14
Existem momentos em nossas vidas que parecem que vão ser os últimos. Não só parecem, mas pedem por isso. Nosso corpo e nossa alma, parecem não ter espaço para acomodar mais um momento ruim. Eu passei por um momento desses. Foi ontem à noite quando vi todas aquelas barbaridades sendo exibidas na TV. Eu não deveria ter assumido a clínica ou lugar da minha mãe lá. As consequências das minhas péssimas escolhas mancharam o patrimônio construído e cultivado desde antes da minha existência. Eu destruí o legado médico deles e transformei a conquista de tantos anos em um fracasso total. Me senti um lixo, sozinha, um peso. Um estorvo até para mim mesma e isso se uniu a todo o resto. À culpa, à tristeza, à saudade insaciável do Douglas. Me senti sufocada, submersa em lembranças de momentos que jamais voltarão.
Em meio a tudo isso, todos estavam esperando que eu seguisse em frente. Mas como? Sempre que estava sozinha, uma melodia triste tocava no fundo da minha alma e uma dança imaginária se iniciava. Eu dava um passo para frente e minhas lembranças me faziam dar dois para trás. Metade de mim parou no caminho e me senti dividida entre insistir e desistir. Então, olhei para a pedra solitária em meu dedo e me lembrei que em alguns meses, Douglas e eu teríamos nos casado. Teríamos trocado nossos votos e jurado nos amar até que a morte nos separasse. Teria sido um juramento em vão, pois a morte nos separou e eu continuo amando-o.
Nos breves momentos em que eu conseguia dormir, tinha flashes do sorriso dele e eles iluminavam as minhas noites. Vê-lo em meus sonhos era o que alimentava minha vontade de fechar os olhos e encontrá-lo do outro lado.
Mas e se não houver outro lado? — pensei por um instante, mas eu já havia tomado alguns comprimidos. Eu poderia ter parado, tentado regorgitar, mas algo me impulsionou; a possibilidade, o talvez. Eu revivi toda a minha vida em cinco minutos. Ri de todas as coisas engraçadas que já me aconteceram e chorei por tudo o que a vida me tirou, que o Alejandro me tirou. Eu decidi não viver mais, mas ainda existo.
Faz algumas horas que o Daniel foi embora. Daquele momento até agora, eu fiquei me colocando no lugar dos meus pais quando receberam a notícia de como fui encontrada no apartamento deles. Isso foi cruel demais. São cerca de sete da manhã e imagino que eles mal dormiram durante essa noite.
— Karen — meu pai começa a falar atraindo os olhares da minha mãe e dos meus amigos —, talvez não seja o melhor momento para falar sobre isso, mas acho que a amiga de um amigo pode te ajudar nesse momento.
— Ah, não, pai — digo sem paciência.
— Olivier — mamãe intervém —, depois vocês conversam sobre isso.
— Tudo bem, mas acho que você vai gostar. O nome dela é Juliana Godoy e...
— Pai, acho que você e a mamãe também precisam descansar — falo ignorando sua sugestão de ir até essa "amiga de um amigo", psicóloga, acredito eu. Ele respira fundo esfregando as palmas das mãos na calça jeans. Mamãe parece intrigada com o que acabei de dizer.
— Podem ir — falo tentando passar firmeza, mas sou tomada por um flashe. Essa foi a última coisa que eu disse a eles ontem à noite antes de quase ter tirado minha vida.
— Nós podemos ficar aqui com ela, Dona Heloísa — diz Wesley.
— Podemos levá-la também quando derem alta — Paola fala quando vê que eles estão apreensivos.
Mamãe finalmente se levanta da cadeira calmamente e caminha em silêncio até mim. Ela alcança meus olhos com os seus em uma distância milimétrica e pega em minha mão.
— Karen — ela diz com os olhos cheios —, você e a Kássia são as coisas mais preciosas que seu pai e eu temos. A clínica não é nada. Nada.
— Mãe... — tento pará-la antes que eu perca o controle das minhas lágrimas, mas acho que acabo de perder.
— É verdade! — ela diz dando a mínima para a minha tentativa. — Nada disso é culpa sua. Você é a vítima no meio de toda essa desordem. — ela faz uma pausa enquanto busca palavras para continuar. — Foi uma fatalidade a forma como isso terminou, mas... mas eu estou aqui para te ajudar a passar por isso. Nós estamos — ela diz olhando ao redor à medida em que a Paola afasta uma lágrima em seu rosto e confirma com um gesto positivo.
