40
Minha cabeça está a mil sabendo que a Karen está em trabalho de parto precoce dentro do meu carro, sendo que a bebê está em posição pélvica e eu não consegui avançar mais que cem metros por conta da quantidade de carros que ainda transita no entorno da academia. Sei que ela está tentando não perder o controle, só que ainda não se deu conta de que não tem como impedir que a bebê nasça hoje. A bolsa já está rompida e as dores estão ficando cada vez mais frequentes.
— Qual o intervalo das contrações? — pergunto olhando-a pelo espelho retrovisor.
— Eu não sei — diz ela angustiada e inquieta. — A última parou há... sei lá... oito minutos. Ai — resmunga fechando os olhos. — Está vindo outra.
— Kássia, marca quanto tempo leva entre uma contração e outra, por favor — peço tentando traçar um plano contra o relógio.
Começo a buzinar em vão, pois parece que, para piorar, há um desentendimento entre dois motoristas por causa de uma vaga. Me equivoco e desço do carro a ponto de tirar os carros da minha frente com as minhas próprias mãos.
— Com licença — peço tentando manter a calma. — Tem uma mulher em trabalho de parto dentro do meu carro e a situação é bem delicada. Será que vocês poderiam afastar os veículos para que eu consiga levá-la para o hospital?!
Um dos caras me olha com sangue nos olhos enquanto o outro xinga meia dúzia de palavrões.
— Segura a onda aí, amigo. Estamos resolvendo um negócio aqui — diz o idiota e retoma a discussão com o outro imbecil.
Sinto meu sangue ferver por todas as veias do meu corpo e no momento em que cerro meus punhos, um outro cara com pinta de valentão se aproxima. Parece que uma confusão maior está para começar.
— Cara, o que tá acontecendo? Cadê a Karen? — ele pergunta me deixando perplexo.
— Quem é você?! — indago.
— Agente Vinícius — responde ele colocando o distintivo pendurado em seu pescoço para fora da camisa preta. — Perdemos ela de vista no caminho pra cá.
Respiro fundo. Eu havia esquecido que a Karen está sendo escoltada desde que aquela merda toda aconteceu com ela. Antes que eu responda, um grito agudo é ouvido do meu carro. O agente corre na direção e vou logo em seguida explicando o que está acontecendo.
— Ela tá em trabalho de parto, e eu estava tentando tirar aqueles dois idiotas do meio da rua pra poder levá-la para a emergência.
Sem reagir sobre o que acabei de falar, ele continua andando a passos largos até ver com os próprios olhos.
— Tá tudo bem, doutora? — ele pergunta, porém a Karen está no meio de uma contração e não responde de imediato com palavras, apenas com um grito sofrido.
— Abre caminho pro Daniel me levar pro hospital, pelo amor de Deus! — ela implora quando a dor alivia e imediatamente o valentão se dirige aos dois babacas que ainda discutem.
Volto para o carro e me preparo para arrancar com tudo para o hospital assim que esse cara liberar a via. Sem nenhum pingo de descrição, ele gesticula como se fosse o dono da rua, mostrando o distintivo como mostrou a mim e apontando para o meu carro. Não demora e muito tenho o caminho livre para seguir. Ao passar por ele, buzino duas vezes em forma de agradecimento e disparo por entre os carros.
É um parto super arriscado. É cedo demais, com a bebê em posição inversa, é grave demais. Talvez seja melhor tomar alguma atitude, mas de que tipo? Nessas horas parece que o nosso raciocínio deixa de ser eficaz, é por isso que não podemos tratar de pessoas próximas.
Layla. Talvez seja a melhor opção por agora.
Conecto meu celular ao rádio do carro para não precisar ficar segurando o aparelho enquanto dirijo e disco o número do hospital onde eu trabalho, para o qual estou levando a Karen.
— Hospital Particular Firmino Machado, Júlia, boa noite.
— Júlia, é o Dr. Daniel. Transfere a ligação pro setor de obstetrícia, por favor — peço rapidamente.
— Claro — diz ela e uma música de espera extremamente irritante começa a tocar.
Olho mais uma vez para a Karen pelo espelho retrovisor. Ela não percebe que está sendo observada.
— Como estão as coisas aí atrás? — pergunto chamando sua atenção e ela se volta a mim pelo reflexo.
— Eu estou com medo — ela admite aos prantos. — Não sei se ela está nascendo ou... se eu estou perdendo ela.
