29
Entro no carro, respiro profundamente e penso dez vezes antes de olhar para a porta. Devagar, me viro na direção mais intimidadora e me deparo com ela fechada. Eu achei que ao sair da casa do Delegado Kepler, o Douglas desistiria dessa loucura e viria atrás de mim. Me contrariando e dilacerando meu peito em milhões de fragmentos, descubro que ele está irredutível.
— O que aconteceu lá, Karen?! — mamãe pergunta vendo meu desapontamento.
— Ele não quer largar essa maldita operação — falo.
Sinto o olhar da minha mãe ferir minha pele por causa da raiva que sente dele. Ela respira fundo e começa a tirar o cinto de segurança, mas eu a seguro a tempo.
— Não, mãe! — peço. — Mesmo contando que a Dona Ana está doente ele não cedeu. — ela se endireita no banco me olhando enquanto cobre a boca com a mão. Depois balança a cabeça em negação. É o que eu estaria fazendo se não estivesse me controlando para não desmoronar. — Ele... está cego, mãe. Mesmo odiando meu pai e não concordando com a atitude dele, numa coisa ele acertou. O Douglas não me ama de verdade. Não mais.
— Eu sinto muito, minha filha — diz ela.
Deixo essas serem as últimas palavras dessa conversa enquanto minha mãe dá partida no carro, contudo, não era o que eu gostaria de ouvir. Basicamente, ela aceitou minha afirmação como se concordasse com ela. Minha mãe concorda que o Douglas não me ama a ponto de deixar a polícia de uma vez. Penso se estava doendo menos quando eu ainda achava que ele estava morto e me condeno por tal pensamento. Se ele voltar como diz que vai, pelo menos Bia vai poder conhecer o pai e ouvir da boca dele o quanto ele foi um herói nos protegendo com o próprio corpo. Em contrapartida, também vai ter que explicar o quão covarde ele foi quando optou por continuar trabalhando para a polícia federal em vez de ficar conosco.
O sinal fecha e o carro para. Na calçada, uma mulher dá a mão à uma menina e começa a atravessar a rua. Isso me lembra que eu preciso me forçar a parar de sofrer por antecipação quando eu tenho coisas reais para pensar. Preciso sair daquele apartamento para não ver mais a cara do meu pai. Tenho que me instalar em algum lugar e começar a preparar o meu cantinho e o da minha filha, mas não sei por onde começar. Minhas economias foram direcionadas ao estúdio de balé da minha irmã uns meses atrás e foi um dinheiro bem utilizado. Só que agora estou sem nenhum tostão para recomeçar minha vida. Talvez eu precise voltar a trabalhar, porém, não vou conseguir vaga em nenhum hospital estando com seis meses de gestação. Eu poderia voltar para a clínica da minha mãe, mas meus motivos para não estar lá, são os mesmos de querer sair do apartamento dela.
Um flash da conversa que tive com o Douglas há poucos minutos me faz ter um sobressalto cardíaco. Ele quer que eu conte a verdade para Dona Ana. Sei que ela precisa saber, tanto quanto eu precisava. O problema é que eu temo que ela fique triste e desapontada com ele, tanto quanto eu estou. Ela vai odiar o meu pai, tanto quanto eu o odeio. E vai chorar muito, tanto quanto eu estou chorando agora.
O celular da minha mãe toca me trazendo de volta à realidade, que é tão dura quanto o meu devaneio. Ao contrário de mim, ela não se importa em atendê-lo enquanto volta a dirigir quando o sinal abre.
— Oi, Marcela. — a ligação é da clínica. É quase horário de almoço e acredito que a Marcela esteja precisando da ajuda da minha mãe para alguma coisa, já que ela está trabalhando sozinha agora. Minha mãe dividiu a equipe em duas, cada uma trabalhando em dias diferentes da outra. E hoje é dia da Paola estar lá. — Pra quê? Tudo bem. Eu vou aí.
Mamãe encerra a chamada e solta um suspiro furioso.
— Algum problema na clínica? — pergunto deixando de lado minhas preocupações por um momento.
— A Marcela disse que seu pai mandou me chamar, mas não sabe pra quê. Só disse que é importante — diz ela.
Respiro fundo enquanto um filme passa na minha cabeça. Nele, uma forte tensão toma conta do quarteirão onde a clínica fica situada. Há um grande problema em eu ir na Clínica com a minha mãe. Na verdade são dois problemas com nomes e sobrenomes: Olivier blanchard e Daniel Sanches. Eu não estou pronta para encarar nenhum dos dois. Só de pensar em ter que enfrentar a presença do meu pai ou ousar olhar na direção dos olhos azuis do Daniel, meu estômago se retorce e até chego a sentir um gosto amargo na boca. Por causa disso e por outras coisas também, decido fazer algo que venho adiando há alguns dias.
— Mãe, se importa de me deixar em um lugar antes? — pergunto já sabendo a resposta.
— Claro que não — diz ela. — Se eu pudesse, também iria para outro lugar, mas como eu sou a dona legal daquela clínica... Onde quer ir?
•°• ✾ •°•
Mesmo exausta e desejando estar em minha cama, sei que vir ao salão do Wesley foi o melhor a se fazer, porém, ver como está abarrotado de mulheres me deixa um pouco desconfortável. Sobre meu carro ter sido alvejado, ele e a Paola já sabem, mas sobre o Douglas, não. Eu queria desabafar com ele e contar tudo o que aconteceu hoje de manhã. Vou ter que prender minha inquietação até podermos sair para almoçar. Entretido em altas gargalhadas, ele não nota que entrei. Fico um tempo olhando o movimento de clientes e lembrando do dia em que saí daqui às pressas para ver um paciente, o Douglas. Quem diria que o destino nos juntaria trazendo tantos momentos bons e acabando comigo sendo abandonada por ele também?
— Agendou um horário, moça? — a recepcionista pergunta me puxando de volta para a realidade.
— Ah... Não — falo. — Vou esperar o Wes terminar de...
— MINHA BEST!!! — ele grita se voltando à mim. Deve ter captado minha voz dizendo seu nome. — Ô BIANCA! TERMINA ESSA PROGRESSIVA AQUI, AMOR!
A moça atrapalhada assume o manuseio do secador e da escova enquanto ele vem todo animado em minha direção.
— Não precisa parar o que está fazendo, Wes — brigo.
— Claro que preciso! — diz enquanto nos abraçamos. — Vou fechar o salão muito tarde e não ia dar tempo de ir te ver. Como você está depois daquilo?
Enquanto penso no que responder, ele joga meu cabelo para um lado e depois para o outro repetidas vezes. Depois amassa as pontas arrumando os cachos. Mania de cabeleireiro.
— Péssima — respondo evitando explicações.
— Estou vendo — diz ele arqueando as sobrancelhas. — Seu rosto lindo está todo vincado de tanto chorar.
Meu rosto lindo, penso. Ouvi algo sobre isso uns dias atrás.
— Será que você pode... — faço uma pausa diminuindo o tom e olhando para os lados. — Me atender agora?
— É claro, Karen! — Wes me puxa com delicadeza até uma cadeira e começa a separar um primer, uma base no meu tom de pele e alguns pincéis. — Vamos fazer uma make bem top pra disfarçar essa cara de enterro... — ele para em choque com suas próprias palavras e cobre a boca. — Desculpa, amiga!
— Tudo bem — falo dando a mínima. — Mas não vamos precisar disso agora — digo à medida em que pego os pincéis e todo o resto de sua mão.
— Quer fazer as unhas primeiro?! — questiona.
— Não. Vamos usar isso aqui antes — explico mostrando uma tesoura.
— Ok — Vamos tirar as pontinhas? Uns dois dedinhos? — indaga olhando as pontas ressecadas do meu cabelo.
Pego um catálogo de cortes e depois de virar três páginas, mostro o que eu quero para hoje.
— Esse! — exclamo determinada. — Do jeitinho que está na foto, Wes. Até a cor.
Wes desvia da foto em suas mãos para o meu rosto e do meu rosto para a foto, com os olhos a ponto de saltar da face.
— Tem certeza?! — indaga.
— Absoluta — refuto e ele assente com um fino sorriso.
O primeiro som da tesoura entrando em ação faz um arrepio correr pela minha espinha. Wes deve imaginar que algo sério aconteceu para que eu tomasse a decisão de cortar os cabelos de forma tão radical. Ou talvez pense que ainda se trata do luto pelo Douglas. O fato é que ele não está me fazendo perguntas, apenas o que tem que ser feito.
— Acho que você vai dar um destino especial para isso — ele diz me entregando um maço grosso de cabelo preso em um rabo de cavalo por um elástico.
Lágrimas brotam em meus olhos quando entendo a quê ele se refere. A Paola deve ter contado sobre a minha visita ao INCA e ele sabe quanta alegria pode-se causar em uma criança sem cabelos por conta do tratamento contra o câncer. Acaricio os cachos imaginando-os na cabecinha de alguma menina, sorrindo e feliz com o presente.
É a primeira vez que mudo o visual de forma tão radical e impulsiva. O Douglas voltando ou não, se arrependendo ou não, esse é o meu jeito de enterrá-lo no passado, ou minha maneira de renascer. Teve vários momentos em que eu quase morri, mas devo dizer que além de não ter sido morta nessas ocasiões, elas estão me tornando mais forte.
Tufos de cabelos vão forrando o assoalho do salão e minha ansiedade para encarar meu novo reflexo vai aumentando, mas quando penso que vou poder ver o resultado da minha atitude, o Wes vira a cadeira para si. Com os pincéis e a maquiagem novamente em seu poder, ele continua fazendo o que seu instinto manda. Sem nem perguntar como quero, ele apenas pincela e contorna meu rosto com precisão e habilidade. Não vou apenas olhar meu novo visual, vou conhecer uma nova versão minha. Uma mulher que morreu a morte de alguém como se fosse sua, e que renasce forte para seguir em frente e ver outra vida, mais importante que a sua própria, nascer.
— Wes, falta muito? — questiono ansiosa enquanto ele modela os fios com as mãos.
— Espera só um minuto. Vou tirar uma foto primeiro — pede já tirando o celular do bolso.
— Não, Wes! — falo. — Eu nem vi ainda...
— Mas tá linda nesse ângulo e eu vou tirar sim!
Acabo não conseguindo ficar séria e mesmo não olhando diretamente para a câmera, esboço um sorriso tímido.
De fato, é algo que eu não faria comumente. Meu reflexo no espelho não mostra mais aquela Karen triste e frágil de minutos atrás. Embora eu ainda consiga esconder parte do rosto com os cabelos, o corte valorizou os traços do meu rosto. É claro que essa é apenas uma forma simbólica de mostrar que sou uma nova pessoa agora. Essa minha nova versão nasceu no momento em que descobri que o Douglas me trocou por uma obsessão. Mas ele não deve imaginar que eu posso ser tão irredutível quanto ele.
— Você fez um belo trabalho, Wes... — digo maravilhada olhando para ele pelo reflexo no espelho.
— Não, seus pais que fizeram um ótimo trabalho — responde ele ameaçando rir da própria piada. — Sua mãe é linda, Karen, mas seu pai tem uma genética francesa que...
— Ah... — bufo. — Nem me fala do meu pai...
— Hum... Então isso tudo tem a ver com o Olivier?! Me conta tudo!
— Te conto durante o almoço — tento negociar no instante em que meu estômago reclama.
— Então vamos! Abriu um novo restaurante aqui perto que tem uma comida maravilhosa! — fala enquanto estende a mão para me ajudar a levantar.
— Vamos, mas podemos levar a comida para sua casa e chamar a Paola? O assunto é muito delicado.
Wesley me olha de lado, mas não com indignação, e sim com preocupação.
— Claro, do jeito que você quiser. Vou mandar mensagem pra ela pedindo pra almoçar em casa. Hoje você tá mandando em tudo, poderosa!
•°• ✾ •°•
Quando eu disse ao Wes que o assunto era delicado, ele entendeu. Mais uma vez não fez perguntas enquanto estávamos nos servindo e nem dentro de seu carro no caminho para cá. Na verdade, até procurei falar de outras coisas para quebrar a tensão, como o relacionamento dele com o tatuador de São Paulo, o mesmo que colocou meu piercing. Wes disse que não estava dando certo, pois a distância atrapalha um pouco. Sem contar com a falta de tempo dos dois. Mas me enganei quando pensei que tivessem acabado mal. Na verdade, eles se vêem quando dá e aproveitam muito bem esse tempo, só não tem compromisso sério.
Paola chegou quase no mesmo instante que a gente e tão preocupada como o irmão ficou quando disse que o assunto era complicado. Enquanto nos abraçávamos e depois da surpresa com meu novo visual, ela me perguntou se o assunto se tratava da Bia. Agradeci a Deus em pensamento por não ser. Essa parte da maternidade eu já aprendi. Não importa o quão ruim uma situação seja, nós mães, vamos sempre preferir que seja contra nós a prejudicar nosso filho. Sempre.
— Prontinho, minha chanelzinha linda — brinca enquanto abrimos as embalagens de comida sentados à mesa.
— Antes de mais nada, vocês precisam prometer que não vão contar isso à ninguém — falo.
— Karen — diz Paola arqueando uma sobrancelha —, desde quando precisa nos pedir segredo? Tudo entre nós, fica entre nós.
Respiro fundo sabendo que é verdade. Nós três nunca nos desentendemos e nunca houve fofoca da parte de nenhum de nós. Altero olhares entre os dois e analiso se contar que o Douglas está vivo é realmente a coisa certa. Há várias coisas que precisam ser pensadas e repensadas antes de jogar essa bomba na mesa. Uma delas é se eles podem correr algum tipo de perigo. Logo a resposta para isso é não. Não vai fazer diferença desde que não contém à ninguém. E isso eles não vão fazer mesmo. A segunda coisa, é se há necessidade deles saberem. E a resposta também é não. Na vida deles dois, nada vai ser mudado se souberem a verdade. Então penso, por que eles deveriam saber? Eles deveriam saber porque quando eu escondi deles que o Ygor era o Alejandro, eu não tinha de quem receber conselhos, não tinha com quem conversar sobre algo que me consumia minuto a minuto. Não quero passar por isso de novo. É um segredo absurdo demais para eu guardar sem poder falar de vez em quando sem que isso demande uma reposta. Às vezes apenas falar de um determinado problema já faz com que a gente se sinta melhor, mesmo que a pessoa que nos ouve fique em silêncio absoluto. E é isso que eu vou fazer.
— O Douglas está vivo — revelo.
Paola franze o cenho como se eu tivesse falado que dois mais dois são cinco, e Wesley assente de forma indecifrável.
— Ah, sim — diz Wes. — O Douglas está vivo. A gente suspeitou disso, né, Paola?! — pergunta cutucando a irmã, que continua de cenho franzido. — Mas me diz uma coisa, Karen. Você parou de ir à terapia?
Reviro os olhos sentindo repulsa por ele achar que enlouqueci, mas minutos depois, me dou conta de que no lugar dele, eu pensaria a mesma coisa. Então, resolvo recomeçar de forma diferente.
— Ontem à noite, um grupo de policiais encapuzados enfrentou os bandidos que estavam atirando no meu carro — inicio. — Depois que o tiroteio acabou, um deles tirou o capuz. E era o Douglas.
— E o que aconteceu depois? — Paola inquire intrigada.
— Eu desmaiei — admito a contragosto. Eles se entreolham e voltam a me encarar remexendo a comida nos pratos. — Mas hoje de manhã eu e minha mãe fomos até a superintendência da polícia federal e conseguimos fazer o Delegado Kepler nos levar até o Douglas.
Daí em diante eles parecem mais interessados. Talvez pelo fato de envolver mais uma pessoa e não se tratar mais de algo que se assemelhe à loucura. Tenho testemunhas que podem assegurar a veracidade das minhas declarações, o que não é necessário, pois em nenhum momento eu vacilo e nem entro em contradições. Mesmo sendo uma história absurda, nós três terminamos nossas refeições num clima estranho, de indignação.
— Seu pai passou dos limites — diz Wesley com os olhos molhados por lágrimas.
— O Douglas também — diz Paola. — Todo mundo chorou e viu como voce ficou abalada... Entrou em depressão profunda e quase se matou! — engulo em seco.
— Mas ele disse que combinou com o Olivier para que ele levasse a Karen e a Dona Ana em um local para se encontrarem... — Wesley contra argumenta.
— Ele não deveria aceitar essa proposta ridícula e passar... Sei lá... Nem ele mesmo sabe quanto tempo isso vai levar. — exclama Paola e eu assinto levemente. — A Dona Ana pode morrer antes dele voltar e talvez quando a Bia nascer, nem vai ter o pai por perto.
Isso é o suficiente para calar nós três. Começo a recolher as embalagens vazias da mesa para evitar que a nova Karen tenha hábitos da velha Karen. A nova Karen não cai no choro lamentando um abandono. A nova Karen pensa em estratégias para contornar os problemas, como a água contorna as pedras.
— Mesmo sem saber de nada, a Dona Ana me deu conselhos valiosos — digo para os dois enquanto coloco as embalagens na mesma sacola em que vieram. — Eu posso ser suficiente para a Bia, e se aparecer outra pessoa na minha vida, não uma pessoa qualquer, mas uma pessoa boa e que esteja sempre presente, vou deixar que lhe sirva de pai.
Os dois me olham e assentem, concordando com minhas palavras. Tudo bem que essa é só a teoria e que a prática vai ser bem mais difícil que pronunciar uma frase de efeito para dois amigos, mas o que vai determinar o sucesso do que eu acabei de prometer disfarçadamente, é o meu esforço e minha fé.
Meu celular toca desviando a atenção na cozinha. Tiro o aparelho do bolso e vejo que a ligação é da minha mãe.
— Oi, mãe — atendo.
— Karen, eu acho melhor você vir aqui, preciso da sua ajuda — ela diz e no mesmo minuto, meu coração dispara.
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Olá, meus amores. Perdoem-ne pelos possíveis erros no capítulo, eu não tive muito tempo durante essa semana para revisar e menos ainda para escrever.
Beijos e até o próximo capítulo!
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