— Sua mãe tem razão, filha — meu pai fala me surpreendendo enquanto diminui a distância entre nós. — Eu sei que eu fiz parecer que a clínica estava acima de qualquer coisa pela forma como... como eu te forcei a dar aquela entrevista, mas ela não vale a sua vida. — ele faz uma pausa recuperando o fôlego e eu não consigo dizer nada e nem tentar justificar minha atitude. Acho que eu não saberia dizer que não quero mais viver, sendo que eles me deram a vida. — Eu agi errado... — ele diz gesticulando e deixando claro para mim que não sabe mais o que dizer. — Fui inconsequente e...
— É uma menina — conto, mudando o curso da conversa.
Eu os pego de surpresa e todas as expressões mudam ao mesmo tempo. Mamãe deixa o queixo cair levemente enquanto uma lágrima cai seguindo o caminho deixado pela última. Meu pai franze o cenho e sorri.
— Como você sabe?! — Paola pergunta.
— O Daniel me contou. Ele avisou aos médicos que eu estava grávida e ficou comigo durante os primeiros exames. Disse que ela estava com as pernas abertas — explico e todos começam a rir, inclusive eu.
— Ele estragou o chá revelação! — Wesley fala indignado e leva um cutucão da Paola. — Mas tudo bem, o chá ainda vai acontecer, só não vai ter revelação mais...
Estava sendo uma tortura encarar os meus pais e os meus amigos enquanto todos demonstravam o quanto me amam e estão me apoiando. Isso me faz sentir vergonha da minha atitude, tanto por mim, quanto pela vida da minha filha. Esse breve momento de descontração, deve ter deixado meus pais mais tranquilos, pois decidiram ir descansar um pouco. Por um lado, isso é estranho. Sei que a Paola e o Wes me amam muito, mas estão aqui para se certificarem de que eu estou mesmo bem e que não farei mais nenhuma loucura. Isso faz eu parecer instável e sem condições de guiar minha própria vida, ou até mesmo de ficar sozinha. Mas esse é o preço que preciso pagar pelo que eu fiz.
•°• ✾ •°•
Desperto com toque do celular da Paola. Minhas pálpebras pesadas me permitem enxergar bem pouco, só noto a silhueta dela saindo do quarto apressada com o aparelho na mão. Está escuro, tanto no quarto quanto lá fora. Quanto tempo será que vou ficar neste hospital?
— Você vai ficar em observação até amanhã de manhã. — a voz do Wesley preenche o quarto escuro, me deixando notar que pensei alto. — Estão te dando um medicamento para retardar o efeito do remédio que você tomou e querem acompanhar a reação do seu organismo — diz ele.
Só de imaginar que a essa hora eu ainda poderia estar viva, mas minha filha morta, fico com um peso na consciência. De fato, nenhuma decisão tomada no calor da emoção ou da dor, pode trazer algum resultado bom. Viver e descobrir que perdi meu bebê seria um modo terrível de morrer.
Paola retorna ao quarto e estende o celular para mim.
— É a Kássia — diz ela.
Pego o aparelho de sua mão com os batimentos cardíacos um tanto apressados. Tenho que lidar com isso. Eu causei isso. Enquanto coloco o celular no ouvido, vejo a Paola e o Wesley saindo do quarto, dando privacidade, mas ficando ao alcance da minha vista.
— Oi — falo envergonhada.
— Oi, guria — ela responde, me chamando como nossa avó nos chamava quando éramos crianças. — Lembra daquelas férias que passamos no sítio do vovô?
— Qual delas? Passamos muitas férias lá...
— Aquela em que você não desgrudava da bola...
Pequenas lembranças daquelas férias emergem na minha memória me preenchendo com algo bom. Eu tinha seis anos. Havia ganhado aquela bola em uma brincadeira da escola na festa de encerramento das aulas, no mesmo dia em que viajamos para ver nossos avós. Fiz ela de travesseiro logo na primeira noite e acordei desesperada quando não a vi perto de mim, achando que alguém a tivesse roubado. Fiz birra durante longos minutos acusando Deus e o mundo de roubo, mas ela tinha apenas caído e rolado para debaixo da cama em que a Kássia estava dormindo. Em tudo que íamos fazer, a bola ia junto. Eu fazia uma pesca no lago virar futebol.
— Lembro — respondo com as cenas frescas na memória. — Foram as melhores férias de toda a nossa infância.
— É verdade... — ela fala com um sorriso perceptível na voz. — Tirando as broncas da vovó, foram mesmo.
— Broncas?! — pergunto confusa.
— "Larga essa bola, guria! Você é menina, vai brincar de boneca!" — diz minha irmã imitando a voz da nossa avó e me causando umas risadas quando as lembranças quase esquecidas surgem na minha mente.
— Eu me fazia de surda e ficava falando "o quê? oi?" — digo me rendendo à graça daquela situação.
— Pois é, Karen — diz ela deixando de lado o tom engraçado da conversa. — Está se tornando real. Mamãe me contou que é uma menina. Em breve você vai ter uma bonequinha para pegar no colo. — sorrio incerta do que sorrir significa no momento em que estou agora.
— É... Quem diria? — falo.
— Eu não sou mãe e sei pouco sobre a maternidade, mas muitas mães de alunas do estúdio desabafam no meu escritório. Falam que precisam abrir mão de muitas coisas por causa dos filhos.
— Quer me desanimar, Kássia?! — pergunto fazendo piada da situação e tornando isso menos tenso para mim.
— Não... Desculpa. — ela sorri também. — O que quero dizer, é que você também vai passar por isso, mas por um bem maior, sabe? — sua fala soa um pouco confusa, como se tivesse medo de dizer algo errado. — Você vai ter que soltar o estetoscópio e o bisturi por um tempo... — ela suspira e um silêncio fica na linha.
— Eu sei — falo tão confusa quanto ela.
— Karen, tenho medo de que você continue segurando essa culpa por todos os lugares que for. Ela vai te consuimir e você não vai poder segurar sua filha nos braços se não soltá-la agora. Deixe essa culpa ir embora, ela não é sua.
Deixo o ar sair dos meus pulmões como se com ele, saísse tudo o que me assombra, mas ao inspirar de novo, essas assombrassões voltam. Algo nas palavras da minha irmã se encaixa na minha mente me fazendo ver que eu mesma me acusei, me senteciei e deixei que isso se espalhasse, se enraizasse em mim. Minha mãe disse que eu sou uma vítima nessa história, mas é difícil lembrar que mesmo não sendo a culpada eu poderia ter evitado que muitas coisas acontecessem.
— É tão difícil, Kássia...
— Eu não vou dizer que eu sei, porque eu não sei. Não imagino nem um terço do que você está passando. Só sei que você não está e nem nunca vai estar sozinha — ela diz com a voz vacilante. — Eu queria estar aí agora ou ir o quanto antes, mas teve um curtocircuito no estúdio ontem à noite e preciso resolver isso logo.
— Não precisa vir, Kássia — falo com uma pontada de incômodo por estar causando tanto alarde. — Eu não vou fazer nenhuma loucura, aprendi a lição.
— Eu quero ir, precisamos mudar a decoração do seu quarto... Você vai continuar morando com nossos pais, não vai?! — ela indaga.
— Não sei... Não pensei nisso ainda — falo desconexa.
— Então pense nisso, mas agora descanse um pouco ou coma alguma coisa para deixar nossa guria bem fortinha.
— Tá bom, guria — falo concordando.
— Eu te amo, irmã — ela diz me trazendo minhas emoções à superfície novamente.
— Eu também — respondo e encerro a chamada.
Chamo a Paola e o Wes e os dois voltam para o quarto. Estamos passando o resto das horas juntos até minha mãe voltar para eles irem descansar. Não sabíamos que isso demoraria tanto.
Uma pequena chama começa a arder em mim, como uma espécie de ânimo. Mesmo eu tendo tomado uma decisão drástica, não era cem por cento de vontade de não existir mais. Tem uma cratera no meu peito que dói vinte e quatro horas por dia. Horas mais, horas menos. Era essa dor que eu queria matar.
Às vezes o vento traz nuvens negras e ele mesmo as leva embora, sem que haja uma tempestade. Eu vi todos os clarões e ouvi todos os trovões. Quase pude sentir os pingos de chuva tocarem minha pele, mas isso não aconteceu. Por alguma razão não aconteceu, e eu estou aliviada por isso.
Talvez a notícia que o Daniel me deu, tenha mudado algo em mim e em todos à minha volta. Antes de hoje, eu imaginava as coisas de forma muito limitada, como se demarcassem uma linha reta até um precipício. É uma menina, como o Douglas havia mencionado o desejo. Pode ser que ela pareça com a Daiana, a irmã dele, ou pode ser que pareça com ele, ou comigo, ou uma mistura perfeita. Pele morena com meus olhos claros, lábios bem desenhados como os do pai e meus cabelos cacheados. Eu não estava conseguindo imaginar o futuro como ele poderia ser, só como eu temia que fosse. Nosso medo pode ser tão grande que chega a nos cegar, nos impossibilitando de ver as cores, pelo único fato de termos medo de que tudo seja um filme em preto e branco. Eu preciso das cores. Eu quero as cores.
"Não cause mais incêndios. Nunca mais."
Dizer ao Daniel que eu não causarei mais incêndios, foi o mesmo que dizer que eu não vou me entupir de sedativos novamente, ou fazer qualquer outra coisa contra minha vida, ou da minha filha. Há infinitas possibilidades de contornar essas coisas ruins e deixar que o tempo as leve para um lugar inacessível. Quanto à perda do Douglas, ele me deixou um aviso: A gente não supera a dor da perda, mas aprende a conviver com ela.
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