Por um instante meu coração se arrebenta em milhões de pedaços. Eu nunca a vi tão assustada, angustiada e sentindo tanta dor. E o pior é não saber o que dizer para acalmá-la, já que eu não tinha olhado a situação por esse ângulo e agora não faço ideia se isso é um parto prematuro ou um aborto espontâneo.
— Obstetrícia do Hospital Particular Firmino Machado, Natália, boa noite.
— Natália, chama a Dra. Layla o mais urgente que você conseguir — peço mais preocupado do que antes. — Diz que é o Dr. Daniel.
— Ela está aqui, vou passar para ela — diz a atendente e eu até chego a suspirar fundo aliviado. — É o Dr. Daniel — ouço um pouco abafado, ela deve ter tampado o telefone com a mão.
— Daniel?! — ela exclama ao telefone.
— Layla, eu estou a caminho daí de carro com uma gestante de 26 semanas em trabalho de parto, tem como você vir me encontrar com uma ambulância equipada com UTI neonatal??? — questiono de uma vez e antes que ela responda, a Karen grita com outra contração.
— Manda sua localização agora pra mim, pode ser? — pergunta tomando meu pedido angustiado por um desafio.
— Fala o seu número — peço dessa vez encarando a Kássia pelo retrovisor e ela entende o que eu preciso que seja feito. Ela anota o número e poucos segundos depois de encerrar a chamada nossa localização é enviada para a Layla. Mas aí lembro de alguns detalhes e ligo para o número que ela acabou de me passar.
— Layla — chamo assim que ouço o som da correria com a ambulância do outro lado da linha. — Tem mais uma coisa.
— Fala tudo, Daniel — pede em uma mistura de autoritarismo com solidariedade.
— A bebê tá sentada.
— Ah, não... — diz Layla deixando a Karen desesperada no banco de trás.
— Não diga que estou perdendo a minha filha, pelo amor de Deus! — Karen suplica dolorosamente em lágrimas, sendo consolada pela irmã.
— Não, meu amor. Qual é o seu nome? — Layla pergunta mudando seu tom de voz para o modo Doutora Atenciosa.
— Karen — ela responde entre uma respiração apressada e outra.
— Karen, estamos saindo do hospital agora na ambulância mais instrumentada que você possa imaginar. Temos tudo o que você e sua filha precisam e faremos todo o possível para esse ser um parto de sucesso. Você só precisa confiar na gente, tá bom?
— Tá — é só o que a Karen consegue dizer com tanto medo que está sentindo agora.
— Quantos minutos entre uma contração e outra, Karen? — pergunta Layla.
— Cinco minutos — ela responde enxugando as lágrimas em vão.
— Daniel, tem mais alguém no carro além de você e da Karen? — ela pergunta receosa.
— Sim, a irmã dela está no banco de trás com ela.
— E ela sabe dirigir?!
— Sabe — respondo desconfiado.
— Ótimo! — ela brada.
— Ótimo por quê??? — questiono apreensivo.
— Porque eu acho que não vou conseguir chegar até vocês a tempo. Vocês precisam trocar de funções agora!
— Ah, Meu Deus!!! — Karen grita, não sei se é pela nova informação ou por causa da dor.
— Ah, qual é, Layla?! — exclamo ao pararmos no sinal vermelho. — Vocês estão em uma ambulância e nós estamos indo um na direção do outro! Como não vai chegar a tempo?!
— Karen! — Kássia diz assustada. — O que você tá fazendo?!
Olho para trás e fico paralisado e boquiaberto quando vejo a Karen tirando a calcinha sem se importar com nada. Nem mesmo com a dor no joelho, que a essa hora deve ser sua menor dor.
— Eu tô sentindo uma pressão aqui embaixo... — ela se justifica fazendo uma careta de dor.
— Acho que é melhor você trocar de função mesmo comigo, Daniel. Agora!!! — Kássia berra saindo do carro e dando a volta, sem esperar minha opinião, mas acho que não tenho escolha.
Deixo o volante com a adrenalina percorrendo minhas veias em níveis bem altos. Abro o porta-malas e pego minha mochila, na qual guardo um kit de primeiros socorros, só que com algumas coisas a mais, como luvas cirúrgicas. Assumo o lugar da Kássia, mas devo salientar que não estou nada à vontade com isso. Na verdade, eu estou nervoso, muito nervoso, porém, não quero e não posso deixar isso transparecer para a Karen, senão ela é quem vai ficar nervosa e isso não é o que eu quero. Ela está sentada na beira do banco do carro, inclinada para frente como se quisesse deitar. Seus cabelos estão úmidos por toda a sua têmpora e uma fina camada de suor se espalha pelo seu rosto, misturada às lágrimas. Ela deve estar desconfortável com tanta dor e é óbvio que não sou eu a pessoa que ela gostaria que estivesse por perto nesse momento, e sim, o Douglas, mesmo com tudo o que aconteceu. É o pai da filha dela que ela gostaria que estivesse aqui agora.
