
Bom, a pausa está mantida, como disse anteriormente, precisava receber a energia de vocês para resgatar a conexão com a história e os personagens, pois sempre que pego no bloco de notas para dar continuidade, parece que o livro é de outra pessoa... Enfim, comentem tudo que vier à cabeça de vocês, desde que seja constitutivo. Isso sempre me motivou e não vai ser agora que vai ser diferente. Comentem, votem, lavem bem as mãos e se protejam do coronavírus.
Amo vocês!
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Capítulo publicado em 28/03/2020
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