11
Minha irmã voltou para São Paulo ontem à noite para resolver algumas coisas do estúdio de ballet e deve voltar logo. Tentei dizer que não precisava, mas ela quer voltar. A Kássia é muito transparente e verdadeira. Se ela se sentisse obrigada a ficar, eu perceberia, então não debati.
Daqui do alto de um prédio, sinto que estou ilhada. Não tive vontade de olhar o mundo à minha volta, até agora. É isso que eu vou fazer pela primeira vez desde que vim para o apartamento dos meus pais, olhar o mundo do topo da minha ilha. Me esgueiro para fora do sofá onde estava deitada e caminho até o grande espelho horizontal na parede da sala. Na estante, o relógio marca 17h35. Ajeito o cabelo com as mãos, jogando-os sobre parte do rosto, temo que possa haver alguém observando. Deslizo a porta de vidro com cuidado e solto um suspiro ao sentir o vento fresco tocar meu rosto de forma inesperada. Fico alguns segundos olhando o horizonte antes de sair para a sacada. O mar parece estar calmo ao olhar de longe. O tom azul marinho ficando mais verde ao chegar à praia, me tranquilizam por alguns instantes. Me debruço no parapeito e continuo admirando a paisagem, com o Pão de Açúcar à minha direita. Há muitos banhistas na praia e muitas pessoas caminhando na rua. Eu não sei mais se terei essa liberdade. Não o direito de ir e vir, mas de se sentir segura em sair sem ser surpreendida por alguém mal intencionado. Essa sensação faz meus olhos transbordarem e meu peito chega a me machucar por dentro com cada batida violenta. Me sinto sobrecarregada, é tudo pesado demais para que eu segure. Todos os meus medos, a saudade que eu sinto do Douglas, e a responsabilidade de ser a mãe desse bebê que um dia vai me perguntar o que aconteceu com seu pai, querendo saber o motivo dele não estar aqui. Eu terei que mentir, ou não seria duro demais falar que ele morreu por minha culpa?
Volto para dentro e deslizo a porta de vidro para fechá-la. Deito novamente no sofá onde passei parte do dia, alternando de vez em quando com a cama do quarto de hóspedes, que já virou meu quarto.
Não há como dimensionar a dor que eu carrego no peito. Me sufoca e por muitas vezes penso que não vou conseguir respirar novamente. Tem momentos em que eu pergunto ao Douglas em pensamento por quê ele me deixou, mas me arrependo segundos depois, pois sei que ele jamais escolheria me abandonar ou abandonar sua mãe, ou nosso filho.
O mundo que já não era um lugar bom, agora se tornou cruel. As pessoas sabem meu nome, mas não sabem quem eu sou. Me vêem como a médica que teve um envolvimento com o chefe do cartel de Medellín. Não conhecem a mulher que abriu mão de sonhos de menina e aprendeu a amar a medicina; Que trabalhou duro para salvar vidas; Que em uma dessas peripécias para salvar um paciente, se apaixonou perdidamente por um policial fascinado por justiça; Que viveu uma história de amor; Que perdeu seu amado por um erro infeliz, mas que carrega no ventre o único pedaço de amor que sobrou.
Eu queria ter um modo de voltar no tempo e consertar tudo, de poder trazer o Douglas de volta, mas não há nada que eu possa fazer. Apenas chorar até que a dor diminua e eu possa me perder em devaneios, depois me dar conta de que essas lembranças jamais voltarão, e então, chorar novamente. Este é o o ciclo da minha dor.
Meus dias tem sido os piores possíveis. Às vezes eu pisco e tenho flashes daquela tarde. O sangue do Théo espalhado pelo chão, a arma na minha cabeça, a forma violenta como o Alejandro me tratou. Tudo me assusta, tudo me faz sentir medo de sair e ser abordada por alguém que o conhecia e que possa querer se vingar. Quando não é o medo, é a saudade e o arrependimento. Douglas cantando enquanto nosso bebê se mexia na minha barriga, seu pedido para que eu o esperasse em casa, meu desespero, a hora em que me vi livre do Alejandro, o breve momento em que pedi perdão ao Douglas, ele caído no chão perdendo a consciência.
Tudo isso me deixa exausta. Rastejo pelo apartamento durante o dia e não sinto o mínimo de sono à noite. O mais perto de dormir que eu chego, é uma espécie de apagão. Tenho um pequeno lapso e de repente, desperto como se estivesse caindo em um abismo. Eu sei que isso não faz bem para o meu bebê, mas não sei o que fazer para melhorar essa situação. Pelo menos sei que ele, ou ela, está bem nutrido, pois tenho me forçado a comer bem e tomo todas as vitaminas pré-natais nos horários certos. A única parte boa do meu dia, é quando sinto os movimentos deste pequeno ser que habita em mim, me lembrando que uma fração do Douglas ainda vive.
O som da porta sendo destrancada me causa um susto, mas dura pouco, pois as trancas por dentro não deixarão que qualquer um entre. Caminho em direção à porta enquanto ouço umas batidas um tanto desesperadas.
— SOU EU, KAREN! — grita minha mãe. — ESTOU APERTADA PARA IR AO BANHEIRO, ABRA LOGO!
— ESTOU ABRINDO — respondo enquanto destranco a porta.
Quando abro, ela corre em disparada para o banheiro. Bom, assim tenho tempo para enxugar as lágrimas e fingir que não estou tão mal.
Depois de trancar a porta novamente, vou até a cozinha para esperar pela minha mãe. Ela sempre chega querendo saber como foi meu dia, o que eu fiz, como se eu realmente pudesse fazer algo interessante enquanto ela está fora. Sento-me no banco e me debruço no balcão da cozinha. Pego uma maçã vermelha que mais parece decorativa e dou uma mordida generosa.
— Meu dia foi um tremendo saco, Karen! — ela exclama ao sair do banheiro e vindo até aqui. Um novo assunto, ao menos. — Acredita que uma aluna veio exigir que fizesse a prova depois de ter faltado sem justificar e nem levar atestado médico?! — não respondo, continuo mastigando e deixo que ela fale. — Tem horas que dá vontade de estapiar esses alunos.
— Por que a senhora não volta para a clínica? — indago.
— Você não quer voltar a atender lá? — devolve ela com supresa na voz ao se sentar ao meu lado.
— Não sei, mãe. Pelo menos não agora — falo e um breve silêncio paira no ar.
— Eu entendo que você não se sente motivada a fazer nada agora, mas alguma coisa você precisa fazer, filha — ela fala carinhosamente. — E quanto antes, melhor. — fico quieta. Não sei e não quero reagir. — Karen, eu sei que tudo isso te assusta. Todos os maus julgamentos que fizeram de você, vão ter fim hoje quando aquela entrevista for ao ar.
— Eu espero que sim — falo liberando um suspiro esperançoso. Ficamos em silêncio enquanto ela acaricia meus cabelos e os afastando do meu rosto.
— Você está muito abatida, Karen. Precisa dormir — ela fala como se eu já não soubesse.
— Não é tão fácil quanto parece, mãe — argumento. — Quando me olho no espelho, me sinto com a pele de uma velha de 80 anos. Para piorar, tenho dor de cabeça o dia inteiro.
— Por que não me pediu um remédio antes?! — indaga ela. — Tem no armário do meu banheiro. Vamos lá pegar.
Ela me puxa com delicadeza da cadeira. É uma força mínima que ela usa para me guiar, mas parece que estou sendo arrastada por uma máquina. Me sinto fraca e desmotivada para qualquer coisa. Nem sei porque eu deveria estar resmungando sobre minha pele ressecada. Ninguém repara no meu rosto e estou longe de querer parecer bonita para alguém. O único homem que despertava a minha vaidade era o Douglas.
Mamãe abre o armário e tira uma cartela de paracetamol.
— Tome — diz ela me entregando o remédio. — Tenho um hidratante facial aqui também. — ela abre outra porta do armário e uma infinidade de cosméticos surge.
— Sei que é um desses — ela fala à medida em que passa o dedo de um por um, lendo o rótulo.
Ela tem cremes para tudo. Ressecamento, excesso de oleosidade, anti-rugas, esfoliante...
— Vou te ajudar a procurar — falo e abro a primeira gaveta da parte de baixo.
— Não guardo cremes nessa gaveta, filha — diz ela enquanto meus olhos cravam em um cilindro laranja de tampa branca. Logo ela fecha a gaveta.
— Aqui está! — diz retirando um frasco transparente.
— Há quanto tempo a senhora toma remédios para dormir? — questiono preocupada.
— Não tenho nenhum problema para dormir, Karen — ela responde contra vontade. Acho que não esperava que eu encontrasse o frasco desse medicamento. — Só tomo quando meu dia é muito estressante e tenho folga no dia seguinte. — completa ela com um sorriso um tanto forçado.
Fico em silêncio tentando analisar a veracidade de suas palavras. Minha mãe não é do tipo que esconde coisas da família. Será que está passando por alguma coisa e não quis me contar porque eu estou de luto? Imagino que mesmo que eu demonstre muito interesse em saber o que está acontecendo, ela não vai falar. O jeito é esperar um tempo e entrar no assunto de uma forma menos tensa, sendo que ela pode estar sendo sincera e só toma o remédio de vez em quando.
O celular da minha mãe toca desviando nossa atenção para ele. Assim que olha a tela, ela sorri.
— Seu pai chegou. Vamos lá abrir a porta para ele.
É algo tão singelo e ao mesmo tempo tão bonito... Eu sempre vi nos meus pais o exemplo de vida a dois que eu gostaria de ter. Embora eu já não tenha mais a minha metade, ainda admiro e me emociono ao ver essas pequenas demonstrações de que o amor ainda vive.
Papai entra e a abraça por um tempo um pouco mais prolongado que o normal, depois se dirige até mim e me beija a testa.
— Já falou com ela, Heloísa? — ele pergunta.
— Não, ainda não — ela responde com um olhar apreensivo, como se eu não pudesse saber de algo.
— Falou o quê?! Aconteceu alguma coisa? — indago um pouco preocupada.
— Não é nada demais — diz mamãe sorrindo, mas não me convence.
— É nosso aniversário de casamento hoje, filha — papai fala e mamãe semicerra os olhos.
— Oh, nossa! — perco a fala por uns instantes. Fico surpresa, emocionada e me sentindo um pouco egoísta. — Isso é... Incrível. — dou-lhe um abraço seguido de outro em minha mãe.
— Nós queríamos sair para jantar, mas não queremos deixá-la sozinha aqui — diz papai.
— Imagina... Vocês podem ir sem preocupações.
— Não — mamãe fala com uma ruga entre os olhos. — Nós não precisamos sair. Podemos jantar aqui com você, Karen.
— Ah, são... Quantos anos mesmo de casados? — questiono perdida.
— Trinta e oito — respondem em uníssono. Meu pai sabe há quantos anos estão casados. Isso é lindo.
— Então! Trinta e oito anos merecem uma comemoração mais especial. Vocês podem ir e... Se divertirem.
Eles se entreolham por poucos segundos parecendo trocar palavras imaginárias.
— Você tem certeza? — mamãe inquire.
— Absoluta. Eu me sentiria mal se vocês deixassem de comemorar essa data por minha causa.
— Tenho uma ideia — exprime papai. — Por que não chama alguém para ficar aqui com você? A Paola, o irmão dela, a Dona Ana, ou até mesmo o Daniel...
— De jeito nenhum, pai! É noite de sexta. A Paola vai sair com o namorado, o Wesley com certeza está com o salão cheio. Durante a semana eu conversei com a Dona Ana e ela disse que estaria na igreja, com o grupo de oração. E o Daniel... deve estar com a Marcela.
— Então... — ele inicia, mas eu o corto.
— Eu vou ficar bem. Fiquem tranquilos.
— Tudo bem — mamãe fala. — Vamos sair depois que o Prócer terminar de exibir a entrevista.
Eu disse que se eles deixassem de comemorar por minha causa, eu me sentiria mal, e é verdade. Já estou imersa em um mar de lembranças obscuras e não quero afundar ninguém comigo. Seria horrível ver meus pais deixando de viver suas vidas para me sustentar de pé porque meu alicerce está rachado. Nessas horas é que eu noto que de repente eu já esteja interferindo no cotidiano dos dois e atrapalhando suas rotinas. Podem estar discordando sobre o que é melhor para mim, como aconteceu durante toda a minha vida. É claro! Pode ser por isso que mamãe está tomando calmantes. Talvez estejam em uma crise por minha culpa e saírem juntos hoje, pode ser uma tentativa de não deixarem o casamento acabar.
•°• ✾ •°•
Eu deveria estar entregando meus sentimentos à data de hoje e deixar minhas dores de lado enquanto ajudo minha mãe a escolher um vestido, mas parece que meu coração está passando do estado sólido para o líquido. Engulo minhas lágrimas porque minha mãe não merece que eu deixe meu sofrimento falar mais alto do que sua felicidade. Jamais completarei trinta e oito anos de casada com o Douglas, mas meus pais estão tendo o privilégio de estarem na vida um do outro até hoje. Isso é fascinante e precisa me bastar por hoje.
— À que horas esse programa vai ao ar, mãe? — questiono quando vejo que meu pai verifica o relógio de cinco em cinco minutos.
— Às 20h no Brasil News TV — ela responde antes de eu começar a aplicar o batom rosa matte em seus lábios.
— São 19h25 agora, mãe. O programa vai começar às 20h, mas só Deus sabe quando eles vão exibir a entrevista. Sabemos tudo o que foi falado por cada um de nós. Se esperarem por essa entrevista vão perder toda a noite.
Ela inspira carregando um pouco de tensão, parecendo avaliar meu argumento.
— Pensando por esse lado, acho que não estaríamos perdendo nada importante não assistindo esse programa.
— É o que estou tentando dizer — falo.
— OLI! — grita mamãe. Logo papai aparece na porta do quarto. — Tudo bem se formos agora?
Nós duas olhamos para ele aguardando uma resposta positiva. Mas ele apenas alterna olhares entre mim e ela.
— Eu que dei a ideia, pai. Curtam a noite. — ele sorri.
Após a saída dos dois, os minutos foram se passando e quem não tinha expectativa alguma em ver a própria desgraça na televisão, já não tem mais unhas para roer.
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