— Karen — chamo-a no tom mais sereno que consigo. — Posso te examinar? — ela nega com a cabeça sem nem me dirigir o olhar e fica segurando a barriga tentando conter a contração. — Eu sei que você está com medo e...
— Isso não é hora pra ter vergonha, ok?! — grita Kássia. — Deixa ele ver!
— Karen, o Daniel é um ótimo médico e nesse momento, os olhos dele são os meus olhos — diz Layla tentando deixá-la segura. — Preciso que você deixe ele te avaliar. Pode confiar nele.
— Eu sei — Karen responde suspirando. — Só... espera essa contração passar.
Não sei se é mesmo por causa da contração ou se ela quer criar coragem primeiro. Transamos duas vezes, já vi ela nua, mas isso é diferente. Minha única preocupação agora é passar as informações que a Layla precisa e apressar a Kássia para que dê tempo de nos encontrarmos com a ambulância no caminho.
Karen respira fundo e começa a se ajeitar no banco, virando de frente para mim, mas sem me olhar nos olhos. Devagar, ajudo-a a se deitar. Ela deve estar muito constrangida agora, pois ainda está com as pernas fechadas.
— Você precisa...
— Eu sei! — ela me interrompe sabendo o que eu iria dizer, e então, afasta uma perna da outra.
Nossa!
Aquele piercing é real mesmo! Achei que ela estava tão bêbada naquela noite ao telefone e a história do piercing fosse maluquice.
— Daniel, já está examinando ela? — a voz da Layla na merda dos alto-falantes do carro chega a me causar um pequeno susto. Confesso que me distraí um pouco com esse... negócio.
— Vou examiná-la agora — aviso.
— Ainda se lembra de como fazer as manobras de Leopold? — pergunta Layla.
— Lembro, vou fazer agora — respondo já começando a apalpar a barriga da Karen.
As manobras de Leopold são uma série de quatro movimentos palpatórios para saber em que posição o feto está. O problema é que a bebê é pequena demais e com o útero contraído, fica impossível para mim, que não sou obstetra, identificar se ela está mesmo sentada.
— É melhor você mesma examinar quando chegar, Layla — opino. — Pra mim, tem uma melancia na barriga dela. É só o que consigo sentir.
— Estamos a 10 minutos de vocês, mas todo o tempo é precioso. Faz o toque, Daniel. Vê quanto ela tem de dilatação.
Eu já temia que ela fosse me mandar fazer isso, por esse motivo já estou com as luvas nas mãos.
— Karen, isso vai ser um pouco incômodo — ressalto.
Com receio, inicio o toque pélvico. Ela geme de dor enquanto eu pressiono a barriga dela para baixo com a outra mão, forçando a bebê a descer para que eu consiga saber o quanto ela está dilatada, mas não está sendo nada fácil.
— Layla, eu não consigo calcular a dilatação, mas estou sentindo um dos pés da bebê — falo tocando o pezinho dela com o meu indicador.
— Isso não é bom... — diz ela em tom de desaprovação.
— Por quê? O que tem de errado?! — Karen questiona entre gemidos de dor e respirações arrastadas enquanto eu procuro o outro pé com o tato.
— Desculpa, eu esqueci que a ligação está no viva-voz — pede Layla. — Eu estava prestes a pedir que o Daniel fizesse a VCE, mas não dá mais.
— O que é VCE? — Kássia questiona com curiosidade e preocupação.
— Uma manobra pra inverter a posição do feto — explico rapidamente. De repente, sinto a bebê descer mais e me assusto.
— Karen, não pode fazer força ainda! — falo preocupado.
— Não tô fazendo força. Não consigo mais controlar — explica ela antes de gritar com seu útero se contraindo mais uma vez, expulsando a bebê mais um pouco.
— Daniel, está em suas mãos! — exclama Layla me fazendo estremecer.
— Como?! Eu só tô sentindo uma perna!!! — falo à beira de um ataque de nervos.
— Daniel — diz Karen aos prantos e exausta —, não tem pessoa melhor no mundo pra fazer isso!
— Eu... Eu não sei como fazer isso sem te machucar — revelo um dos meus principais medos nesse momento. O outro é machucar a pequena bebê.
