16
É como um recomeço. Mais um dos meus recomeços. A verdade é que todos os dias alguma coisa termina e outra começa. Eu nunca parei para dar atenção, mas é assim que as coisas são. Hoje enquanto vinha do hospital, por exemplo, senti vontade de terminar minha estadia no apartamento dos meus pais, mas infelizmente, não consegui criar coragem suficiente para me imaginar na casa do Douglas sozinha, com medo de que alguém possa ir até lá atrás de mim. Assim como também não me imagino morando na minha casa, cenário onde a maior tragédia da minha vida aconteceu. Em algum momento terei que ir contra os meus medos, porque ainda sinto que estou sendo um peso na vida dos meus pais. É uma sensação estranha não conseguir determinar o lugar onde vou passar o resto da minha vida com a minha filha.
É difícil não notar ou ignorar o jeito como meus pais me olham. Parecem mais preocupados que o normal, o tempo todo perguntando se preciso de alguma coisa, se quero conversar ou mesmo comer algo diferente. Quando chegamos no apartamento deles, fui surpreendida por uma mesa de café da manhã farta e bem colorida. Eu me senti muito querida e especial, mas confesso que não queria que eles estivessem tão apreensivos assim. Estou tentando sorrir mais, falar sobre coisas aleatórias como se fossem interessantes para que eles não se sintam mal, pois sei que eles devem estar pensando que falharam comigo em alguma coisa, e isso não é verdade.
Eu queria poder desfazer a noite de sexta-feira, mas por mais que tenha sido horrível, eu aprendi muito com esse erro. Percebo isso quando recebo a primeira visita desde o instante em que cheguei. Meu pai abre a porta com um semblante que evidencia seu apreço pela pessoa que ele viu através do olho mágico. Dona Ana entra e eu imediatamente sinto uma carga de emoção forte correr nas minhas veias. Me levanto da cadeira onde estava sentada, terminando de tomar um copo generoso de suco de abacaxi. Nos abraçamos por alguns segundos, e isso é o suficiente para que eu volte a me envergonhar da minha atitude, pois estou sendo abraçada pela mulher que perdeu uma filha vítima de latrocínio, o marido que cometeu suicídio, e seu outro filho, que morreu há vinte dias enquanto usava o próprio corpo para proteger à mim e à nossa filha. Essa mulher sofreu muito durante sua vida e ainda está de pé. Isso faz eu querer diminuir até que ninguém me enxergue.
— Eu preferi esperar você chegar aqui para te ver — ela diz ao me soltar e olhar em meus olhos. Eu mal consigo encará-la.
— Aceita tomar um cafezinho com a gente, Dona Ana? — mamãe pergunta.
— Não, querida — ela responde. — Vou conversar um pouco com a Karen primeiro. Obrigada — agradece sorrindo enquanto percebo minha mãe se levantando.
— Tudo bem — diz mamãe devolvendo um sorriso que parece ensaiado. — Nós vamos deixá-las à sós. Fique à vontade, Dona Ana.
Fico um pouco receosa e aflita. Parece que minha mãe pediu à minha sogra para conversar comigo. Será que eu a feri tanto ao ponto dela achar que não tem mais liberdade de me fazer perguntas?
— A senhora já viu a vista da sacada? — indago me obrigando a sorrir e disfarçar meu constrangimento. Eu só conversei abertamente sobre o que eu fiz com o Daniel. Eu sempre soube que, para ele, eu poderia falar qualquer coisa sem ser julgada.
— Ainda não — ela responde. — Mas adoraria ver.
Aproveito a oportunidade para levá-la até onde eu tenho inúmeros lugares para desviar o olhar enquanto ela provavelmente vai falar que eu preciso ser forte, e que Jesus abomina o suicídio. Quero apenas conseguir expressar que eu jamais farei isso novamente.
Nos sentamos nas cadeiras com uma pequena mesa de vidro nos separando.
— Nossa! — ela exclama ao olhar a praia de Ipanema. — É linda essa vista!
— Eu sempre gostei de olhar o mar, Dona Ana — falo focando o horizonte nublado. — As ondas quebrando, as palmeiras balançando com o vento... Eu reflito muito quando observo essa paisagem.
Uma quietude se coloca entre nós enquanto a brisa fresca toca nossos rostos. Eu continuo apreensiva, mas tento não demonstrar isso. Pequenos movimentos dentro do meu ventre me fazem suspirar e me ajudam a dar razão à minha vida nesse breve momento de angústia.
— Sua mãe me ligou na sexta-feira à noite chorando muito — ela conta.
Tudo bem que era uma situação extremamente desesperadora, mas ligar para a minha sogra foi um ato insensível. Ela está tentando superar a morte do filho e minha mãe a deixou ainda mais aflita.
— Nossa... Isso deve ter sido... — ela entrecorta minhas palavras apenas com um gesto negativo com a cabeça e um semblante expressando que aquilo não foi nada. Emudeço.
— Eu estava reunida com o grupo de oração da igreja. Alguns minutos antes dela me ligar, senti uma pontada no coração... — ela põe a mão direita sobre o peito e fecha os olhos, como se estivesse voltando àquele momento. — A mesma pontada que senti antes de receber a notícia de que a Daiana tinha sido morta, e quando o Douglas... — suas palavras cessam com um suspiro abafado, inibindo a lembrança da morte do Douglas. Já ouvi muitas histórias sobre mães que sentem que algo está acontecendo com um filho, mas por que ela sentiria isso relacionado à mim? — Eu já estava pedindo a Deus que te protegesse antes mesmo de sua mãe me ligar.
— Obrigada — falo um pouco perdida sobre o que dizer realmente. — Eu acho que... acho que minha mãe vê a senhora como um exemplo de força. E eu também, Dona Ana.
— Eu nem sempre fui forte assim, querida — ela diz encarando o chão.
— Eu imagino. A vida nos obriga a aprender.
— A vida não nos obriga à nada, filha. Temos nossas escolhas nas palmas das mãos, assim como eu já tive a arma do meu esposo nas minhas. — sua declaração faz meu coração sobressaltar no peito e meus olhos, que antes, encaravam uma revoada de pássaros voando no céu, agora buscam os olhos dela. — Eu nunca contei isso à ninguém, pois não é uma coisa da qual me orgulho. Logo depois das desgraças que nos aconteceram, O Douglas e eu passávamos vários dias sem falar quase palavra alguma dentro de casa. Nós dois estávamos tentando lidar com a saudade da Daiana e do pai dele, cada um de um jeito, mas estava ficando cada vez mais difícil. Ele chorava no canto dele, eu no meu, ou às vezes chorávamos juntos, até ele pegar no sono na minha cama.
— Ele também nunca me falou nada sobre isso... — falo.
— É porque ele era muito fechado; e também por não saber do que vou te contar — diz suspirando fundo. — Eu não conseguiria deixar meu filho sofrer pelo suicídio da mãe também, então... — ela faz uma pausa exatamente como o Douglas fazia quando ia falar algo doloroso demais. — Havia duas balas no tambor. Era tudo o que eu precisava, filha, acabar com o meu sofrimento e o dele. — uma lágrima desce pelo meu rosto. — Eu fiquei a madrugada toda tentando criar coragem de ver a única coisa importante que me restou morrer antes de mim, mas não foi isso que me fez mudar de ideia. Foi o pouco de vontade de ver o que Deus ainda tinha reservado para nós, e mesmo que isso não tenha acabado muito diferente, eu não me arrependo. Continuou sendo difícil por um tempo, mas com o decorrer dos dias, novas coisas foram acontecendo desviando nossa atenção do que nos fazia sofrer. Passamos a ir ao psicólogo e isso o ajudou a melhorar na escola, só tirava notas altas — ela fala entre sorrisos e lágrimas. — Aprendeu a tocar violão na igreja e pegou gosto. Só não virou um artista porque já tinha colocado na cabeça que seria policial, e se destacou também na Polícia Federal, participando de várias operações, às quais ele se referia como uma medida para evitar que outras "Daianas" tivessem o mesmo fim que a nossa. Ele brilhou, filha. Brilhou de um jeito que eu quase impedi que brilhasse.
Não consigo esconder o quanto isso me comove. Eu choro e ela também. É uma lástima mesmo eu não poder mais ver o brilho que o Douglas espalhava pelo mundo.
Eu me equivoquei muito sobre a razão que trouxe a Dona Ana até aqui. Independente de ser ou não um pedido da minha mãe, a história de vida da minha sogra se cruza com a minha de diversos pontos de vista. Jamais imaginei que ela tivesse passado por um momento como esse que ela acabou de me contar. Ela esteve entre duas escolhas e uma delas iria tirar a vida do Douglas enquanto ele ainda era só uma criança. A dor e a tristeza nos colocam à prova em diversos momentos da nossa vida.
— Eu ia dizer que não consigo imaginar a dor que a senhora sentiu quando tudo aconteceu.
— Mas você consegue. — assinto com um gesto positivo. — Eu agradeci e agradeço muito a Deus pelo Dr. Daniel ter conseguido chegar aqui a tempo, porque eu sei que não era isso que você queria.
— Não — falo concordando. — Dona Ana — falo e pego em sua mão —, obrigada por me contar isso. Eu acho que agora estou sentindo mais vontade de ver o que Deus tem reservado para nós.
— Que bom, querida. Eu queria te dizer que você pode contar comigo para tudo, mas se eu lhe dissesse apenas isso, soaria muito fútil. Todo mundo diz essas palavras quando não sabe o que dizer. Eu quero que você veja em mim, alguém que já vestiu a pele que está usando hoje e sabe a dor que está sentindo. — balanço a cabeça positivamente à medida que minhas lágrimas escorrem pelo meu rosto. — Muitos vão chegar para você e dizer que entendem o que está passando, mas não sabem de nada, Karen. Então não hesite quando quiser conversar com alguém. Me ligue, me chame... Não se deixe enganar com o fato de que isso irá me trazer dores do passado. Eu sentiria dor se não pudesse te passar alguma experiência de vida.
Suas últimas palavras me fazem notar que realmente existe alguém que me entende. Isso não é uma justificativa para o erro que cometi, mas me prova que não sou a única pessoa que se sente submersa em dor.
Alguns minutos de silêncio enquanto o vento beija nossas lágrimas, são suficientes para levar um pouco do peso que eu carrego.
— A senhora mencionou que foi ao psicólogo — falo lembrando.
— Fui não, ainda vou. — sua resposta me atinge como uma facada, mas seu semblante não faz soar como algo negativo. — Você pretende ir?
— Eu não sei... Meu pai me sugeriu isso, mas não sei se estou pronta para falar sobre tudo o que aconteceu no último mês.
— Seu pai é médico de cabeça. Esse é o jeito dele de te proteger, é compreensível — ela fala. — Além do mais, eu também não consegui falar nada nas primeiras sessões, apenas chorava. Não precisa falar nada sobre isso, você pode falar de qualquer coisa.
— Eu não tinha pensado por esse lado. Se eu for, estarei deixando ele mais tranquilo — afirmo.
— Isso, querida.
Desta vez não forço, sorrio com esperança de dias melhores, com a certeza de que, mesmo que eu não possa apagar o que eu fiz, posso pelo menos amenizar o impacto em cada um.
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