— Pode deslocar um osso meu, eu não me importo, mas tira ela de mim ilesa, tá bom? — diz ela lutando contra o cansaço para se manter consciente.
Assinto sentindo a maior responsabilidade recair sobre os meus ombros em todos esses anos de profissão. Porém, vou fazer como a Karen me pediu, não que eu realmente vá deslocar um osso dela, mas vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que a filha dela chegue ao mundo bem.
— Faça força quando vier outra contração — peço.
De certa forma, chega a ser doloroso em mim também ter que colocar todo o meu punho dentro dela para puxar a outra perna da pequena Bia. Karen não grita, apesar de eu saber que naturalmente seria isso que ela faria, mas ela sabe que gritar vai fazer toda a força que ela está fazendo ser inútil, então ela está se contendo e fazendo tudo certinho, respirando quando cada contração chega ao fim.
Layla pede detalhes de tudo o que estou fazendo, vendo, e sentindo. Meu alívio surge um pouco quando encontro a outra perninha da Bia e a coloco para baixo, junto à outra. Paro apenas por dois segundos para tirar minha camisa e volto a fazer algo que nunca imaginei que faria de fato, um parto.
Kássia continua dirigindo apavorada e pedindo à irmã para que seja forte.
Karen continua fazendo força.
Eu continuo nervoso.
Os pés da Bia começam a sair. Com cautela, eu a puxo devagar quando a Karen faz uma nova força.
— Muito bem, Karen! — digo quando a bebê já está em minhas mãos.
Os sons da sirene da ambulância ficam audíveis, me deixando mais tranquilo, ou menos nervoso. Enrolo a bebê na camisa que tirei a pouco e a coloco em cima da barriga da Karen. Ela começa a massagear a filha a fim de fazê-la reagir, contudo, nós dois sabemos que devido à idade gestacional que ela nasceu, seus pulmões não estão desenvolvidos o suficiente para que ela respire sozinha. Enquanto ela faz isso, termino de tirar a placenta e, depois disso, sangue é tudo o que vejo. Kássia liga o pisca alerta para chamar a atenção do condutor da ambulância e rapidamente ele nos identifica.
— Ela não está respirando! — diz Karen em meio ao desespero. — Leva ela primeiro!!!
Aflito, pego a bebê sem reação alguma e abro a porta do carro, indo ao encontro da Layla.
— Você foi perfeito! — ela fala olhando fixamente nos meus olhos ao pegar Ana Beatriz dos meus braços. Apenas inspiro fundo com os nervos à flor da pele. Em seguida ela a leva às pressas para a ambulância.
Volto ao carro e ajudo a Karen a sair, já que a Kássia está em pânico vendo a irmã rodeada de sangue. Talvez ela precise de atendimento também para não ter um ataque cardíaco. Talvez nenhum de nós esteja em seu melhor momento de calmaria. Eu, por exemplo, só não perdi a cabeça porque minha vontade de ver mãe e filha bem é maior que qualquer outra coisa.
Mesmo estando exausta demais até para se manter de olhos abertos, Karen continua inquieta fazendo perguntas quase inaudíveis sobre o estado da filha. Me aproximo dela antes de colocarem a maca para dentro.
— Vai ficar tudo bem — falo torcendo para que eu esteja certo enquanto a Kássia se acomoda no veículo limpando as lágrimas vendo a bebê tão pequena recebendo atendimento. — Eu vou logo atrás da ambulância, tá bom?!
As luzes que alternam entre vermelho e azul iluminam seu rosto molhado pelas lágrimas e pelo suor de todo o esforço que ela fez até aqui. Karen assente sem força alguma para qualquer coisa além disso e em seguida é colocada para dentro do veículo. A sirene volta a tocar de forma ensurdecedora à medida em que deixa o local. Cada terminação nervosa minha ainda está em êxtase pelo que acabou de acontecer e só me faz torcer para que realmente dê tudo certo.
█▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀▀█
Olá, pessoas lindas e apavoradas! Tudo bem? Tô com sensação de que o capítulo ficou forte demias, sei lá... Tava escrito já há um bom tempo e quando reli fiquei um pouco assustada, mas... não apaguei nada não. Pesquisei bastante, mas mesmo assim usei bastante imaginação, ou seja, tem muitas coisas irreais aí. Espero que tenham conseguido "ver" a cena que tentei descrever com o máximo de detalhes necessários possíveis. Vamos continuar ansiosos até o próximo capítulo? Bora!
█▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄▄█
Capítulo publicado em 10/01/2020
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro